Plinio Corrêa de Oliveira
A técnica do silêncio
Legionário, 5 de fevereiro de 1939, N. 334 |
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Nunca, talvez, em todo o decurso da História, se usou e se abusou tanto do segredo como arma política, quanto em nossos dias. É no segredo dos laboratórios que a química moderna se esforça por inventar os maravilhosos meios de destruição que devem assegurar ao seu detentor o triunfo incontestável na próxima guerra. É no segredo impenetrável e profundo das masmorras e dos campos de concentração que os poderosos do dia liquidam certas questões políticas mediante a eliminação de alguns infortunados adversários. É no segredo cabalístico que envolve a atmosfera dos gabinetes de diretores de banco que se tramam os grandes golpes financeiros, em torno dos quais se decidem os destinos das nações. E é no segredo não menos impenetrável das Secretarias de Estado que se faz e se desfaz a trama subtil das negociações políticas e diplomáticas que os comunicados oficiais apresentam depois ao público, sob a forma de vagas e inofensivas negociações. Por um estranho paradoxo, entretanto, nenhum século dispôs tanto quanto o nosso dos mais amplos meios de difusão e informação. O rádio, o telégrafo, a imprensa e o cinema dão ao homem recursos extraordinariamente eficientes para “furar” os mais altos segredos, arrastando-os para a luz de uma desabrida publicidade. Daí, entre os jornalistas e as empresas de rádio e de telégrafo etc., de um lado, e do outro lado todos os alquimistas e manipuladores políticos, econômicos e ideológicos dos altos segredos contemporâneos, uma luta tenaz e violenta, para a qual cada chefe de Estado traz o contingente de suas qualidades pessoais. A arte de impor o silêncio é hoje um capítulo essencial da arte de governar. Um governante que não saiba fazer calar os seus adversários é um pífio chefe de Estado. E por isto mesmo cada chefe de Estado tem seu processo pessoal para impor o silêncio. Uma revista rápida desses processos dá bem uma ideia do mundo moderno, e pode não ser inteiramente destituída de interesse. * * * Comecemos pelo ocupante da Casa Branca. O Sr. Roosevelt, quando quer pôr a pesada laje do segredo oficial sobre qualquer assunto, convoca alguma comissão parlamentar, à qual faz suas revelações mediante um juramento legal que, uma vez violado, pode levar os infratores para a cadeia. Por isto mesmo, todos os membros da comissão, em geral políticos de uma temível indiscrição, ficam inteiramente paralisados. É um processo tipicamente “yankee” e rooseveltiano, um truque ágil e forte, que é tão eficiente quanto o mais prodigioso dos cadeados super-mecânicos e superelétricos inventados naquela terra tão hábil nestas especialidades. O francês não gosta de “truques” ágeis e fortes. Os expedientes mecânicos o seduzem muito pouco, mesmo no terreno da política. Comprometer os adversários mediante um juramento parece ao francês simples demais, e até um pouco vexatoriamente ingênuo. Um artífice decente da capoeiragem política francesa teria vergonha de recorrer a qualquer processo que não fosse a fina e subtil maquinação dos cochichos de gabinete, murmurados no ambiente luxuoso dos salões do Palais Bourbon ou do Quai d'Orsay, ou na lábia parlamentar brilhante, inteligente e astuciosa da Câmara dos Deputados. Por isso mesmo, o Sr. Daladier tem um recurso muito diverso do truque rooseveltiano. Quando seus adversários insinuam, durante os debates parlamentares, alguma impertinência como, por exemplo, que o Sr. Pierre Etienne Flandin se vendeu à Alemanha, arrastando atrás de si apreciável contingente de politicóides franceses, a camarilha do Sr. Daladier toma a “allure” característica do “coq gaulois” [galo gaulês], agita as plumagens vistosas de seu pundonor indignado, prorrompe em exclamações escandalizadas e desprezivas, em “ohs” de uma incredulidade irritada, e acaba por exclamar, depois de ter exibido para as galerias todo este vistoso aparato, que essa acusação não atinge apenas as pessoas denunciadas, mas ofende a própria França. De sorte que, se realmente o Sr. Flandin se vendeu - Judas, von Papen e tantos outros não o fizeram também? - não existe para a França outro remédio senão deixar que a transação seja completada. Chega até aí a habilidade da justamente famosa lábia parlamentar gaulesa... * * * Assim agem os chefes liberais. Este processo, porém, entre fascistas seria “demodé”. Eles desprezam a tradição renascentista das combinações maquiavélicas sabiamente urdidas em palácios suntuosos, atrás de cortinas de seda e veludo, em Florença, Veneza, Gênova ou de Turim. O fascismo é teatral, mas de uma teatralidade de encomenda, que não está na linha da gloriosa tradição da bela Itália. O cochicho é pouco teatral, uma vez que não pode ser ouvido pela plateia. Por isso, a grande arte do Sr. Mussolini, ao impor o silêncio, é urrar: urrar, mas urrar com todas as forças de seus pulmões privilegiados e de suas infatigáveis cordas vocais. Depois deste ronco de trovão, nas fileiras fascistas, o silêncio inevitavelmente se faz... Diferente é a técnica do Sr. Hitler. O nazismo também é teatral. Mas sua teatralidade, “et pour cause” não é, como a do Sr. Mussolini, a de um ator dramático que grita, gesticula e canta longamente, antes de enfiar um cutelo, às vezes inofensivo, na vítima paciente. A teatralidade do Sr. Hitler, que desdenhou a gloriosa cultura da Alemanha de São Bonifácio, para se arvorar em autêntico restaurador do culto germânico pré-cristão, e a dos bárbaros que os escritores romanos nos descrevem seminus, colossais em sua corpulência atlética, com alguma caveira de animal amarrada à cabeça para meter medo, com os dedos tintos de sangue, cantando canções guerreiras e invadindo com imenso e ameaçador vozerio a Europa romana. Em outros termos, a técnica do Sr. Hitler para impor silêncio é a ameaça. Nos seus discursos de uma retórica roliça e agressiva como os roncos subterrâneos dos terremotos, há sombras de Dachau e relâmpagos de fuzilamento. Evidentemente, isto é “kolossal” e tem, portanto, o mais seguro êxito. * * * O Sr. Chamberlain, que merece um capítulo especial, tem outra técnica: a do guarda-chuva. Quem usa guarda-chuva denuncia implicitamente que não tem o poder de provocar ou fazer cessar a chuva, e que como não é manda-chuva, só aspira modestamente a agasalhar-se dela. Porque, quem não é manda-chuva precisa de guarda-chuva, para ficar esperando pacientemente, durante a tempestade, até que ela cesse. E, cessada a tormenta, o humilde dono de um guarda-chuva dá graças a Deus pelo fato de, conquanto as pernas e o tronco estejam gotejando, a cabeça e os ombros terem ficado relativamente poupados, devido à proteção do algodãozinho preto, modesto, mas precioso. Por isso mesmo, Chamberlain não pretende fazer calar seus adversários. Deixa, pelo contrário, que Churchill, sir Archibald Sinclair e o Major Attlee digam tudo quanto bem entendem. Pacientemente, ele sorri, enquanto goteja abundantemente sobre ele a chuva dos doestos [insultos], das suspicácias e até das injúrias da oposição. Armado de argumentos irrespondíveis e tonitruantes, a minoria enche o Parlamento com seus clamores, acumula um ambiente de tempestade nas cúpulas ogivais de Westminster, e demonstra por A mais B que o Sr. Mussolini não está fazendo facécias quando reclama o império colonial francês e nem tampouco o Sr. Hitler, quando reclama o império colonial inglês. Quando todo o mundo, animado pela grandeza da tempestade, espera um desfecho teatral e grandioso, supondo que o Sr. Chamberlain terá uma deslumbrante e magnífica explosão de oratória indignada, ou se renderá solenemente aos argumentos da oposição, o Sr. Chamberlain, pelo contrário, fica quieto e, ao responder, sentindo que a tempestade está passando, sorri com o ar beatífico de quem, no fim da tormenta, fecha finalmente o guarda-chuva. Sorri, e diz com o ar meigo de uma “nurse” [bábá] bem treinada: “Tudo isso é verdade, mas eles são tão bons...” Esta resposta cândida e melíflua desconcerta a todo o mundo e acalma os nervos super-irritados. É como se uma chuva de manteiga de cacau derretida caísse sobre o auditório. Todo o mundo se afoga na moleza que jorra abundantemente das palavras do burguês do guarda-chuva. E o Sr. Chamberlain, sorridente, volta para casa secando fleumaticamente seu inseparável guarda-chuva. * * * Haveria ainda outras estratégias interessantes a mencionar. Por exemplo, a do General Franco, rigorosamente inspirada na experiência das touradas tão características de sua terra. Quando na arena acontece que os picadores começam a brigar, chama-se sua atenção para o touro, que constitui no momento o inimigo comum. Automaticamente, os furores convergem para o animal perseguido, que os contendores crivam com suas farpas, fazendo descarregar sobre ele todo o ódio recíproco que se votam um ao outro. Até aqui, o monstro comunista tem feito o papel do touro, para abrandar as brigas entre requetés, falangistas, partidários de Gil Robles e sequazes de Afonso XIII. Quero ver como se arranjará o General Franco quando tiver acabado de abater o touro. Porque, caramba, impor silêncio a espanhóis não é brincadeira! E o Sr. Getúlio Vargas? Sua tática é paradoxal. Em primeiro lugar, ele não tem grande amor ao silêncio. Pessoalmente, ninguém sabe cercar de mais impenetrável silêncio suas próprias intenções e suas próprias “démarches” [providências]. Esse silêncio inviolável é da essência de sua política. Mas pouco se lhe dá que os outros falem ou não. Por isto mesmo, força é reconhecer que, em pleno Estado forte, a imprensa tem tido uma apreciável liberdade, e, se por decoro - porque afinal esta democracia é bem forte - a imprensa não pode gritar alto, tem sido tolerado que resmungue baixinho, dizendo neste tom tudo aquilo que, antes de 10 de novembro, diria gritando. É que o Sr. Getúlio Vargas, quando quer impor o silêncio a alguém, não lho diz. Pelo contrário, escolhe o momento oportuno e então deixa que o “de cujus” diga o que entender. Este momento oportuno para o Presidente é exatamente o mais inoportuno para o paciente que fala e fala gritando. Mas fala no momento em que deveria estar calado. Por isso mesmo, sua ideia esvoaça pelo ar, sem interessar a ninguém. Às vezes, até, o paciente leva algumas pedradas. E se recolhe novamente ao seu primitivo silêncio. Enquanto isto, o Sr. Getúlio Vargas despacha calmamente com seus Ministros no Catete ou dá um passeinho pelas praias e pela Cinelândia. Aliás, o Sr. Getúlio Vargas, de todos os Chefes de Estado contemporâneos, é o único que quase não se incomoda que os outros enunciem suas opiniões. Porque sua arte não consiste apenas em fazer dizer o que convém a si, e o que não convém aos seus adversários. Ele é mais subtil. Seu grande talento con-[siste em..... ND: frase truncada, pois foi saltada pelo menos uma linha na composição tipográfica do jornal] adversários, seja lá o que for. E por isto mesmo podem eles dizer o que bem entendem. |