Plinio Corrêa de Oliveira

 

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“Ur Faust”

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 28 de janeiro de 1940, N. 385, pag. 2

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Os seminaristas do Verbo Divino, aqui em São Paulo, costumam representar de vez em quando, velhos autos, daqueles que tinham em mira a edificação e a instrução religiosa, e eram representados por frades, nos tempos de antanho, por ocasião de festividades solenes. Há, portanto, um sabor todo especial nestas representações que, se não são feitas por frades, o são por seminaristas, na chácara de Santo Amaro, onde está o seminário. Aqueles que já tiveram a oportunidade e o prazer de lá fazerem um retiro espiritual, compreenderão melhor o ajuste do ambiente para tal espécie de espetáculos.

O teatro é ao ar livre. A plateia situa-se numa clareira larga, aberta no meio da vegetação local, e cuja serventia comum é ser campo de esportes. Numa das extremidades, o terreno alteia-se em plataforma espaçosa, fechada ao fundo e aos lados por tufos espessos de bambuzal. É aí o palco. Quando deve ser utilizado, colocam no bordo anterior da plataforma umas gambiarras improvisadas, dissimuladas sob ramalhetes de flores. Preso a dois postes, o pano de boca, que se abre como as folhas de uma porta, agitando-se ao vento como bandeiras desfraldadas. Em outros postes ao lado dos primeiros, poderosos refletores de vária coloração.

Foi aí que, na treva de uma noite sem lua, em que os maciços das árvores fundiam-se em sombras indecisas, fachos de luz vermelha rasgaram a escuridão e vimos Caronte, o barqueiro dos infernos, esbravejar raivoso esconjurando Satanás que, por fim, surgiu de improviso, entre relâmpagos, trovões, guinchos, uivos e todo o reboar sinistro da caterva maldita. Era o início da representação do “Fausto”, que tivemos o prazer de assistir há dias. Não o “Fausto” de Goethe, mas o velho auto medieval, anônimo, de onde Goethe tirou sua inspiração, o “Ur Faust”, isto é, o primitivo.

Há, entretanto, diferenças fundamentais entre o poema e o drama original. A mais aparente está no desfecho: Fausto, no poema, salva-se; no drama, porém, é tragado pelo inferno. Esta diferença, no entanto, é apenas o sinal de uma outra muito mais profunda, uma diferença de espírito e de intenção, de tal forma que se pode dizer que a obra de Goethe é a versão protestante do antigo auto católico.

O Fausto romântico do poeta é um cientista que procura conhecer avidamente os segredos da Natureza. Incapaz de desvendá-los pelos recursos da razão, recorre ao mistério tenebroso da necromancia. Assim, vende a alma ao demônio em troca da posse da ciência e consequente dominação deste mundo. A princípio, utiliza-se mal deste poder, visando apenas o gozo e o deleite; na velhice, entretanto, emprega-o no bem, e estas boas obras conseguem-lhe a remissão da alma. Deste modo, quando Mefistófeles vem buscá-lo, um coro angélico desce do alto e exclama: “Podemos absolver o homem que trabalha e persevera sem repouso num ideal elevado”. Sabem qual era esse ideal elevado?

Na última fase da vida, Fausto conseguira para si um feudo, não fértil e rico, mas estéril, cortado de pântanos e habitado por uma população miserável. O seu alto projeto era transformar aquela terra inútil numa região rica, por meio de grandes obras de engenharia. Foi esse o ideal elevado, pelo qual trabalhava sem repouso, e que o fez exclamar: “Quando estarão esgotados estes pântanos e estes campos todos cultivados e produtivos, entregues a uma população ativa e industriosa e eu vivendo livre, entre gente livre!” Como se vê, um ideal de secretaria de viação e obras públicas. É a ideia rotariana, maçônica e iluminista da salvação pelo progresso material e democrático.

Pelo contrário, o Fausto medieval é um teólogo orgulhoso, que cansa o espírito em disquisições [indagações, n.d.c.] estéreis, procurando assenhorear-se dos mistérios inefáveis. Tendo trabalhado em vão, enche-se de tédio, a curiosidade mais lhe punge, e é assaltado pelo desejo de prazeres. Nesta altura, é tentado de pactuar com o demônio. Seu Anjo da Guarda procura dissuadi-lo, mas ele combate as boas inspirações, rejeita-as, e entrega-se à tentação, convencido de que o poder, que vai conseguir, será suficiente para conquistar-lhe a salvação. Vende a alma a Mefistófeles em troca de seu serviço. Assim, vem a galgar as maiores culminâncias deste mundo, gozando de tudo o que este mundo pode dar. Afinal, sente-se insatisfeito e inquieto, após doze anos em que não houve desejo ou capricho que não lhe fosse imediatamente atendido. Então, propõe a Mefistófeles uma série de perguntas teológicas relativas ao inferno e ao Paraíso, à recompensa dos bons e ao castigo dos réprobos. Contra a vontade, mas obrigado pelo pacto, o demônio lhe responde. Fausto arrepende-se, ajoelha-se e ora contrito; inspirado pelo anjo da guarda, obriga o demônio humilhado a apresentar-lhe a Cruz de Cristo. É o momento supremo. Mefistófeles percebe que vai perder a preza. “Mais um quarto de hora desta oração, exclama aflito, e Fausto estará salvo!” Recorre ao último recurso: faz aparecer Helena de Troia, e convida Fausto a fitá-la. O teólogo, porém, não lhe dá atenção, mergulhado em profunda prece. O demônio encarniça-se, apura os meios de sedução: “Um só momento, Fausto, e logo continuarás a rezar...” O pobre mortal abala-se. O seu velho orgulho trabalha contra ele. “Pois bem, Mefistófeles, para mostrar que já não tens poder sobre mim...” E o desgraçado não conclui, fulminado pela tentação. Já não se lembra de mais nada, quer apenas Helena, que lhe foge. O seu pecado, então, é completo: ele persegue o objeto de seu desejo criminoso, e, quando pensa alcançá-lo, eis que a forma de Helena se desfaz, para dar lugar a uma fúria infernal.

O que vem depois é de uma estupenda densidade trágica. Fausto, vendo-se burlado, enche-se de desespero. Dentro de poucas horas o demônio deverá reclamar-lhe a alma. Quer, então, rezar novamente, novamente arrepender-se de seus pecados. O seu coração, porém, cheio de angústia, não lh'o permite. A inquietação avassala-o, o tempo corre. Num último esforço, que parece o último lusco-fusco da graça, ajoelha-se, e ora em voz alta. As palavras saem-lhe dos lábios, mas não do coração, que permanece aflito e desesperado. É inútil, o prazo está por expirar. Logo ao soar da meia noite, os demônios apresentam-se e o inferno se abre. Fausto está condenado para sempre.

Esta última cena foi apresentada com incrível maestria. O Revmo. Pe. Sigaud, que é o diretor artístico, o “metteur-en-scène”, a alma, enfim, das representações de Santo Amaro revelou-se um talento de cenoplastia. Não se pode conceber como com tão parcos recursos, conseguiu os maravilhosos efeitos de luz e de som, que deram uma impressão tão realista do inferno, que chegamos a ficar um pouco incomodados... Deve-se, também, assinalar a sua compreensão profunda dos autos que leva à cena. Mefistófeles, por exemplo, manifesta toda a gradação do orgulho, desde a maior arrogância até à vaidadesinha petulante e pueril; este último traço é, sem dúvida, de uma agudeza admirável. Da mesma forma, os demônios de categoria inferior tendem para o amolecado, para a grosseria relaxada, o que demonstra uma penetração inteligente. É necessário, porém, salientar que o Revmo. Pe. Sigaud encontrou em seus seminaristas colaboradores eficazes, sendo que alguns deles desempenharam-se de seus papéis com verdadeiro senso artístico.

Pode-se afirmar, sem receio, que as representações de Santo Amaro constituem, já, um auspicioso sinal do progresso da arte religiosa entre nós. Aguardemos a próxima...


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