Plinio Corrêa de Oliveira

 

Os frutos ideológicos da paz

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de outubro de 1938, N. 316

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São tão complexos os problemas doutrinários, políticos, sociais e econômicos que se entrelaçam hoje em dia, que seria impossível abordá-los de conjunto, já não digo em um livro, mas em uma enciclopédia inteira. A fortiori, portanto, não caberiam nas dimensões exíguas de um artigo de jornal.

Sou, pois, forçado a deixar de lado as consequências políticas, sociais e econômicas resultantes do acordo de Munique, para tratar apenas do aspecto ideológico da questão. É este o ponto de vista que mais nos interessa, porque, em última análise, os homens e as civilizações se salvam e se perdem pelas idéias que professam, e é sempre no terreno da luta das idéias que se resolvem os destinos dos povos.

* * *

Não vem a propósito discutir o aspecto moral ou a durabilidade da paz resultante das misteriosas confabulações de Munique. Antes do conflito diplomático tcheco-germânico, o mundo se encontrava dividido entre duas grandes correntes ideológicas, doutrinariamente capitaneadas por Hitler e Stalin. De um lado, as democracias, de outro lado os estados totalitários. No setor democrático a bolchevização se operava com uma segurança inexorável. Tudo contribuía para isto, desde as premissas funestas da Revolução Francesa, até a influência política incontestável da III Internacional. No setor totalitário, a nazificação não era menos visível nem menos rápida do que a bolchevização do setor oposto. Basta olhar para o recente desenvolvimento da política racista italiana, para se ter disto uma ideia segura.

Em outros termos, portanto, o mundo estava sendo disputado por duas grandes forças, o comunismo e o nazismo. As democracias e os estados totalitários não nazistas outra coisa não eram senão repúblicas bolchevistas ou nazistas em botão. Não seria necessário muito tempo para que estes botões venenosos e sem beleza desabrochassem em flor... acompanhados de seus numerosos e agudíssimos espinhos.

Se reduzirmos ao devido valor os termos “nazismo” e “comunismo”, a diferença entre ambos é insignificante. O comunista é ateu, materialista e partidário da omnipotência do Estado. O nazista não é menos ateu, nem menos materialista, nem menos estatolatra. A imoralidade comunista é satânica. E a obra paganizadora do nazismo não o é menos. Porque, em nossos dias, erguer altares a ídolos decrépitos e ilusórios, abater as cruzes e perseguir a Santa Igreja não é obra apenas das más inclinações do homem, como pode ter sido uma ou outra vez antes de Constantino. Hitler, exatamente como Juliano o Apóstata, é um fenômeno histórico que não se explica sem a ação do demônio.

Optar entre o comunismo e o nazismo é optar, portanto, entre Lúcifer e Belzebu, entre o demônio e o demônio.

É compreensível, pois, como os católicos mais estreitamente ligados ao espírito da Santa Igreja de Deus, e entre eles aquele gloriosíssimo e extraordinário Schuschnigg que é mártir desse sublime delito, se recusaram a optar entre Hitler e Stalin, entre as democracias [comunistizantes] e o totalitarismo, ficando sós com Jesus Cristo e seu Vigário, o Papa.

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Não pretendo, já disse, abstrair dos aspectos políticos e econômicos da crise europeia, para ver nela apenas um conflito de idéias. Seria fazer um juízo demasiadamente alto dos estadistas contemporâneos supor que eles se dirigem exclusivamente pelas idéias que têm... ou dizem ter. No entanto, é incontestável que o aspecto ideológico da luta era bem nítido, e  que entre o quadrilátero anglo-franco-tcheco-soviético e o eixo Roma-Berlim havia diversidade de programas políticos muito clara. O fim era o mesmo: a descristianização total do mundo. Os meios, diversos em muitos pontos.

Dos dois blocos, qual o que levou vantagem com os acordos de Munique? Nem ao Conselheiro Acácio, ao famoso Pacheco ou a Monsieur de la Palisse [personagens da literatura portuguesa e francesa, conhecidos por dizerem o óbvio, n.d.c.] alguém ousaria dirigir semelhante pergunta. A vitória de Hitler foi estrondosa, completa, total. O Estado tcheco foi pura e simplesmente atirado às feras. Arrancaram-lhe um trecho de território já hoje calcado aos pés por tropas nazistas. Acenam-lhe agora com a ameaça de um plebiscito (o Sarre e a Áustria já provaram muito claramente o que valem esses plebiscitos fraudulentos até o último ponto) para arrancar outras regiões sudetas. Declara-se que também a Polônia e a Hungria tirarão de seu território o que quiserem. E, com o pequeno fragmento de estado tcheco que sobrar, constituir-se-á alguma republiqueta famélica, à qual a França, a Inglaterra, a Itália e a Alemanha dão a promessa desvalorizada de uma garantia de independência. Isto em um período em que nem o último dos falidos da praça de São Paulo tem seu crédito moral tão reduzido quanto o de algumas das maiores potências do mundo.

Além disto, houve o triunfo moral. Praticamente, o Sr. Hitler viu o primeiro ministro da poderosa Albion, o Presidente do Conselho dos Ministros da altiva Gália, e o Duce vistoso e barulhento da gloriosa Itália acorrerem pressurosos a seus pés, pedindo-lhe o favor de sua benignidade, o benefício de sua tolerância, a graça de sua generosidade, para a manutenção da paz.

Em matéria de humilhação, a França e a Inglaterra não podiam ir mais longe. Beberam o cálice até a última gota. E quando se lhes anunciou que mediante a ingestão de mais algumas gotas talvez conseguissem a paz, choraram de alegria.

* * *

Manda imperiosamente a justiça que se reconheça um aspecto nobre nesse amor à paz. É certo que ela custou tão caro, que talvez tenha sido um erro. Mas, quando a Igreja tiver renovado o mundo, e os políticos e historiadores souberem apreciar com olhos cristãos a História e a política, ver-se-á que não foi de Chamberlain, nem de Daladier, nem de Mussolini, o mais triste papel. Este coube ao homem sanguinário e imprudente, voluntarioso e inflexível, que só saciou seu orgulho e só poupou a vida a milhões de homens, mediante uma humilhação injustificada imposta a nações mais fracas ou mais amantes da paz.

Moralmente, só houve um grande vencido: aquele que politicamente venceu.

Um fato talvez mais importante do que a transformação do mapa centro-europeu foi a exclusão da Rússia das confabulações de Munique. Essa exclusão preludia uma transformação profunda na política interna e na orientação ideológica da França e da Inglaterra.

Datam de há muito tempo manobras tendentes a aproximar dos Estados totalitários numerosos estadistas liberais da Inglaterra e da França, que, compondo com Hitler e Mussolini uma quádrupla aliança, excluiriam a Rússia da vida política europeia, e encaminhariam os Estados democráticos para uma gradual “democratização” cujo ponto terminal bem poderia ser o nazismo.

Essa manobra, a princípio discreta, tornou-se cada vez mais positiva até culminar com as confabulações de Munique.

Tanto Daladier quanto Chamberlain são membros de partidos liberais. No entanto, nesses partidos que são de um liberalismo apenas convencional, há uma corrente pronunciada que pleiteia a revisão dos estatutos políticos da França e da Inglaterra, e, ao mesmo tempo que uma aproximação com o eixo Roma-Berlim, uma fascistização das instituições democráticas.

Pensamos que essa orientação, já hoje muito nítida, poderá trazer grandes benefícios ou grandes malefícios.

Benefício incalculável será a exclusão da Rússia dos negócios internacionais: pobre país outrora corroído pelo cisma e hoje pasto do comunismo, a Rússia deverá aguardar no ostracismo o dia marcado pela Providência para que cesse sua expiação. É possível que algum dia o Ocidente católico liberte. É possível que os próprios russos se reergam da opressão em que jazem. Entretanto é positivo que, enquanto não se fizer a derrubada do comunismo, a Rússia deve ficar rigorosamente isolada.

Benefício incalculável será também que a influência franco-inglesa consiga deter na Alemanha a marcha para o paganismo, enquanto a influência ítalo-alemã consiga deter na França e na Inglaterra a marcha do comunismo. Essa homeopatia política, comportando a aplicação do princípio de Hanemann, “similia similibus curantur”, seria salutar.

Mas seria incalculável o malefício, se a Inglaterra e a França se nazificassem por sua vez, cedendo à influência de Hitler.

Dentro do novo quadrilátero que se esboça, quem terá a preponderância? Se o Sr. Hitler, a nazificação se torna provável. Do contrário, risonhas perspectivas se abrem para o mundo.

Mas será lícito duvidar da influência do Sr. Hitler?


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