Plinio Corrêa de Oliveira

 

A aurora dos deuses - I

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de outubro de 1938, N. 318

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Sou um fascista convertido. Por isto compreendo e acolho com simpatia todas as invectivas que me tem sido dirigidas a propósito da atitude anti-direitista. Compreendo-as porque há anos atrás, eu as teria feito, idênticas, ao jornal que tivesse a orientação que tem hoje o “Legionário”. Simpatizo com elas porque vejo que são, muitas vezes, produto de intenções retas e louváveis, que teriam outra orientação se um esclarecimento mais sistemático da opinião católica tivesse sido empreendido em nosso meio. E, exatamente porque as compreendo e com elas simpatizo, julgo-me autorizado a refutá-las. Conheço minuciosamente, por experiência própria, a mentalidade que se convencionou chamar “direitista”. E, por isto, conheço com toda a precisão cada um de seus erros.

* * *

É simples a análise que a mentalidade direitista faz do mundo contemporâneo.

O protestantismo inoculou na Europa os princípios tóxicos do individualismo e do liberalismo, aplicando-os na mais elevada e mais fundamental das esferas de cogitação do pensamento humano: a Religião. Dessa culminância, os princípios liberais e individualistas rolaram, como sinistras bolas de neve, sobre todos os outros planos da vida intelectual: a filosofia, o direito, a economia, as ciências etc. E da esfera do pensamento derivaram para a da ação. A Enciclopédia foi a Revolução em potência. A Revolução foi a Enciclopédia em ato.

Evidentemente, porém, a Revolução Francesa com seus “imortais princípios” representava apenas uma aplicação incompleta das premissas liberais individualistas de Lutero. A avalanche da Revolução não se poderia deter na destruição do arcabouço político da Europa cristã e monárquica. Necessariamente, deveria rolar mais para longe. Daí os princípios destruidores da propriedade e da família, daí Karl Marx, daí a III Internacional e finalmente a bolchevização do mundo inteiro.

Incontestavelmente, é para o abismo comunista que rolavam todas as tendências filosóficas, políticas, sociais e econômicas do século passado. Na realidade, tudo nos arrastava para lá. E, em essência, o grande problema político do século XIX e do século XX seria a luta entre o espírito de Revolução e o espírito de Construção.

Nas duas extremidades do mapa ideológico contemporâneo estavam o Kremlin e o Vaticano. Aproximar-se de um seria necessariamente afastar-se do outro. Combater um, seria inevitavelmente apoiar o outro. Por isso mesmo, e porque os lauréis da vitória teriam que caber inevitavelmente a um ou ao outro, todo o movimento que combatesse o comunismo seria necessariamente simpático à Igreja. E todo o movimento que combatesse a Igreja seria necessariamente simpático ao comunismo.

De tal maneira estava tudo isto na ordem concreta e natural dos fatos que qualquer movimento deveria se encaixar nesta classificação, quer quisesse quer não quisesse. Um movimento que pretendesse ser ao mesmo tempo anticomunista e anticatólico seria julgado como um contrassenso. Dizer-se ao mesmo tempo anticomunista e anticatólico era expor-se a ser tido por imbecil, para os que compreendessem a fundo a situação. Seria possível a alguém ser anticomunista sem ser católico. Mas ser anticatólico além de anticomunista era o que não se podia compreender.

Assim postas a coisas, como não ser fascista? Concedamos, para argumentar, que o fascismo tivesse pontos de doutrina hostis aos da Igreja. Admitamos, ainda, que essas divergências doutrinárias fossem profundas. Desde que esmagasse o comunismo, o fascismo criaria necessariamente um tal estado de coisas que a vitória ficaria, em última análise, nas mãos do Vaticano. De mais a mais, estes pontos de divergência não estavam no eixo do pensamento fascista. Eram excrescências acidentais que, de um momento para outro, poderiam ser suprimidas. E por que não esperar que o fossem, quando à testa do Partido Fascista se encontrava um homem como o Sr. Mussolini, no qual tantos e tantos católicos aclamavam o Bayard ou o Godofredo de Bouillon dos tempos modernos, paladino irrepreensível da causa da civilização cristã contra a barbárie (...) do comunismo?

A todas estas razões de simpatia para com o fascismo, inspiradas no interesse da Igreja, se acrescentavam outras de ordem secundária que me confirmavam nesta atitude.

A Providência deu-me sempre a graça de ver a fundo o mal que o liberalismo produzia e produz na sociedade contemporânea, o câncer profundo e voraz que ele instalou no mais íntimo das vísceras do mundo hodierno. Percebi nitidamente como, do bojo de suas doutrinas, saía o comunismo anarquizante e ateu. Detestei de todo o coração a árvore e os frutos, e (...) levei, na luta contra o liberalismo e o comunismo, todo o vigor de minhas convicções religiosas, de minhas convicções políticas, e das tendências essenciais de meu temperamento.

* * *

Por isto tudo, não tinha suficientes palavras de reprovação para os católicos que se diziam antifascistas e antinazistas. Necessariamente, a vitória do nazismo e do fascismo teria de acarretar a da Igreja. E isto de modo tão positivo, que esmagado o comunismo, a vitória seria nossa ainda que Hitler e Mussolini no-la quisessem roubar. O que importava era esmagar a hidra comunista. Depois, um ajuste de contas entre os elementos anticomunistas nos daria inexoravelmente a tão almejada vitória.

Qualquer obra, pois, que tendesse a esclarecer os católicos sobre os dissídios doutrinários entre o fascismo e o nazismo seria uma obra de divisão entre os filhos da luz. Portanto, uma manobra voluntária ou involuntariamente bolchevizante. Melhor seria suportar em silêncio todas as dificuldades até que Moscou estivesse golpeada de morte. Depois, a vitória seria nossa.

Especialmente quanto ao nazismo, fazia eu reiteradamente esta reflexão. E tive uma dificuldade quase invencível em compreender a política antinazista de Bruning, que me parecia quase tão inexplicável quanto a política anticatólica de certos elementos do partido nazista.

Em última análise, se a grande tarefa consistia em esmagar o comunismo, qualquer divisão entre os anticomunistas era pura e simplesmente uma traição. Como escapar a estes princípios de uma clareza fulminante?

Julguei conveniente publicar esta introspecção política para provar aos meus leitores “direitistas” até que ponto compreendo suas objeções, que já vivi intensamente.

Hoje em dia, a experiência me convenceu de que estava errado. Continuo direitista. Mas nego peremptoriamente que o fascismo e o nazismo, tanto quanto a Action Française, sejam direitas. A experiência me provou que são esquerdas materialistas e socializantes, mais ou menos disfarçadas. Onde me parecia ver desfraldado o estandarte de São Miguel, encontrei os galões dos soldados de Lúcifer. Onde me parecia ver os soldados de Deus, encontrei na realidade os asseclas mais ou menos conscientes das divindades ferozes e diabólicas do paganismo antigo. Onde me parecia só haver dois campos, o do Kremlin ateu e o do Vaticano, encontrei na realidade um terceiro campo, que é o da Alemanha pagã.

Sem que se compreenda na sua essência a ressurreição dos deuses, não é possível compreender o momento que passa, nem sequer a atitude política do “Legionário”. É o que procurarei demonstrar no próximo número.


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