"O
Legionário", nº 291, 10 de abril de 1938
Terminados
os afazeres extenuantes de um dia inteiro de luta e de trabalho, resolvi
assistir a uma bênção do Santíssimo Sacramento. Ainda tinha diante de mim uma
hora inteira. Mas, resolvi dirigir-me à Igreja quanto antes, esperando ali, que
tivesse início a solenidade litúrgica.
Entrei.
O ambiente correspondia exatamente à minha expectativa. Duas pálidas lâmpadas
elétricas acesas em uma nave lateral espalhavam pelo corpo imenso do templo uma
luz desigual e caprichosa que recortava sobre o chão de pedra e as paredes
sobriamente decoradas, as sombras inesperadas das grossas colunas do edifício.
Da rua, a iluminação pública projetava sobre as janelas uma luz apenas
suficiente para fazer brilhar os rubis e as safiras dos vitrais, sem, contudo,
ferir a augusta escuridão da Igreja. Os claxons [as buzinas] dos automóveis, a voz dos moleques que
anunciavam os jornais, o rumor confuso do trânsito, todo o gemido da grande
cidade que, já nas últimas horas do dia, vergava sob o fardo da tarefa
quotidiana quase concluída, repercutia no interior da igreja enobrecido pelos
artifícios mágicos e transformadores de um eco que lhe imprimia uma nota grave
de sobrenaturalidade.
Julgava-me
só, mas após certo tempo percebi que alguém terminava a Via Sacra, na nave
direita da Igreja. E percebi também que era um jovem jornalista católico e,
pois, um colega meu.
Aproximando-se
cada vez mais, chegou à XIIª Estação, onde, aos pés de um Crucifixo, ouvi, sua
oração proferida à meia voz. Ei-la:
"Eis-me
chegado, Senhor, à Estação em que se contempla vossa morte na Cruz.
"É
esta, por excelência, a estação em que se comemora a abundância de vosso amor.
Nela, o ódio e a perversidade, realizando até o fim o crime pavoroso que fora
tramado no sinédrio e completado com a covardia do procurador de César,
perpetraram a maior monstruosidade de que o gênero humano seria capaz.
"De
horror, até os seres inanimados se comoveram. O sol se toldou. O véu do Templo
se rasgou. As entranhas da terra gemeram e conturbaram o orbe com um terremoto
febril. As próprias sepulturas fendiam suas lajes seculares, e os cadáveres dos
mortos que dormiam, talvez há milênios, interromperam seu sono, percorrendo
Jerusalém cheia de terror, pois que até os justos saíam de suas covas
funerárias na atitude de um protesto terrificante.
"E,
entretanto, corações humanos havia que não se tinham comovido.
"Foi
exatamente essa hora de dor e de supremo abandono, que escolhestes para as mais
abundantes de vossas misericórdias.
"E
vosso amor, vencendo em um prodígio de caridade a mais requintada malícia
humana, expandiu-se então irresistivelmente sobre os que mais Vos odiavam.
"Com
um olhar de ternura, conquistastes um ladrão que ficou sendo chamado bom, não
tanto pela sua bondade, quanto pela vossa. Ao longe, vossa graça procurava os
amigos infiéis que Vos haviam abandonado sem piedade nas mãos dos algozes, o
procurador covarde que Vos entregou à sanha das multidões facinorosas, o
sinédrio pérfido que tramara vossa morte e, Senhor, mais ainda, enquanto
sofríeis as torturas de vossa Paixão, vossa graça procurava pela última vez o
filho da perdição, que Vos tinha traído com um beijo!
"Por
isto, nesta Estação, Senhor, minha oração não será por mim, nem por aqueles a
quem eu amo, e nem mesmo por aqueles que Vos amam.
"Permiti,
Senhor, que Vos peça misericórdia para aqueles que mais Vos ofendem.
"Não
olheis para o ódio de que seu coração está cheio. Olhai, antes, para o amor que
a vossa graça derrama no coração dos justos, o amor que a vossa graça lhes
inspira para com os perseguidores de vossa Santa Igreja.
"Vós,
Senhor, que sondais até os rins e o coração, vistes inúmeras vezes em mim o
pecado e a miséria. Mas vistes, também, que nunca, em nenhum dia de minha vida,
deixei de amar os vossos inimigos, aqueles inimigos acérrimos que, loucos de
ódio contra Vós, também se voltavam para mim, vosso servo, querendo fazer-me o
mal que a Vós fariam se pudessem.
"Vós
sabeis, Senhor, com que ardor lhes desejo todo o bem, e com que amor sempre
quis a sua conversão. Se os feri, foi para curá-los. Se os desgostei, foi para
salvá-los, se os repreendi, foi para ressuscitá-los. Eles, porém, me pagaram o
bem com o mal. Mas Vós sabeis, que nem por isto deixei ou deixaria de os amar e
de lhes fazer o bem, com o risco mesmo de minha própria vida...
"Olhai,
Senhor, para as satisfações que, em seu nome, oferecem as santas virgens e os
varões consagrados a Deus nos claustros. Olhai para as orações dos Santos que
inebriais no Céu com delícias de vosso amor eterno. Olhai, Senhor, para o
Coração de vossa Mãe Santíssima, aquela obra-prima de vosso Poder e de Vossa
Misericórdia, que, colocada junto a Vós no Reino da glória, não cessa de rogar
pelos vossos inimigos, com um amor tanto mais insistente, quanto mais eles se
distanciam de Vós.
"Mais,
Senhor, mais ainda! Olhai para Vós mesmo, olhai para o Precioso Sangue de que
ungistes as ruas da Jerusalém pecadora, e que ofereceis hoje no Sacrifício
augusto de nossos altares. Senhor, pelo vosso próprio Sangue, salvai vossos
inimigos!
"Olhai,
Senhor, para aqueles que se prostram submissos, adorando ídolos humanos, quando
só Vós sois Deus; olhai para os homens cheios de orgulho, que querem destruir
vossos altares para impor à adoração da humanidade criaturas vossas que
blasfemam vosso nome e calcam aos pés vossa lei.
"Olhai,
Senhor, para aqueles que afirmando não existir Deus, pregam a destruição da
família e a subversão de todas as instituições divinas e humanas, enchendo de
furor diabólico as massas desvairadas pela demagogia.
"Olhai, Senhor, para aqueles
que se encontram separados de Vós pela heresia ou pelo cisma, olhai ainda para
aqueles católicos inditosos, que pertencem ao Corpo da Igreja, mas nos quais a
vossa graça já não reina. Olhai, sobretudo, para aqueles que quereriam servir-Vos servindo-se a si próprios, e, fechando os olhos
ao senso católico, procuram as doutrinas que mais agradam a sua ambição, em
lugar de procurar as que mais se ajustam ao pensamento de vosso Vigário na
Terra.
"Senhor,
que vossa misericórdia penetre até no cárcere daqueles que se acham presos no
Brasil, porque, em 1935, tiveram a perfídia de levantar as armas contra Vós, e
de praticar na calada da noite o assassinato e a rebelião. E que, ali, vossa
graça lhes diga aquelas palavras cheias de vida eterna com que convertestes a Samaritana, transformastes a Madalena, e fizestes manso
como um cordeiro o coração feroz do ladrão penitente que a vosso lado
morreu..."
Subitamente,
um toque de sino rompeu o silêncio e a Igreja se encheu de luzes.
Colhido
de surpresa, meu colega se levantou bruscamente e fez às pressas as últimas
Estações.