Plinio Corrêa de Oliveira
“Contra o vandalismo e o extermínio”
Legionário, 27 de junho de 1937, N. 250
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Subordinado ao título acima, vem sendo feita pelo “Estado de S. Paulo” uma vigorosa campanha em prol da preservação do patrimônio histórico de nossa Terra. A campanha, como todos se lembrarão, foi lançada por um artigo do Sr. Paulo Duarte em que relatava as observações que tiveram a oportunidade de fazer nas igrejas de São Miguel e Itapecerica, cujo estado de conservação deixava muito a desejar. A esse artigo, seguiu-se uma verdadeira avalanche de cartas todas elas publicadas no “Estado de S. Paulo” sob a mesma epígrafe “Contra o Vandalismo e o Extermínio”. Entre as principais missivas, destaca-se um ofício do Instituto Histórico e Geográfico do Estado, um artigo do ilustre historiador Afonso de Taunay e uma carta do vereador Antônio Vicente de Azevedo. Também o “artista” Oswaldo de Andrade se manifestou a este respeito. E tudo indica que vai continuar a correr por mais alguns dias essa torrente epistolar. Esses os fatos. Vamos, agora, ao comentário. Preliminarmente, é necessário afirmar que todos os católicos de São Paulo, desde o Ex.mo Rev.mo Sr. Arcebispo Metropolitano até o último dos fiéis da mais remota das paróquias da arquidiocese, consideram com simpatia viva e carinhosa qualquer esforço que se faça pela preservação do patrimônio histórico e artístico de São Paulo, máxime quando estão em jogo os últimos e poucos vestígios que nos sobram de nosso passado religioso. Sem estarmos autorizados a falar em nome de quem quer que seja, podemos adiantar que as Autoridades Eclesiásticas sempre estiveram, estão, e continuarão sempre a estar dispostas a cooperar com todos os esforços que apareçam para conservar nossas relíquias históricas. Não se trata aí de uma simples afirmação. Os fatos estão bem à vista de todos, a atestar o que dizemos. Os próprios missivistas que têm enviado seu apoio ao Sr. Paulo Duarte, confirmam-nos implicitamente ao enumerar os monumentos de nosso passado que ainda restam incólumes. Quais são eles? Igrejas, e só igrejas. Onde estão os edifícios públicos de São Paulo de outrora, que o Estado deveria ter conservado? Com exceção da cadeia velha transformada, não sem certa ironia, em Câmara dos Deputados, e do feíssimo “Palácio da Cidade”, de que o Governo se retirou, e que está entregue a repartições públicas de segunda importância, que nos resta? Sobretudo que resta, em matéria de edifícios públicos, do velho São Paulo colonial? Nada. Isto quanto ao Estado. E os particulares? Foram eles porventura mais zelosos de nossas tradições? Infelizmente, não. Qual é a família paulista tradicional, que conservou intacto algum solar dos tempos idos? Onde, em São Paulo, pode-se ter o gosto de contemplar, com suas paredes e mobiliário intactos, um daqueles velhos casarões em cujas salas imensas, nos grandes dias de festa, se reunia a aristocracia rural paulista? Tudo caiu, tudo ruiu, tudo desapareceu. Apenas restam, na Rua Brigadeiro Tobias ou adjacências, alguns velhos casarões do período do Império entregues a repartições públicas, ou profanados pela presença de pensões de segunda classe. Quanto a nosso elemento tradicional, as famílias da “vieille roche” paulistana emigraram quase todas para bairros modernos, como Angélica, Higienópolis ou Jardim América, deixando às moscas seus antigos casarões, e substituindo-as por “bungalows” de inspiração americana, ou habitações modernistas. Não queremos, com isto, lançar censuras contra o Estado ou os remanescentes da nossa velha aristocracia rural, pelo simples e estúpido prazer de censurar. Nem o Estado nem nossas antigas famílias, diga-se a verdade, são muito culpadas desse desdém pelo nosso passado. Sua deplorabilíssima indiferença em relação a nosso passado era fruto de um estado de espírito muito generalizado na época. Fatores excessivamente complexos e excessivamente subtis para serem analisados neste artigo contribuíram para isto. O abandono de nossas tradições e de nossos monumentos históricos foi um crime. Mas nem todos os que dele são culpados foram criminosos. Para julgar os homens é preciso situá-los em seu tempo. Enquanto, de um modo geral, e salvas raríssimas exceções, todo o mundo, em São Paulo, destruía o passado para sobre ele construir o presente, o que fez a Igreja? Conservou, ela só, abandonada aos seus próprios recursos, que são muitíssimos mais escassos do que em geral se supõe, quase todos os monumentos que nos restam do passado. Não contente em conservar os edifícios, a Cúria Metropolitana fez mais. Sob a alta e esclarecida orientação do Ex.mo Rev.mo Sr. Arcebispo Metropolitano, que é conhecidamente um apaixonado de nosso passado e um historiador de valor, reuniu-se na Cúria um magnífico museu de objetos antigos, junto ao qual se encontra, admiravelmente fichado e catalogado, um dos arquivos mais ricos do Brasil. Embora o Museu Paulista tenha à sua testa um grande historiador, como é o Sr. Afonso de Taunay, cujo zelo sem reservas por nosso passado ninguém ignora, não foi possível ao Estado reunir ali objetos nem mais curiosos nem mais numerosos em matéria de História pátria do que os que se encontram no magnífico museu da Cúria. São Paulo reconhecerá um dia este serviço prestado pelo Sr. Arcebispo Metropolitano nos nossos estudos de História. E, ao seu lado, recordar-se-á também com gratidão do falecido diretor do Museu da Cúria, Francisco Collet e Silva, a cuja dedicação se deve, em grande parte, o êxito da obra que o Sr. Arcebispo concebeu e levou a cabo. * * * Fizemos todas estas considerações para poder, no final, protestar energicamente contra o tom de azedo agastamento com que o Sr. Paulo Duarte se referiu a elementos do Clero de São Paulo e ao silêncio que, em seu artigo, se nota sobre a obra salvadora empreendida pela Cúria Metropolitana. Quando muito, com grande esforço, notar-se-á em seu artigo uma ou outra alusão. E só. Muitos outros dos missivistas que escreveram depois dele agiram do mesmo modo. Ataques agressivos e descabidos a certos eclesiásticos. E silêncio absoluto a respeito da obra da Cúria Metropolitana, da dos Jesuítas de São Gonçalo etc., que tanto zelam pelas relíquias de nosso passado. O próprio título da seção em que o “Estado” tem publicado as missivas merece censura: “Contra o Vandalismo e o Extermínio”. É certo que não se deseja atingir diretamente certos elementos do Clero. Querendo ou não, em todo o caso, eles são atingidos. E agora vem uma verdade que vai doer aos ouvidos de muita gente, mas que precisa ser escrita muito claramente em letra de forma: o clero não é passível de censura pelos jornais, ainda que algum de seus elementos não tenha andado bem. E isto pelo simples fato de ser Clero. O Clero está investido de Poderes espirituais tão sublimes e tão respeitáveis que seus dignatários não podem ser censurados pelos simples fiéis. O contrário viria a constituir uma desordem insuportável, no seio da Igreja. Para dirigir o Clero, para pedir contas aos seus membros do que fazem, para zelar pela correção de seus atos, há a Hierarquia Eclesiástica. Ela está sob a suprema autoridade do Pontífice Romano. E este, por sua vez, está sob a única e exclusiva autoridade de Deus, Nosso Senhor. Certamente, estas verdades causarão estranheza a muita gente. Mas é preciso que sejam ditas, porque nosso século anárquico se vai desadaptando a qualquer autoridade. Sentimos o prazer de um desabafo, proclamando esta verdade. E “que vengan” os que quiserem contestá-la. Terão resposta caridosa e conveniente. Dirá alguém: Mas o Sr. Paulo Duarte, o Sr. Oswaldo de Andrade etc. estão muito longe de ser católicos. Podem, portanto, dizer o que lhes aprouver do clero. Mas, pergunta-se: o jornal “Estado de S. Paulo” viveria se não fosse lido, assinado e comprado pelos católicos diariamente? E, principalmente, se não fossem católicos quase todos os seus anunciantes? Não. Se ele não é, pois, um jornal católico, é, ao menos, um jornal mantido pelos católicos. E um jornal nestas condições não tem direito de publicar críticas desabusadas a certos sacerdotes que, ainda que não tenham agido com o acerto desejável, procederam incontestavelmente com a melhor das intenções. Se alguma observação devesse ser feita sobre a conservação dos monumentos religiosos, ela poderia ser apresentada pessoalmente a nossas autoridades eclesiásticas, sob a forma de carta, relatório, ou outra qualquer coisa. Se alguma denúncia devesse ser feita, este mesmíssimo processo deveria ser empregado. Mas não queremos, não podemos e não devemos concordar em que, abertamente, se levantem críticas ou ao menos suspeitas injuriosas a elementos do Clero. É esta a verdade, embora possa doer a muita gente. |