Plinio Corrêa de Oliveira

 

Genealogia de monstros

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, No 302, 26 de junho de 1938

  Bookmark and Share

Os escritores católicos tem insistido - muitas vezes com menos energia do que seria mister - sobre o nexo íntimo que liga a pseudo-Reforma protestante e o humanismo pagão, à Enciclopédia e ao livre pensamento voltaireano, e por sua vez a Enciclopédia e o livre pensamento à Revolução Francesa e ao comunismo. Quem não possuir uma noção exata, objetiva e documentada a respeito da relação de causa e efeito existente entre esses diversos acontecimentos, quem não se tiver imbuído desta convicção até à medula dos ossos e a raiz dos cabelos, quem não conhecer com todos os detalhes (...) a preparação de todos esses cataclismos, não pode ter uma visão segura da História e da política de nossos dias. Esses conhecimentos, a meu ver, fazem parte do A B C de qualquer jornalista ou pensador católico que cogite de questões políticas e sociais.

No entanto, aqueles que, no Brasil, se ocupam com o combate ao câncer do liberalismo e ao seu genuíno produto, que é o comunismo, esquecem-se muito freqüentemente de que o liberalismo não é o único filho do Protestantismo, e que este gerou outro filho, não menos parecido com o pai, que é o nazismo.

É certo, é evidente, é incontestável que o liberalismo é filho genuíno do protestantismo. Mas ele foi o fruto com que o protestantismo envenenou principalmente as nações latinas, levadas, muito mais propensas por seu temperamento para com os princípios liberais, do que os povos nórdicos, pachorrentos e disciplinados.

No elemento germânico em geral, o protestantismo, além do vírus do liberalismo, inoculou outro veneno, que são as teorias da força. Estas teorias (aliás, muito aparentadas com a concepção democrática da vitória sistemática das maiorias) é que geraram toda a concepção militarista e brutal da política internacional de Frederico II e de muitos dos Hohenzollern, e, depois, criaram o Império de Bismarck, a paixão militarista alemã, as escolas filosóficas alemãs do século XIX e, por fim, como produto arquetípico da filosofia nietzscheana, o hitlerismo.

 

Diante dos olhos estarrecidos de toda a humanidade sensata, o hitlerismo destrói os altares de Nosso Senhor Jesus Cristo, substituindo novamente pelos ídolos pagãos. O que pensar deste vergonhoso índice de decadência a que chegamos? Delírio momentâneo de um ditador obcecado pelo mando? Ou, pelo contrário, sintoma profundo de uma corrupção ideológica e moral, característica deste “fim de civilização” que vivemos? 

 

De há muito, ambos os sucedâneos do protestantismo, isto é, o liberalismo e as doutrinas da força, molestam a Igreja, criando-lhe dificuldades humanamente invencíveis, às quais Ela se tem sobreposto graças, unicamente, a um especial auxílio da Providência Divina.

No século passado, tivemos dois pequenos ensaios do que seriam no futuro a perseguição comunista e a perseguição nazista. Na França, a política laicista dos Gambetta e dos Combes oprimiam a Igreja em nome da liberdade, fechando Conventos, confiscando os bens eclesiásticos e expulsando Nosso Senhor das Escolas, com o argumento que os “sem Deus” da Rússia não fizeram senão ampliar e reeditar. Ao mesmo tempo Bismarck fazia, na Alemanha, guerra de morte à Igreja em nome das doutrinas cesareanas da força, com alegações que também elas foram apenas ampliadas e reeditadas pelo nazismo. Em um caso e no outro, porém - e é capital que se retenha isto - os frutos eram idênticos, isto é, a massa do povo era tanto quanto possível descristianizada, com evidente júbilo para quantos, desde tempos longínquos, tramavam a destruição da civilização católica e da Santa Igreja de Deus.

  *

Se muita gente compreendesse isto, veria o nazismo com outros olhos. Tenho um número apreciável de amigos que vêem a política contemporânea sob o único prisma da gênese (...) do comunismo pelo liberalismo, e deste pelo protestantismo. (...) Seu grande erro, porém, consiste em considerar o liberalismo como filho único da reforma. (...) O protestantismo produziu na Alemanha um processo evolutivo de idéias filosóficas e fatos político-sociais, que, paralelamente ao liberalismo e em aparente antagonismo com este, gerou com uma lógica de ferro (verdadeira se não fossem erradas suas premissas) o nazismo.

Por isto, é preciso que se compreenda que o furor anti-religioso do nazismo não é um episódio transitório e fugaz da vida contemporânea, uma explosão de imbecilidade ocorrida subitamente nas fileiras anticomunistas alemãs, um delírio que passará mais cedo ou mais tarde sem ter deixado maiores vestígios. O nazismo é resultado de uma evolução profunda, sua política anti-religiosa faz parte integrante de seu pensamento, e esse pensamento é (...) visceralmente anti-religioso. (...)

  *

Sem subir a longas digressões doutrinárias para justificar meu pensamento, bastará que eu alinhe alguns fatos. Eles mostrarão que o nazismo tem desenvolvido sua política religiosa com prejuízo manifesto das reivindicações mais essenciais de sua política interna e externa. Diga-se de Hitler o que se disser, força é reconhecer que ele não é um tolo. Todos estes inconvenientes de sua política anti-religiosa não lhe terão passado desapercebidos. Por que, então, arca com eles, se não porque fazem parte integrante de seu programa e de sua ideologia?

Enumeremos alguns itens:

1) O Sr. Hitler apregoa ser um paladino da luta contra o comunismo. Não percebe ele que sua política anticatólica o priva do apoio que vinte milhões de católicos alemães lhe dariam nesta luta? E que, perseguindo a Igreja, ele divide estúpida e inutilmente as forças de reação anticomunista?

2) O Sr. Hitler quer instituir na Alemanha um regime autoritário. Não percebe ele que não há melhor força para disciplinar o povo e prestigiar a autoridade do que a Igreja que só aspira à influência espiritual? Por que se priva ele desse apoio, e inaugura na Alemanha um regime tirânico com o qual nenhum católico pode estar de acordo?

3) O Sr. Hitler quer unificar todos os alemães dentro de um grande bloco homogêneo. Por que exclui deste bloco 28 milhões de católicos que hoje fazem parte do III Reich? Por que guerreá-los, se seu programa é unir?

4) O Sr. Hitler quis anexar a Áustria à Alemanha. Não percebeu ele que já teria conseguido seu desideratum sem violência, há muitos anos, caso sua política anti-religiosa não inspirasse o horror que inspirou aos infelizes e gloriosos católicos austríacos?

5) O Sr. Hitler gosta de fazer propaganda nazista em todos os países do mundo. Não compreende ele que sua propaganda fica condenada ao mais irremediável fracasso na América Latina, que ele tanto cobiça, porque o nazismo é considerado, hoje, entre os católicos, como uma heresia política não menos detestável que o comunismo?

6) O Sr. Hitler não ignora que se este tivesse uma política religiosa diametralmente oposta à atual, seria tido pelos católicos do mundo inteiro como um novo Constantino, figura providencial à qual todos os filhos da Igreja prestariam sua simpatia desde a Patagônia até o Oceano Ártico, e desde Lisboa até Pequim? Se fosse esta a posição do Sr. Hitler, na própria França ele encontraria muita gente que o atacaria sem entusiasmo sob as ordens de um Blum. E creio que poucos seriam os governos que se permitiriam de arrastar o nome do Sr. Hitler pela rua da amargura, como fazem agora. Ora, o Sr. Hitler, sempre tão hiper-sensível aos ataques da imprensa mundial, por que então persegue a Igreja?

7) Dir-se-á, talvez, que ele tem contra os católicos queixas amargas, porque o extinto Partido do Centro sempre se recusou a confundir suas fileiras com as do nazismo. Tais queixas seriam injustas. Mas ainda que não o fossem, que queixa pode ter o Sr. Hitler do cardeal Innitzer? O Sr. Hitler que soube tão bem se reconciliar com antigos e ardentes inimigos quando seu interesse assim o exigiu; o Sr. Hitler que...

Aqui ficam estas perguntas. Através delas o leitor poderá compreender que é pueril qualquer esperança de reconciliação entre o nazismo e a Santa Igreja, e que o fenômeno nazista é algo de imensamente mais perigoso do que à primeira vista pode parecer.

Nota: Os negritos são deste site.


Bookmark and Share