Plinio Corrêa de Oliveira
Mussolini
Legionário, N.º 241, 25 de abril de 1937 |
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Não tem faltado, entre nossos leitores, quem sinta certa estranheza à vista de críticas que temos feito, ultimamente, a alguns atos do Sr. Benito Mussolini. Para eles, Mussolini é um presente de Deus à Cristandade, o braço vigoroso e a inteligência lúcida com que a Providência armou o Ocidente, para resistir às investidas do comunismo internacional (...). Atacá-lo é atacar um instrumento de Deus e, portanto, favorecer, ainda que involuntária e indiretamente, a obra dos sem-Deus. Mussolini e Stalin são os dois polos da política contemporânea. Atacar a um é beneficiar o outro. E, entre Mussolini e Stalin, só um católico quase demente, do tipo dos católicos bascos, pode ter hesitações. Porque entre o palácio de Deus e do demônio, só vacilam os loucos e os inconscientes. É inútil acrescentar que os que vêem por esta forma o panorama da política contemporânea, se são católicos, tem um entusiasmo ardente pelo grande ditador italiano. E seu entusiasmo é tão mais ardente quanto mais vigoroso é seu amor à Igreja Católica que, em última análise, é o centro de suas preocupações. Esse entusiasmo é muito justo, se admitirmos as premissas acima referidas. Entretanto, é ele o grande obstáculo que encontramos quando procuramos esclarecer um pouco o assunto. Realmente, esse entusiasmo, não raramente, se reveste de um incondicionalismo categórico que insiste em ver no “Duce” um sol sem manchas, um ser de uma natureza superior, a cuja inteligência não resistem os mais intrincados problemas e cuja vontade não conhece um único desfalecimento. É exatamente aí que está o início do mal. Só há uma causa à qual o católico deve votar uma dedicação incondicional: a de Deus. Só há um chefe em cuja palavra ele deve crer incondicionalmente: a do Pontífice Romano, quando no exercício das funções em que lhe é assegurada por Deus a infalibilidade. E isto por uma razão muito simples: só Deus é infinitamente sábio e infinitamente bom. As criaturas que vivem neste duro vale de lágrimas são todas elas sujeitas a errar e a pecar. Portanto, nenhuma delas merece um apoio incondicional, uma obediência incondicional, um entusiasmo incondicional. Fazendo da criatura humana, que milita nesta vida cheia de incertezas, o objeto de um sentimento que devemos só a Deus, é fazer um ato de idolatria. E esse ato, nenhum católico o deve praticar. Isto posto, e serenado o espírito de algum leitor “mussolinatra” ou excessivamente “mussolinista”, vamos aos fatos. Nunca foi nossa intenção, nas críticas que temos feito a Mussolini, condenar globalmente a obra do grande estadista italiano. Seria pura e simplesmente uma insânia. Mais ainda: seria uma indisciplina religiosa. A obra do reerguimento religioso na Itália não teve em Mussolini seu único artífice. É preciso não esquecer a figura magnífica de Pio XI que, num gesto inteligente e audacioso, soube entrar em entendimentos com o governo italiano, para cooperar com ele na gloriosa tarefa de varrer da Itália toda a horda de comunistas que a infestava. Logo, se sob este ponto de vista se faz uma condenação global da obra de Mussolini, condena-se implicitamente a conduta do Santo Padre. Não há como fugir a essa verdade. Entretanto, uma coisa é uma condenação global, e outra coisa é uma restrição parcial quanto a certos aspectos da atividade governamental de Mussolini. Restrições à obra de Mussolini, o Santo Padre já as tem feito. Basta ler, para isto, a famosa Encíclica que publicou por ocasião de seu conflito com o Duce. E, embora consideramos injusta e até estúpida a condenação geral da obra de Mussolini, a nós também assiste o direito de fazer idênticas restrições. Mais adiante, mostraremos no que elas consistem. Antes de passar a esse aspecto do problema, insistimos em afirmar, entretanto, que sem incondicionalismo servis, somos admiradores do Duce. E que admitimos mesmo que ele tenha sido - conforme uma palavra que se atribui ao Santo Padre - um instrumento que se serviu a Providência para o bem da Igreja. Mas... o quadro tem suas sombras. A circunstância de Mussolini ser um homem escolhido pela Providência como seu instrumento, não lhe assegura impecabilidade. Salomão não foi apenas um instrumento político da Providência para promover a grandeza do povo de Israel. Foi um ungido do Senhor, foi um profeta e o espírito de sabedoria residiu nele. Entretanto, todo o mundo sabe o fim doloroso de sua história. Com assombro e tristeza, todos os servos de Deus, que viveram em sua época, viram-no nos últimos anos de sua vida dobrar os joelhos diante dos falsos ídolos, e consagrar sua velhice veneranda aos prazeres abomináveis de uma vida debochada. Está longe de nós afirmar que Mussolini esteja na situação de Salomão, nos últimos dias de sua vida. Mas se Salomão pecou e caiu, é justo que também Mussolini poderá desviar-se de seu caminho. E não faltam indícios que autorizem esse receio. Em primeiro lugar, é preciso notar que há certa diferença entre doutrina fascista e governo fascista. A doutrina fascista formou-se depois da ascensão dos fascistas ao poder. Ela consubstancia as tendências do regime. Mas na prática, mais de uma vez Mussolini tem se afastado dela. Como veremos, está nisto um de seus grandes méritos. Entretanto, de um modo geral, as tendências totalitárias do Estado fascista transparecem através de inúmeros “pontos nevrálgicos” da organização da Itália contemporânea. O corporativismo de Estado, a tendência absorvente do Estado em matéria de educação, a ingerência do Estado na vida doméstica a ponto de provocar casamentos obrigatórios, uma multidão de outros indícios fazem sentir que, entre os doutrinadores do fascismo, as tendências do Estado totalitário são tão vivas que, freqüentemente, influenciam os atos do governo. A tal ponto é isto verdade, que a Santa Sé já colocou no “índex” um dos maiores juristas e doutrinadores fascistas contemporâneos. (...) E Mussolini, sem se deixar monopolizar por enquanto pelos doutrinadores do fascismo, dá-lhes entretanto uma larga parte de influência no governo da Itália. E um mérito de Mussolini é não dar um ascendente absoluto a essa corrente. Entretanto, quem poderá negar que sua política deverá incidir em muitos erros graves, se ele não se pronunciar nitidamente contra essa corrente? Há uma prova muito clara de que não são irreais as tendências totalitárias do Estado fascista: a reserva com que a imprensa fascista acolheu a Encíclica pontifícia contra o hitlerismo. É que foi nitidamente percebido por quem de direito que, na condenação de certos erros do hitlerismo, estava implícita a condenação de erros do fascismo e até do governo português. Por ocasião das eleições belgas, certos jornais fascistas atacaram rudemente o Episcopado da Bélgica, da França e da Holanda, e um deles chegou a atacar brutalmente o próprio “Osservatore Romano”, órgão oficioso da Santa Sé, acusando o Episcopado dos referidos países de estar auxiliando, “com fins inconfessáveis”, os “sem Deus”. Quem não vê o perigo que semelhantes atitudes denunciam? Sem responsabilizar por elas Mussolini, devemos lembrar que, se elas lhe desagradassem, ninguém procederia assim. Quando nada, deve-se admitir que Mussolini hesita. E esta hesitação é a causa de nossa apreensão. Nenhuma resposta merecem os imbecis que acham que o problema de Mussolini é um problema interno da Itália, no qual os jornalistas estrangeiros nada tem que ver. A Itália é, com toda a razão, uma das maiores potências do mundo. Seu povo, por sua inteligência fulgurante, por seu valor incontestável, é uma glória para a humanidade. A Itália, que figura nas cabeceiras de nossa civilização, é uma das vanguardeiras do progresso humano. Ela não é, pois, um patrimônio exclusivo dos que nela nasceram. Ela é um patrimônio do mundo inteiro, porque uma catástrofe na Itália significaria indiscutivelmente o fim do ocaso da civilização ocidental. Há na Itália, como em toda a Europa, certas residências particulares que, sendo embora propriedade de certas famílias nobres, são consideradas monumentos históricos. É que tal é o valor histórico que elas têm que o Estado se interessa tanto pela sua conservação quanto seus proprietários. A Itália é um monumento histórico da humanidade e um monumento que, além de lembrar glórias passadas, encerra auspiciosas promessas para o futuro. Como, portanto, não olhar com apreensão extremamente afetuosa qualquer nuvem que tolde seus horizontes? Vendo em Mussolini, depois de Pio XI, o primeiro homem de nosso século, aplaudimos calorosamente a tudo quanto sua obra tem de magnífico. E é exatamente por isto que sentimos as mais vivas apreensões quando vemos que está aberto diante de seus passos o abismo no qual se precipitou Hitler com todo o seu talento e seu poder. Saberá ele evitar o perigo e salvar sua esplêndida obra? Pedimos ardentemente a Deus que sim. Nota: Os negritos são deste site. |