Plinio Corrêa de Oliveira

 

Caridade e tolice

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, Nº 348, 14 de maio de 1939

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Em meu ultimo artigo, mostrei a atitude intransigente do Santo Padre Pio XI para com três importantíssimas correntes ideológicas contemporâneas que, tácita ou explicitamente, ofereceram à Igreja seu apoio no combate a inimigos comuns, e assumir o compromisso de explicar as razões dessa intransigência. Tal explicação, aliás é indispensável para a boa compreensão do pontificado de Pio XI, uma vez que ela está em aparente contradição com outras atitudes do grande Papa. Efetivamente, como explicar que um espírito largo como o de Pio XI, que declarou estar pronto a se aliar ao próprio demônio se por absurdo este lhe pudesse prestar um concurso útil para a causa do bem, tenha rejeitado alianças como as da “Action Française”, do nazismo e dos partidários da “politique de la main tendue”?

Se por um lado, inegáveis obstáculos separavam a Igreja de qualquer destas correntes, é impossível negar que uma larga linha de interesses comuns podia ser encontrada entre Ela e qualquer das três. Pio XI fez um apelo a todos os homens de todas as religiões ou países, a que se unissem para salvar a civilização contra o ateísmo comunista, conquanto tais religiões ou países estivessem no mais profundo antagonismo recíproco sob muitos pontos de vista. Ora, exatamente no momento em que a possibilidade dessa cooperação concreta e extra-doutrinária se apresentou de modo mais positivo, o Pontífice parece ter agido de modo diametralmente oposto aos seus próprios conselhos, rejeitando qualquer combinação ou coligação com essas forças. Como explicar essa conduta?

* * *

A explicação não é simples. Para compreender a atitude de Pio XI, é preciso jogar com certos fatores imponderáveis, cuja justa percepção e avaliação só podem ser feitas por quem tiver antenas especiais para tanto. Por isto mesmo, os que não tem estas antenas que constituem, por assim dizer, um sexto sentido no domínio da inteligência, dificilmente poderão perceber a situação concreta dentro da qual se viu o Papa, e que explica sua conduta. Aliás, a compreensão dessa situação não é um mero problema de História Eclesiástica. Ela se relaciona intimamente com as circunstâncias atuais do apostolado individual de cada um de nós. E, por isto, merece de nossa parte um sério esforço de atenção.

O caso do nazismo é, de todos, o mais doloroso. Essa corrente surgiu na Alemanha quando o liberalismo estava no auge de sua ação deletéria. Corroendo as inteligências com a ação lenta do cepticismo que lhe é inerente, depravando os costumes com a tolerância criminosa que prega, desorganizando a vida política, econômica e social pela anarquia que traz inevitavelmente consigo, o liberalismo tinha levado a Alemanha às portas da ruína total. Percebendo claramente os motivos profundos da crise, muitos espíritos eminentes se inclinavam para o Catolicismo, no qual viam o único fanal salvador. Quanto às massas, guiadas finalmente por aquela percepção segura das realidades que às vezes possuem, também elas se inscreviam largamente nas associações católicas, com manifesto prejuízo para o protestantismo e o socialismo. De um lado, pois, o Catolicismo lucrava imensamente com a situação, pois que ela constituía uma apologia indireta das verdades pregadas pela Igreja. De outro lado, entretanto, também crescia o perigo comunista. Mas os católicos, fortemente organizados no terreno político e social, de acordo com as prescrições de Leão XIII, não receavam a avalanche vermelha, certos como estavam de que poderiam jugular o perigo do mesmo modo que o fizeram na Áustria, a dois passos apenas da Alemanha, os invictos católicos da infeliz Osmark de nossos dias. Assim, pois, a situação na Alemanha era francamente favorável a uma restauração religiosa que acarretaria automaticamente a restauração econômica e social.

Diante da afluência de simpatizantes que de todos os quadrantes intelectuais rumavam para a Igreja em busca da Verdade e da unidade, os católicos tomavam uma caridosa atitude de compreensão que facilitava imensamente o acesso das ovelhas perdidas ao único aprisco de Jesus Cristo. E, assim, no meio das tormentas e das crises econômicas, numerosas réstias da luz deixavam entrever para um futuro próximo a salvação da Germânia.

Surgiu então Hitler. Alistando em suas fileiras inúmeros indivíduos de todas as tendências intelectuais, unidos entre si graças à exacerbação de um patriotismo ulcerado pela derrota e pela dor, levantou também ele uma bandeira anticomunista e anti-liberal que empolgou as multidões. Por meio de uma crítica mordaz da situação alemã, crítica em que as melhores passagens não são senão uma aplicação dos princípios católicos de que ele finge abstrair, Hitler manifestou muita afinidade com o pensamento da Igreja. Mais uma corrente de simpatizantes marchava, pois, em demanda do Catolicismo? Muitos dentre os católicos creram que sim. E, com o intuito de transformar essa afinidade em uma solidariedade plena, levaram as concessões ao nazismo a limites verdadeiramente extremos.

Hitler, entretanto, não era um verdadeiro simpatizante. O que sua corrente apresentava era totalmente mau; mau naquilo em que divergia da Igreja e mau também - o paradoxo é justo e nós o explicaremos abaixo - naquilo em que se assemelhava a Ela.

Pelos pontos de contato que apresentava com a Igreja, Hitler conseguiu os seguintes efeitos péssimos:

1) desviou para si as simpatias que naturalmente se encaminhavam para a Igreja; antes do nazismo, tornava-se cada vez mais evidente que o único recurso contra a anarquia e o comunismo era o Catolicismo; depois do nazismo, o Catolicismo passou a ser considerado como “uma” das soluções possíveis, não porém “a” solução por excelência;

2) compreende-se facilmente que, falando uma linguagem parecida com a da Igreja, o nazismo tenha conquistado simpatias mais fáceis do que esta. A adesão à Igreja Católica supõe uma profunda revolução interior, pelo qual não se passa sem sofrer dores espirituais muitas vezes lancinantes, e sacrifícios íntimos cujo preço transcende imensamente à da renuncia dos mais valiosos bens materiais. Para as almas que, anojadas da putrefação liberal, emigravam em massa para o Catolicismo, o nazismo ofereceu uma pousada intelectual a meio caminho, muito menos alta e muito menos difícil de ser atingida. Não faltou quem supusesse que essa pousada pudesse fornecer alento para vôos ulteriores mais altos. A experiência, entretanto, provou que não. Colhidos no pouso nazista, os espíritos, empolgados pela propaganda violenta, pela ação de princípios funestos, pela exaltação do nacionalismo sobretudo, se deixavam rolar por um abismo mais profundo do que aquele que tinham procurado evitar.

3) Efetivamente, o nazismo apareceu desde o inicio, como uma verdadeira caixa de prestidigitador, cujo conteúdo era muito diverso do que a aparência fazia supor. Hitler, no “Mein Kampf”, estabeleceu duas partes inteiramente diversas. Na primeira, ele faz um ataque violento ao liberalismo, com um êxito realmente extraordinário; o segundo, ele procura descrever a sociedade do futuro, constituída sobre bases nacional-socialistas. A propaganda nazista se utilizava, em geral, apenas da primeira parte, para atrair simpatias. A segunda parte vinha depois: era ministrada cuidadosamente aos membros mais selecionados do partido com habilidade e  deslealdade (...). Assim, pois, havia uma arapuca imensa dentro do nazismo. E só no dia do juízo final se poderá saber quantas almas foram apanhadas e trucidadas por esse diabólico artifício.

4) Finalmente, poucos foram os católicos suficientemente perspicazes para perceber a manobra satânica do nazismo. O Episcopado, evidentemente, deu o brado de alarma. Mas entre os próprios católicos a preocupação constante de adquirir, à torta e à direita, simpatias para a Igreja, foi tão longe que chegou à indisciplina. Abertamente, acusou-se o Episcopado de ser intransigente e de comprometer com tal intransigência a conversão do Partido Nazista ao Catolicismo. Era preciso conquistar o nazismo. E como conquistas certa gente só as sabe fazer com sorrisos, jeitinhos e gracinhas, houve todo um setor de católicos que começou a “flirtar” com o nazismo, “chamberlainescamente”. Para os nazistas, tinham eles toda a tolerância possível. Mas o máximo de sua mais aguda e virulenta intolerância era para com os católicos - inclusive o Episcopado - que não seguissem a mesma orientação chamberlainesca...

Tendo subornado no Partido Católico alguns Judas - von Papen foi um deles - Hitler pode entreter essas divisões intestinas, até o ponto de provocar uma cisão entre os católicos, à custa da qual ele tomou o poder.

Ora, Hitler, não contente com tudo isto, ainda quis se arvorar em campeão da Cristandade contra o comunismo. E, enquanto com os pés esmagava implacavelmente os católicos alemães, apresentava com as mãos, ao mundo inteiro alguns troféus arrancados (?) por ele aos comunistas. E com estes troféus pretendia o apoio dos católicos do mundo inteiro - com o Papa à testa - à causa do nazismo.

Podia Pio XI aceitar essa colaboração? Evidentemente não. Porque isto não era uma colaboração, mas uma traição. Uma traição própria à época em que vivemos, época que, disse Pio XI referindo-se à situação alemã, lembra ao mesmo tempo a crueldade dos tempos de Nero e as traições vis do tempo de Juliano, o Apóstata.

Com filhos pródigos que gemem fora da casa paterna, há colaborações possíveis. Com traidores, não. Caridade e tolice são coisas muito diversas.

Veremos, no próximo artigo, o que se deu com a “Action Française” e a “politique de la main tendue”.


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