Plinio Corrêa de Oliveira

 

A atitude de Pétain

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 23 de junho de 1940, N. 406

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Inteiramente alheio às questões políticas de caráter meramente temporal, jamais se viu que o “Legionário” empenhasse suas simpatias a favor desta ou daquela parte em conflitos ou dissídios em que nada tivessem que ver os interesses sagrados da Santa Igreja de Deus. Jornal católico, totalmente católico, e exclusivamente católico, o “Legionário” se diminuiria se se deixasse arrastar pelas paixões políticas a uma arena que, por ser meramente temporal, se situa muito abaixo dos campos onde esta Folha se sente chamada a lutar. E, com a preocupação infatigável de jamais se afastar desta linha de conduta, levamos tão longe nosso rigor que jamais se viu que o “Legionário”, mesmo na apreciação de questões de interesse misto, ao mesmo tempo espiritual e temporal, justificasse seu ponto de vista por razões outras que não as que inspira a exclusiva consideração dos problemas espirituais de nossa época.

Seria, pois, uma incoerência flagrante se procurássemos transformar nosso jornal, de exclusivamente católico que é, em órgão dos interesses temporais deste ou daquele povo, por mais legítimos que fossem.

Esta posição sobranceira nos permite ser francos. A franqueza é um direito e um dever dos que são imparciais. E ninguém pode ser mais imparcial do que a Igreja que, sem odiar a povo nenhum, a todos eles envolve em seu amor maternal. A franqueza é, pois, uma das notas características do jornalista católico.

Fazendo uso dessa inestimável prerrogativa devemos dizer francamente que não apreciamos a conduta do Marechal Pétain.

Com o solo pátrio invadido, com os horizontes políticos turbados como jamais estiveram nos dias trágicos de 1814 e 1815, no ocaso melancólico de 1870, ou na luta titânica de 1914, os franceses lutaram desta vez defendendo seu território palmo a palmo, ou, para ser mais verídico, milímetro a milímetro, compensando com golpes de heroísmo as faltas enigmáticas e inexplicáveis, as “coincidências” por demais singulares, as “ingenuidades” inadmissíveis, e as “surpresas” desconcertantes que tinham aberto ao inimigo as portas da pátria gaulesa.

Inúmeras vezes, o governo francês declarara que não lutava apenas pela França, mas pelo mundo inteiro, e que nos campos de batalha da Gália não se decidia apenas o futuro de um povo, mas de toda a civilização. E a prova disto estava na internacionalidade do exército francês. Lado a lado, lutavam sob as bandeiras francesas, soldados italianos, austríacos, noruegueses, poloneses, tcheques, holandeses, belgas etc., que, se tinham uma eficiência militar limitada, eram ao menos um atestado vivo de que a causa da França representava para milhões de estrangeiros algo de muito maior do que a causa de um só país. Para dizer pouco, a causa da França se identificava com a do Direito Internacional, e a esta verdade veio trazer uma confirmação serena e definitiva a palavra augusta do Santo Padre, que verberou severamente a invasão da Bélgica, Holanda e Luxemburgo pelas tropas nazistas, como uma violação flagrante da moral internacional.

O III Reich erigira, na política interna da Alemanha, a força como norma tutelar do país, fonte de todos os direitos e medida de todas as coisas. Esta atitude doutrinária e política não fora o resultado de uma circunstância acidental e fortuita da vida do país, mas o produto de uma longa série de erros filosóficos que encontraram em Kant e mais remotamente em Lutero seus doutrinadores, em Nietsche seu Maquiavel, e em Hitler seu realizador.

O público brasileiro já está muito informado da genealogia doutrinária pela qual os erros do comunismo se filiam aos da Revolução Francesa, estes à Enciclopédia, e esta última por sua vez ao protestantismo. Seria interessante fazer hoje uma campanha de divulgação para mostrar a genealogia ideológica não menos segura nem menos lógica pela qual se remonta de Hitler a Lutero por meio de Nietsche e Kant. Seria um comentário interessante e profundo ao pacto Ribbentrop-Molotov.

Ora, a expansão armada do III Reich significa a transposição dos princípios revolucionários do nazismo para o campo da vida diplomática, a subversão de todas as leis de convívio justo e pacífico entre os povos, e sobretudo a disseminação da ideologia neo-pagã em todos os países conquistados.

Se dúvidas pudesse haver quanto ao desejo do Sr. Hitler de semear o paganismo em todos os sulcos abertos pelos canhões e pelos tanques alemães no mundo inteiro, estas dúvidas se dissiparam com a conduta do Cardeal Innitzer. O Arcebispo de Viena teve para com o “führer” uma atitude desprevenida, deu-lhe facilidades tais e garantias tão grandes, que só o puro ódio religioso pode explicar a perseguição que se abateu ferozmente sobre os católicos austríacos, e se propagou depois pela Checoslováquia e pela Polônia.

* * *

Postas as coisas nesta altura, a invasão total do solo francês não poderia justificar uma capitulação. A França tem colônias, a França tem uma armada, a França tem uma história e uma tradição. A França é algo de tão antigo, de tão glorioso, de tão alto, que transcende de seu próprio território. Continuar a luta ao lado da Inglaterra, deveria ser a palavra de ordem dada a todos os franceses. Não foi outra a atitude do Rei Haakon e da Rainha Guilhermina após a invasão dos respectivos países. Reynaud deu esta palavra de ordem. Mas o mundo assistiu a este espetáculo desconcertante: um “homem de Verdun”, um marechal francês, um herói de 1918 se arvorou em paladino da “política de Munich”, e prepara um acordo com a Alemanha, fazendo a França atônita e desarticulada duvidar, pela primeira vez, de seu futuro...

E em que condições foi este acordo pedido, publicado, esperado, e articulado! Dificilmente seria possível imaginar uma mais esmagadora série de erros!

Caindo Reynaud, Pétain subiu ao poder. Sua primeira obrigação deveria ser de animar os franceses. Disse o marechal que a França não aceitaria uma paz incondicional. Mas suas palavras foram tais que deixaram entrever que só uma paz incondicional poderia salvar a França. Disse ele que a luta deveria cessar. Mas esta ordem foi unilateral, não houve ordem idêntica do lado alemão, e a confusão provocada por esta medida do governo de Bordeaux foi tal que o Marechal se viu na obrigação de se desmentir a si próprio, dizendo dias depois que a luta deveria continuar.

Mas que luta! Com o moral abatido pelas declarações do próprio chefe do governo, os franceses começaram a lutar sentindo-se mais em perigo pelas costas do que pela frente, e esperando com mais ansiedade os comunicados de Bordeaux que as bombas do adversário. Enquanto as armas resistiam ao invasor nazista, os corações se sentiam angustiados pelo que faria o governo francês. Se a França não fosse um país de heróis, a luta teria prontamente cessado.

Enquanto esta “débâcle” [derrocada] dramática mostrava o patriotismo dos franceses, as demoras para a concessão do armistício se alongavam indefinidamente. Por toda a parte os invasores ganhavam terreno. E, quando ainda se poderia pensar em paz condicional na noite dramática em que Pétain revelou-se a si próprio aos olhos do mundo, hoje em dia esta ideia parece cada vez mais afastada.

O fato dominante de tudo isto é que os alemães, enquanto isto, vão ganhando terreno no litoral norte da França, vão isolando a França da Inglaterra, e vão fazendo do solo francês o ponto de partida, já agora seguro e inexpugnável, de sua próxima arremetida contra a Inglaterra.

Pétain não previu isto? Não sabia Pétain que enquanto a França conservasse apenas umas nesgas de terra junto ao litoral inglês estaria prestando à causa comum um inestimável apoio?

* * *

“Capitulação incondicional” é uma expressão grave. Afeta ela ares de débâcle total e irremediável. E implica na entrega completa do vencido ao vencedor.

Significa isto que a entrega da esquadra francesa aos alemães se fará? A questão é de uma importância transcendental.

Efetivamente, os alemães não têm esquadra, e Churchill se mostrou muito despreocupado do perigo que a esquadra fascista poderia acarretar para a Inglaterra. Assim, a Alemanha precisa de uma esquadra para atacar a Inglaterra. Será esta esquadra a da França?

Inteiramente ocupadas pelo inimigo, a Holanda e a Noruega não se renderam, seus governos se retiraram para Londres e ordenaram a incorporação à esquadra inglesa de suas belonaves, ao mesmo tempo que forneciam homens para combater em território francês.

Inteiramente ocupada pelo inimigo, entregar-se-á a França, abandonará seus aliados de ontem, e dará sua esquadra à Alemanha? Por que não agiu Pétain como o Rei Haakon e a Rainha da Holanda?

Desta vez ao menos, ninguém nos chame de inimigos da França. Não estamos contra ela. A mesma série de reflexões é feita pela fina flor dos franceses, e especialmente pelo bravo general De Gaulle, que, de Londres, irradiou para o mundo seu heroico brado de descontentamento com o Governo de Pétain.

Assim pensaram os franceses do Egito que mandaram um telegrama a Pétain recomendando que não cesse a luta. E não foi outro o sentido das palavras que a Pétain mandou a colônia francesa no Japão.

“Apesar da distância e do imperfeito conhecimento de todas as condições aí existentes, os franceses residentes no Japão desejam manifestar ao governo os seus sentimentos unânimes contra todas as negociações com os inimigos. As cruéis lições do passado tornam impossível acreditar nos compromissos do inimigo. Temos a certeza de que os franceses cairão infalivelmente em uma escravidão definitiva quando estiverem à mercê, mesmo que as suas condições se afigurem à primeira vista menos insuportáveis. Conjuram o governo a entregar ao seu destino o território francês de continuar a luta com a esquadra intacta todos os efetivos utilizáveis dos exércitos metropolitanos e coloniais em perfeita união com os aliados. Isso permitirá, com o apoio crescente do resto do mundo, alcançar a vitória final. Confirmam que todas as suas forças físicas e morais estão à inteira disposição do governo”.

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No momento em que escrevemos, acaba de nos chegar a informação de que a esquadra francesa, rompendo virtualmente com Pétain, resolveu entregar-se à Inglaterra. A ser verdadeira a notícia, não é mais uma confirmação do que dizíamos?


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