Plinio Corrêa de Oliveira

 

A aurora dos deuses - II

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, N° 319, 23 de outubro de 1938

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A desilusão política que narrei em meu último artigo não era nem a mais completa, nem a mais profunda das que me aguardavam. Onde meu antagonismo ideológico com as pseudo-direitas se afirmou de modo definitivo e irremovível foi no terreno religioso.

A princípio, chocava-me verificar que muitos escritores católicos tratavam a sério do paganismo nazista e de certas manifestações pagãs ocorridas nas fileiras fascistas. Parecia-me simplesmente imbecil que certos alemães cultuassem seus deuses mitológicos antigos. A meu ver, esse culto era um produto mórbido de certos rebotalhos morais das grandes cidades contemporâneas, de “declassés” da inteligência, de toxicomaníacos, de indivíduos requintados nas piores exacerbações dos sentidos, etc.

Por isto mesmo, esta singularidade louca e repugnante estava fadada a ficar circunscrita a um minguado número de elementos fracassados. Nunca poderia constituir, para a civilização, um perigo digno da atenção dos sociólogos católicos.

Evidentemente - a meu ver - os alemães que se embrenhavam pelas florestas para adorar os deuses wagnerianos da era pré-cristã eram absolutamente tão loucos quanto os paulistas que fossem dialogar com a Mãe d’água à beira do Tietê no Parque Pedro II, ou espreitar o saci-pererê nas ramagens repolhudas do parque da Avenida Paulista.

Era um caso a ser resolvido por psiquiatras e moralistas, e não por sociólogos. E com isto estava dita a última palavra.

*   *   *

Dois fatos convergentes vieram tirar-me dessa agradável atitude de despreocupação.

De um lado, já não eram só alguns escritores católicos leigos que denunciavam como grave o perigo neopagão, mas personagens altamente qualificados na Hierarquia da Igreja, a cujas opiniões é devido um respeito e um crédito imenso, começaram a fazer coro com eles.

Do outro lado, crescia, à vista de olhos, o número de pessoas que na Alemanha, sob a conduta de Rosenberg, procuravam restaurar a velha Religião pagã. Segundo todo o mundo sabe e o “Osservatore Romano”, órgão do Vaticano, já tem informado repetida e minuciosamente, trata-se, ao pé da letra, de um culto religioso. Numerosos elementos constituídos não por toxicômanos e "declassés" (desqualificados) publicamente reconhecidos tais, mas por muitas figuras de alto relevo nas fileiras nazistas embrenham-se pelas selvas, e ali, engolfados no segredo da noite, reproduzem fielmente a adoração ritual dos velhos deuses pagãos, tal e qual ela se dava antes de ser a Alemanha cristianizada por São Bonifácio e seus sucessores.

Nos seus discursos e impressos de propaganda, estes neo-pagãos se ufanam de proclamar que essa adoração não se reveste de um caráter apenas simbólico, mas que tem o cunho claro, positivo, insofismável, da idolatria.

Sob pena, pois, de negar crédito a vozes das mais qualificadas dentro da Santa Igreja, e a fatos cuja evidência se impunha à minha observação, era-me forçoso reconhecer que os deuses pagãos ressuscitaram na velha Alemanha.

*   *   *

Como explicar um fenômeno tão estranho? Para fazê-lo, procurei sua relação com a História da evolução do pensamento alemão de Lutero para nossos dias. A explicação jorrou daí clara e cristalina.

Infelizmente, neste artigo que já se alonga por demais, não poderei senão indicar seus pontos fundamentais dessa explicação. O Dr. José Pedro Galvão de Souza, redator-chefe desta folha, está, porém, preparando uma série de artigos em que desenvolverá interessantes estudos de sua lavra sobre o assunto. Desde já, eu os recomendo à atenção dos leitores do “Legionário”.

Reduzamos a “itens” minhas reflexões:

I - Nosso Senhor Jesus Cristo quis que amássemos ao próximo como Ele nos amou. Decorre daí que os doentes, os fracos, os pobres, os infelizes, tem um direito especial a nosso amor. O que, por sua vez, obriga os poderosos, os ricos, os saudáveis, os felizes, a renunciar a qualquer egoísmo ou orgulho, para servirem com afeto e despretensão àqueles sobre quem tem superioridade ou vantagem. Esse princípio foi plenamente aplicado na Idade Média.

Não conduziu a um igualitarismo louco, mas levou, dentro da sociedade mais aristocrática e hierarquizada que a Europa tenha conhecido, reis e rainhas, príncipes e princesas, a se curvarem reverentes e servirem com carinho a simples leprosos, tidos em horror por todos.

II - Entretanto, a tendência de nossa natureza, afetada pelo pecado original, é outra. Sem a luz da doutrina de Cristo, o homem oprimiria naturalmente os mais fracos, fugiria dos infelizes e teria em horror os doentes. Prova-o a História. Antes de Cristo, a opressão do fraco e o desprezo ao infeliz e ao doente eram a regra geral de que só se excetuava o povo eleito. O amor pleno e desinteressado do próximo só pode medrar onde medra a Igreja, e fenece onde a Igreja é oprimida.

III - A Lei de Cristo é uma lei de Amor. A lei do homem que não é cristão - e portanto pagão - é a lei da força. E assim como aqueles que admiram a Lei do Amor tendem a amar e crer no seu Divino Autor, assim também aqueles que apostatam do Amor para servir a força tendem aceitar a apostasia completa, isto é, a renúncia a Cristo, e implicitamente a paganização. Porque não há meio termo: quem não é cristão é pagão.

IV - Um estudo acurado demonstra que o princípio do predomínio da força está na medula do pensamento de Lutero, dos demais pseudo-reformadores e dos enciclopedistas. A despeito de aparências em sentido contrário, é esta a realidade. Desde que a sociedade ocidental rompeu com a Igreja, sua História pode ser descrita, em última análise, como a substituição gradual da Lei do Amor pela da força. E isto não apenas nas relações entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, etc., mas até entre as nações.

V - Quando apareceu na Europa o primeiro surto de ateísmo, pareceu aos espíritos da época o mais completo absurdo, uma aberração tão completa e tão estúpida quanto nos parece hoje o paganismo. Até Voltaire (!) se levantou contra ele. No entanto, aí está o ateísmo triunfando na Rússia, e tentando a ferro e fogo a conquista do México e da Espanha.

VI - No entanto, o ateísmo é mais absurdo do que o paganismo. Porque é menos errado adorar um ídolo como deus, do que afirmar que não há Deus. A História o prova, mostrando que, se houve povos idólatras, nunca houve povos ateus.

VII - A tal ponto é isto verdade que, bem pesadas as coisas, pode-se adiantar que se o comunismo conseguisse apossar-se do Ocidente e torná-lo ateu, dentro de poucas gerações esses ateus se transformariam em idólatras se resistissem ao apostolado da Igreja. A idolatria é o verdadeiro ponto terminal do itinerário religioso comunista. E o nazismo alemão não faz senão encurtar o caminho.

VIII - A tendência normal e lógica do mundo contemporâneo dominado pela força, e que só a ela quer obedecer, é para o paganismo. A inclinação universal para a força torna universal o perigo paganizante, que não é, pois, só alemão.

IX - Pode parecer absurdo que decaia tanto a inteligência humana. Mas  se decaiu tanto a inteligência alemã, ou ao menos a de certos alemães, por que não poderá suceder o mesmo a brasileiros, suecos, turcos ou chineses? Argumenta-se dizendo que ninguém pode, hoje em dia, crer em religiões que não passam de lendas e fábulas. Não é o que diz o Apóstolo São Paulo, quando profetizava que dia virá em que os homens sentirão um comichão vivo nos ouvidos, e que só quererão aceitar fábulas.

X - Aliás, que grande esforço precisa fazer uma pessoa que crê em figas, em bolas de cristal, em quiromancia, etc., para crer em Odin, em Wotan? As épocas de maior cepticismo são as de maior superstição. A superstição é um corolário necessário da descrença, a vala comum para a qual descambam os cépticos. Por que não descambará para essa vala o mundo contemporâneo céptico e orgulhoso, no qual tão freqüente se tornou o pecado contra o Espírito Santo?

XI - Em suma, afirmo que os velhos deuses ressuscitam de sua poeira duas vezes milenar, e que o atual crepúsculo comunista se terminará, em última análise, em uma aurora de deuses sanguinolentos e brutais, signos novos de uma humanidade criminosa que se afastou de Nosso Senhor Jesus Cristo.

XII - Cumpre, porém, acrescentar que as portas do inferno não prevalecerão contra a Santa Igreja de Deus. Nossa geração ou, ao mais tardar, a geração de nossos filhos verá os Julianos modernos morrerem como Juliano antigo, feridos de morte, sangrando no lodo de um charco, e exclamando “venceste finalmente, Galileo, venceste”. Este grito de ódio fará eco à harmonia universal com que os humildes, os fracos, os infelizes e os pobres e os doentes entoarão com  os Coros celestes o sublime cântico do Natal: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade”.

A paz de Cristo instaurada no Reino de Cristo libertará mais uma vez o mundo do paganismo e da opressão. 


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