Plinio Corrêa de Oliveira
A Igreja e o problema religioso na Rússia
O Legionário, 16 de março de 1930, N. 54 |
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Sob o autocrático regime do Czarismo, havia no Império Russo uma religião oficial, a Ortodoxa, que gozava do amparo e prestígio das autoridades. As demais religiões, como sejam a católica, a protestante ou a muçulmana, viviam em uma relativa liberdade que, embora não lhes facultasse uma livre expansão no império moscovita, lhes proporcionava, todavia, tranquilidade e segurança. Com a queda do despótico regime absolutista, levantou-se na Rússia a bandeira da "liberdade" e, em nome desta, desapareceu inteiramente a tolerância religiosa. Não se limitaram os bolchevistas a despojar a Igreja Ortodoxa de todas as regalias de que dispunha: perseguindo todos os sacerdotes de todos os credos, abriu-se uma intensa campanha contra qualquer religião. Seria natural que, de todas as religiões, a mais perseguida fosse a Ortodoxa, pois que, contando na Rússia com uma maioria enorme de fiéis, seria a mais perigosa para os bolchevistas. Ademais, a ortodoxia, que viveu sempre à sombra protetora da monarquia, derrubada com esta, seria certamente uma força sempre disposta a auxiliar qualquer tentativa de restauração monárquica. Esta disposição dos ortodoxos foi patenteada diversas vezes em manifestações de hostilidade mais ou menos tímidas, e mais por parte de religiosos da Igreja Russa. O Catolicismo, pelo contrário, dispunha de um número relativamente pequeno de adeptos. Não fora aquinhoado, em tempo algum, com favores da Casa Real ou da aristocracia. Nunca recebera das autoridades monárquicas senão uma certa liberdade, muito relativa, concedida como se fosse uma esmola. Embora muitas e muitas vezes tenha sido a Revolução Russa condenada pela Igreja, esta procurou até auxiliar o povo russo, na extrema miséria em que o prostraram a guerra e o bolchevismo. Há alguns anos, a Igreja forneceu generosas contribuições para as crianças famintas do sul da Rússia. Estas contribuições, distribuídas por sacerdotes católicos, atingiram um total muito elevado, e como não fossem suficientes, a Santa Sé recorreu à generosidade dos católicos do mundo inteiro. As coletas foram boas, e durante muito tempo a Santa Sé pôde desenvolver, no seio da infância eslava abandonada, uma atuação tanto mais necessária [quanto] parecia que os bolchevistas, todos entregues à sua sede de sangue e de vingança, se haviam descuidado inteiramente dos menores desamparados. Vemos, portanto, que, dentro dos limites do possível, os católicos e a Igreja Católica, longe de se encerrarem em uma intolerância censurável, fecharam os olhos às maiores injúrias, exclusivamente para exercer a caridade pregada por Cristo. No entanto, nem a própria inocência da infância mereceu compaixão aos olhos do fanatismo desvairado. As autoridades russas verificaram que havia uma oposição fundamental entre as doutrinas de Moscou e as do Vaticano, e daí o rejeitarem eles quaisquer auxílios do Santo Padre. Assim, por uma questão política que eles orientaram pelos princípios da mais inconfessável desumanidade, foram os pequenos russos privados de uma assistência que o governo soviético não lhes pôde, em tempo algum, prestar. Eis aí a intolerância soviética, patenteada na sua forma mais censurável, e ferindo os direitos os mais sagrados. Ultimamente tem recrudescido muito a campanha antirreligiosa, e o Santo Padre levantou sua voz autorizada e respeitável para protestar contra as perseguições de que estavam sendo vítimas seus filhos espirituais, os católicos. Sua atitude, moderada e digna, que estava a igual distância da fraqueza e da violência, suscitou, no entanto, as maiores críticas. Para bem podermos acentuar, no entanto, o caráter que o Sumo Pontífice imprimiu à sua reclamação, basta ponderar o seguinte: estão fora do grêmio da Igreja tanto os ateus quanto os protestantes, judeus ou ortodoxos. Todos eles lhe negam um ou muitos dogmas. Portanto, encara a Igreja como adversárias quaisquer dessas orientações. Nessas condições, se o Papa estivesse influenciado por algum vislumbre de intolerância, poderia protestar tão-somente contra as perseguições aos católicos. Mas seu olhar compassivo de pai não se deteve ante tais considerações. Protestou também contra o massacre dos inimigos de sua Igreja, os protestantes, judeus e ortodoxos. Vemos, pois, que, não a intolerância, mas sim a caridade cristã orientou a atitude do Papa. Não queremos discutir questões de fato. Por isso, embora possamos provar que foram atrozes e violentas as perseguições dos bolchevistas, não nos deteremos diante do que se tem afirmado em contrário. Apenas diremos que gregos e troianos estão acordes em afirmar que os bolchevistas têm perseguido ou, quando nada, prestado seu apoio às perseguições que associações ateias promovem contra os crentes. A discussão está apenas em torno das proporções destas perseguições. Ora, dado que há, na Rússia, um movimento acatólico, gozando do prestígio das autoridades, perguntamos: não tem a Santa Sé o imperioso dever de protestar contra as referidas perseguições? Evidentemente, sim. Se, em circunstâncias como a atual, a Santa Sé não tomasse posição ao lado de seus filhos aflitos e perseguidos, se não procurasse consolá-los em suas amarguras e diminuir seus padecimentos, Ela daria grande argumento a seus adversários. De fato, por que se intitularia Ela Mãe, se deixasse, indiferente, perecer seus filhos? De que Lhe valeria patrocinar no mundo inteiro a fundação de hospitais se, indiferente aos seus próprios mártires, desprezasse – soberba - o sangue derramado pela Fé católica, e que, segundo a Bíblia, brada aos céus? Poder-se-á, é certo, objetar que a perseguição é tão pequena que não mereceria uma tão enérgica repulsa. Tal argumento, porém, mal merece as honras de uma resposta. Admitindo (posto que não concordemos com esta asserção) que a perseguição seja minúscula, admitindo mesmo que apenas um fiel tivesse sido morto por causa de sua Fé, perguntamos: não teria a Igreja o direito de protestar com todas as suas forças? Merecerão os seus filhos menos carinho, pelo fato de serem humildes e pouco numerosos? Não, o mesmo direito que lhe assiste de protestar contra o massacre de um país inteiro, lhe assiste de protestar contra a morte de um só de seus fiéis, pois que por todos vela a Igreja, com igual e carinhosíssima solicitude. Ademais, muitos países, segundo narra a História, têm provocado verdadeiros incidentes internacionais, pelo massacre de um de seus súditos no estrangeiro. Quem ousaria censurá-lo? Quem censuraria o Governo Imperial do Brasil por protestar contra a prisão do Governador do Mato Grosso, afinal apenas um simples cidadão? E por que não aplicar à Igreja as mesmas normas jurídicas, usadas em relação às demais pessoas jurídicas do Direito Público internacional? Vemos, pois, que bem inspirado andou o Sucessor de São Pedro, quando ergueu seu protesto veemente contra as chacinas dos sovietes. Alguns jornalistas que, embora dotados de talento, são inteiramente destituídos de consciência, têm afirmado que o Santo Padre foi apenas um joguete das potências capitalistas, e que, portanto, ou foi subornado por dinheiro, ou influenciado por liberalidades de ordem política. Ora, quando se levanta uma injúria contra um ancião que tem atrás de si uma longa vida, passada toda ela segundo as mais rigorosas exigências da moral, é preciso que se esteja estribado em provas muito sérias. Tais provas, por inexistentes, não foram e nunca serão exibidas. Podemos, pois, proclamar que não prezam sua própria honra os referidos jornalistas, pois que tão fácil e infundadamente atacam a honra alheia. Poderiam eles, porém, contar com indícios de qualquer sorte. Eles seriam, nesse caso, levianos, mas não seriam difamadores sem consciência. Nós, porém, não conhecemos, nem nunca vimos citar um só indício. Como, pois, dar crédito a tais boatos? Que aqueles que acusam o Santo Padre saiam a público, que mostrem a todos os fundamentos de suas acusações, porque só então terão cumprido seu dever. Quem está convicto de uma verdade e não a prova nem propaga, ou não é sincero, e neste caso não merece qualificação, ou então é indolente, não ama a verdade, e neste caso é criminoso. Não vemos como se possa sair desse dilema. Ora, nossos adversários não fazem nem uma, nem outra coisa. Qualifique-os a sua própria atitude, porque não o podemos fazer nós, em atenção à cortesia. Temos demonstrado que o Santo Padre protestou contra as perseguições religiosas na Rússia porque tinha, mais do que o direito, o dever imperioso e iniludível de protestar. Não podemos crer que ele tenha sido influenciado por outro móvel menos digno: a santidade de sua vida e dos que o cercam, e a História da Igreja no passado são garantias suficientes de sua inteira honorabilidade. Concluímos, pois, que ele não é censurável. Estamos convictos - e fundamentamos suficientemente nossa convicção - de que o Santo Padre não pode, aos olhos de pessoas desapaixonadas, merecer censura: Sua Santidade agiu cumprindo um imperioso dever e movido exclusivamente pelo seu zelo, no desempenho de sua espinhosa missão de Vigário de Cristo. Não pensamos, porém, que este fato o proteja contra as injustiças de uma certa orientação intelectual, em virtude da qual se negam pão e água aos inimigos. São de Nosso Senhor Jesus Cristo as seguintes palavras: "Se mal falei, dizes-me em quê; e se não, por que me feres?" Pio XI, em tudo digno de ser Vigário de Cristo, poderia se apropriar das palavras do Divino Mestre para se defender perante seus detratores. À sua pergunta sucederia a mesma série de acusações que se não interromperam diante da branda pergunta do doce Nazareno, e se não interromperiam diante do que dissesse Pio XI. Sabemos, pois, que nunca se aplacará a onda de injustiças que sempre se ergue contra a Igreja. Se, porém, conseguimos, nestas colunas, orientar algum católico tíbio, ou mesmo alguma pessoa que, sem ser católica, tenha uma verdadeira boa-fé, estará perfeitamente atingido nosso fim. |