Plinio Corrêa de Oliveira

 

Fides Intrepida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Legionário, 12 de janeiro de 1930, N. 50

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Na velha e muito conhecida profecia de São Malaquias a respeito dos Papas, o pontificado de Pio XI é designado pelas palavras Fides Intrepida. Mais uma vez, verificou-se a exatidão da profecia sete vezes secular. Nunca foi mais intrépida a Fé católica, nunca foram tão assinaladas suas vitórias e tão retumbantes as derrotas de seus adversários, nestes últimos séculos. Em todos os terrenos está erguido, mais alto do que nunca, o estandarte da Fé. A ciência já não ousa negar as verdades da Fé. Tanto o materialismo quanto o darwinismo perdem terreno a olhos vistos. Por outro lado, as conversões ao Catolicismo, cada vez mais numerosas, assinalam-se, ultimamente, pelo grande valor intelectual dos convertidos. Por outra parte, a Fé, intrépida, reconquista as posições que lhe roubara o erro. Mais retumbantes do que nunca, porém, são as vitórias alcançadas pelo atual Pontífice, sob o ponto de vista político.

Os primeiros atos de Sua Santidade, ao ocupar a chefia da Igreja, foram assinalados por um nítido espírito de concórdia. Logo ao receber a notícia de sua elevação ao Pontificado, Pio XI restabeleceu a antiga tradição da bênção urbi et orbe, abolida desde a tomada de Roma pela Casa de Savóia. Daí por diante, embora mantendo sempre na devida altura as justas reivindicações do Papado, Pio XI nunca cessou de dar mostras de seu desejo de ver resolvida a delicadíssima questão romana. Finalmente, depois de negociações laboriosas, habilmente entabuladas entre Sua Santidade e o Sr. Mussolini, o Tratado de São João de Latrão declarava, sob os aplausos de quase toda a humanidade, ao mesmo tempo reconhecida a independência da Cidade do Vaticano e a oficialização da Igreja Católica no Reino da Itália.

Este tratado teve, como seria de prever, seus detratores. Afirmavam uns que ele era devido exclusivamente ao gênio político do Sr. Benito Mussolini, sem que os sentimentos religiosos deste, ou a habilidade diplomática do Santo Padre, tivessem, de qualquer modo, exercido sua influência sobre a solução da questão romana. O tratado representaria, pois, não o legítimo triunfo da diplomacia do Vaticano, não uma afirmação de fé de um homem que seus próprios inimigos consideram genial, mas tão-somente uma concessão hábil e quase maquiavélica de um político sagaz, a uma potência moral de cuja força ele queria se prevalecer.

Por outro lado, os detratores sistemáticos de todos os triunfos da Igreja, afirmavam que seria de pouca duração a observância das cláusulas do tratado laterano, baseando sua opinião em pequenos mal-entendidos que se verificaram nas relações entre a Santa Sé e a Coroa italiana. Outros, ainda mais parciais e audazes, afirmavam que as compensações que a Itália fazia à Santa Sé eram tão valiosas, que constituíam um verdadeiro assalto ao erário público da Itália. Todas essas acusações não merecem, nem as honras de uma resposta.

Para o observador imparcial é, em primeiro lugar, indiferente conhecer os sentimentos de ordem religiosa que possam ter levado o chefe do governo italiano a prestar seu apoio à idéia de uma reconciliação entre a Tiara e a Coroa italiana. Supondo, o que aliás não nos parece provável, que o Sr. Mussolini seja o mais inveterado dos ateus, a vitória obtida pela Igreja seria ainda mais significativa, pois que demonstraria apenas que os próprios adversários do Catolicismo reconheciam a inteira procedência das reclamações dos Pontífices Romanos contra a Itália. Por outro lado, negar a habilidade extraordinária com que Pio XI soube entabular e orientar as negociações com o governo italiano, seria fechar os olhos à mais evidente das verdades. Quando Sua Santidade abençoou, pela primeira vez desde 1870, a cidade de Roma, quando Sua Santidade levantou a excomunhão da Capela Paulina, que se encontra no Quirinal, quando Sua Santidade recomendou a todos os católicos italianos que, dentro da rigorosa observância dos princípios da Igreja, prestigiassem as autoridades italianas, pois que este era seu dever de católicos, quando Sua Santidade se opôs com tenaz energia à ação invasora que certos elementos, no partido fascista, queriam exercer nos arraiais católicos, quando Sua Santidade, manifestando o modo de ver da Igreja, em relação à questão social, reafirmou os princípios enunciados por Leão XIII, quando Sua Santidade aceitou a participação das autoridades italianas na comemoração do 7º centenário de São Francisco de Assis, quando Sua Santidade consentiu em cercar de todo o esplendor das pompas da Igreja o casamento do Duque das Apúlias, não deu mostras evidentes de seu ardente desejo de restabelecer as relações diplomáticas com a Itália? Eram, então, conhecidas quaisquer negociações entre a Santa Sé e o governo? Não. Conseqüentemente, o Tratado Laterano é, em grande parte, fruto da habilidade e do espírito de cordialidade do Sumo Pontífice. Por outro lado, os pequenos incidentes que se verificaram, e ainda se verificarão forçosamente, entre a Itália e a Santa Sé, resolvidos eles todos com o maior espírito de cordialidade, não são perfeitamente explicáveis se considerarmos a circunstância de se adaptar a Itália, presentemente, a uma situação nova, sob o ponto de vista religioso, e que, portanto, pequenos atritos seriam forçosos?

Por outro lado, afirmar-se que a Santa Sé teve algum lucro material na solução da questão romana, é incorrer em um dos erros mais comezinhos, em matéria de diplomacia.

A lei de garantias, votada pelo Parlamento italiano, muitos anos antes da Grande Guerra, estabelecia que a Itália, a título de indenização, pagaria anualmente, ao Santo Padre, uma quantia determinada. Ora, como a Santa Sé não aceitasse a lei de garantias, as quantias anuais eram depositadas no tesouro italiano. Estas anuidades foram-se acumulando até a entrada da Itália na guerra. Achando-se nesta ocasião em apuros, o governo italiano resolveu lançar mão das anuidades da Santa Sé, que foram totalmente empregadas em despesas de guerra.

Depois da guerra, a Itália tornou a depositar periodicamente as anuidades que, somadas àquelas que a Itália gastara, perfaziam um total elevadíssimo. Com a assinatura do Tratado Laterano, a Itália via enormemente reduzida esta sua dívida à Santa Sé. Conseqüentemente, esta, ao invés de consentir em um saque aos cofres públicos italianos, privou-se de parte da quantia que tinha o direito de reclamar, segundo o próprio governo italiano, a qualquer momento, e isto para que a Itália pudesse, com mais facilidade, solver os seus compromissos financeiros. Vê-se, pois, que o Tratado Laterano, longe de constituir, sob o ponto de vista material, uma vantagem, foi, ao contrário, mais uma prova de tolerância da Igreja em relação às questões secundárias, de interesse meramente pecuniário.

Sob o ponto de vista do efeito moral, porém, foi de enorme vantagem o tratado. Assim, todas as nações terão de reconhecer como potência soberana de direito internacional ao Estado do Vaticano, cuja personalidade jurídica de Direito Público se delineia com tanta clareza quanto a das mais poderosas nações. Conseqüentemente, não será mais possível aos adversários da Igreja se encastelar atrás do conhecidíssimo argumento de que a Santa Sé não é pessoa jurídica de Direito Público, para não receber como embaixadores os Núncios Apostólicos. Acresce que o Santo Padre se sentirá, de agora em diante, muito mais seguro em sua liberdade e inteira autonomia no administrar os negócios da Igreja, porquanto a independência relativa de que gozava antes do tratado, sendo uma verdadeira mercê de uma lei italiana, podia ser revogada de um momento para outro.

No campo ainda da política da Igreja, se salienta, sob o pontificado de Pio XI, a solução do conflito com a Argentina, a solução da famosa questão religiosa do México, as visitas de diversos soberanos acatólicos ao Santo Padre, a quem protestaram todo o seu respeito e acatamento, o restabelecimento de relações diplomáticas com diversos países, entre eles a França, e, de um modo todo particular, o grande incremento da ação social católica em todos os países da Europa. Graças à constituição das diversas ações sociais católicas, partidos católicos etc., as populações católicas, até mesmo dos países em que os católicos representam a minoria da população, estão, em quase todas as nações da Europa, ao abrigo dos golpes dos adversários da Igreja e, especialmente, podem impor os princípios católicos às legislações dos diversos países, para os quais, conseqüentemente, decorrem deste fato as maiores vantagens. É especialmente notável a intensidade da propaganda católica nos países protestantes: nos Estados Unidos, as conversões, no ano passado, atingiram as 36.000; na Alemanha, país de maioria protestante, o partido católico do Reichstag se distingue por coesão, e é elemento indispensável para a manutenção, no poder, de qualquer ministério; na Inglaterra, já não têm conta as conquistas do catolicismo, segundo o demonstraram as festividades imponentes, comemorativas da emancipação católica; na Dinamarca, em uma circular do Ministério das Relações Exteriores, é assinalado o grande progresso do catolicismo; e, finalmente, também se salienta o grande número de individualidades pertencentes à antiga Igreja Ortodoxa que se têm convertido ao Catolicismo, como por exemplo, ainda há pouco, um bispo.

Para coroar esta longa série de triunfos, basta examinar a atitude da Liga das Nações, perante a Santa Sé. Como é sabido, a Santa Sé não era reconhecida pela Liga das Nações como pessoa jurídica de Direito Público. Conseguintemente, a Santa Sé não era membro da Liga. Esta atitude não pôde, no entanto, ser mantida por muito tempo. Já agora, a Liga das Nações apelou para a influência da Igreja para resolver o conflito entre os árabes e muçulmanos, na Ásia. Assim, a orgulhosa e inútil instituição de Genebra reconhece, ao mesmo tempo, a sua insuficiência para a solução de determinadas questões internacionais, e a incontrastável influência da Igreja. Este fato tornou-se ainda mais significativo porque, para implorar o auxílio do Santo Padre, a Liga mandou especialmente seu secretário, pessoa de grande destaque e representação.

Diante desta esplêndida série de triunfos, desta sucessão ininterrupta de glórias, surge uma questão: qual a situação da Igreja, no terreno internacional, daqui a cinqüenta anos? Dar à questão uma resposta imediata pareceria a muitos ousado. Estes triunfos abrem tais perspectivas, tornam possíveis tais progressos, que uma resposta se tornaria certamente, se sincera, muito arrojada, e, se moderada, insincera.


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