Legionário, Nš 718, 12 de maio de 1946

7 Dias em Revista

O plebiscito francês encheu toda a semana passada. Assim, deve logicamente encher os "Sete Dias em Revista", tanto mais que a pluralidade de aspectos do grande, do estrepitoso e evidente triunfo da Igreja, exige necessariamente certa amplitude de comentários.

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Todos se lembrarão de que, em conseqüência das eleições à Constituinte francesa, quatro grupos políticos alcançaram representação eleitoral ponderável.

Um deles foi o partido comunista. Nada temos que dizer sobre suas doutrinas e métodos, já muito conhecidos. O êxito eleitoral deste partido se deveu a dois fatores muito diversos e até contrários.

De um lado, houve realmente certo alastramento da doutrina comunista na França, quer pela propaganda vermelha, quer pelo prestígio alcançado pelo comunismo em conseqüência de sua eficaz reação contra a Alemanha, quer finalmente pela idéia pueril, mas generalizada logo depois pela vitória, de que derrubado o nazismo, a única fórmula possível para o mundo seria o comunismo. Enquanto estas considerações atraíam eleitores para o programa soviético, que é revolucionário e pleiteia a abolição de todas as fronteiras, pátrias e governos locais, certas forças conservadoras e patrióticas auxiliaram também o triunfo dos vermelhos, e este é o segundo fator. A parte sã do operariado e até mesmo a pequena e média burguesia, fortemente nacionalistas e anti-alemãs, desejavam uma repressão enérgica contra o colaboracionismo, e esperavam que os comunistas impusessem tal reação. O patriotismo francês, lisonjeado pelo trabalho vitorioso dos leaders comunistas no movimento de resistência, também concorreu, em parte, para descarregar nos piores inimigos das classes médias e das correntes nacionalistas os votos daquelas e destas.

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O partido socialista, como programa, é comunista. Seus métodos mais macios, o aspecto mais tratável de seus leaders, tudo enfim concorreu para que votassem nele muitos conservadores nacionalistas que não chegaram até o extremo de votar nos comunistas. O socialismo, como de costume, fez o papel de estação a meio caminho, em que se descansa e se toma fôlego antes de se chegar até o comunismo cru. É o ponto de encontro dos indecisos, sempre muito numerosos em momentos de crise e violento dissídio de opiniões. Daí, também para este partido, um sucesso eleitoral não pequeno.

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O Movimento Republicano Popular se apresentava com uma sóbria colaboração católica. Pelas tendências à colaboração com a esquerda, de vários de seus chefes, era ele visto com alguma simpatia, real ou não, entre os socialistas e os comunistas. Por outro lado, seu cunho católico tranqüilizava a opinião anticomunista, certa de que por maiores podas que o programa do partido impusesse a seus interesses, não chegaria ao extremo do comunismo. Por fim, muitos católicos radicalmente adversários da orientação do próprio Movimento Republicano Popular, de que suspeitam, entenderam ser cômodo votar nele, como meio de fazer face ao comunismo. Entre os votantes do Movimento Republicano Popular há de tudo, desde católicos à Montalambert, até católicos à Veuillot, unidos numa sábia frente, para contrabalançar a influência de adversários comuns; e desde republicanos convictos, com fortes tendências para a esquerda, até monarquistas devotos, que têm os olhos e o coração voltados para o Conde de Paris, ou para qualquer outro Príncipe da Casa de Bourbon.

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As oposições conservadoras, tremendamente dizimadas pela propaganda adversa, que apontava em cada um de seus membros um colaboracionista; divididas internamente em grupinhos reciprocamente hostis; mas constituindo ainda assim um contigente não desprezível, e muito heterogêneo, entre cujos votantes também se encontravam conservadores de toda a espécie, constituíram um bloco reacionário que vai ser a oposição parlamentar.

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Evidentemente, a coligação entre católicos, socialistas e comunistas não poderia ser senão provisória. É possível que tenha havido ilusões a este respeito. Mas o fato, o grande fato é que a fórmula "católicos-esquerda" provou mal. O aperto de mão parece não ter agradado, nem a católicos, nem a socialistas e comunistas. E é mesmo típico que a coligação se desfizesse tão rapidamente, quanto os elementos que lideravam o Movimento Republicano Popular constituíam os católicos de matiz político-social mais propício a tal colaboração. Assim, ensaiada a colaboração em condição arquetipicamente favoráveis, ela viveu menos que as rosas que segundo o poeta duram apenas l`espace d`un matin.

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Registrado este aspecto do problema, que tanto confirma os pontos de vista do LEGIONÁRIO, passemos adiante.

É bem de ver que, sendo impossível uma coligação durável entre as 3 facções governamentais, era necessário discutir com quem ficavam as rédeas do governo. Na aparência, a questão mais candente das que se debateram na Assembléia foi constitucional, versando sobre atribuições do Poder Legislativo e Executivo. De fato, porém, nenhum francês reconhecerá a estas questões, aliás muito interessantes no campo teórico do Direito Constitucional, o valor intrínseco de questões-chave do pensamento e da vida da França em nossos dias. Atrás destas questões, de fato outra se punha, imensamente maior. A quem queria a França pertencer? À coligação socialista-comunista? Ou ao Movimento de Representação Popular? Mais precisamente, o significado real do plebiscito era este: "sim ou não: a França quer o comunismo?"

Tanto isto é verdade, que o mundo inteiro como que suspendeu a respiração para ouvir a resposta da França. Nas vésperas do plebiscito, durante as horas angustiosas da apuração, nas alegrias posteriores do triunfo, tudo no mundo ficou pequeno, e nada do trivial quotidiano conservou importância. Só uma coisa interessava: em que sentido iria a França pronunciar-se?

Leiam-se os jornais. Todos eles estão cheios de preocupações claras ou veladas sobre as conseqüências do plebiscito na política interna da Itália, da Espanha, e de outros países. Evidentemente, não se trata de saber se estes países vão ter um senado ou não, e se seu chefe de Estado terá estes ou aqueles poderes. Nada disso interessa ao mundo, e não é por este puro problema doméstico que tantas repercussões se desencadeariam no mundo inteiro.

A expectativa mundial, o júbilo dos que venceram, o sonoro mal humor do silêncio em que se afundaram os derrotados, tudo isto mostra bem que a questão foi "comunismo, sim ou não". E que o alcance desta questão era mundial. Tanto era verdade, como sempre acentuou esta folha, que hoje em dia as questões políticas não são puramente internas, e só podem ser compreendidas em função constante da política internacional.

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E, já que tratamos dessa universal expectativa, permitam-nos os leitores mais uma observação. Durante tantos anos de eclipse francês, sempre nos esforçamos por acentuar o papel ímpar da cultura francesa no mundo hodierno. Muitos não nos entenderam, e julgaram nossa insistência tão desinteressante quanto se dissertássemos sobre os moluscos da Indonésia ou o tamanho da pirâmide de Queops. Qualquer coisa, pois, de muito menos interessante que a mais recente luxação no tornozelo de Leônidas. Outros nos chamavam retrógrados. As geladeiras, discos, borrachas, molas, conservas e banheiras americanas haviam substituído com vantagem coisas tão antiquadas quanto os monumentos da civilização francesa. Agora, bastou que a França abrisse a boca, para que o mundo inteiro se voltasse para ela. O que dirão a isto certos leitores? Doentes da dura doença do "adesionismo", com certeza já estão fazendo fila entre os admiradores da França.

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Mas prossigamos. Vista retrospectivamente, a evolução da política francesa apresenta isto de fundamental, que os católicos que apareceram, no início da Constituinte ligados à esquerda, vencem agora as eleições, ligados à oposição. E esta linha evolutiva, os católicos não a percorreram sob a liderança de algum grupo ultramontano, mas sob a direção de leaders muito inclinados à colaboração.

E, uma vez que o grande peso, o peso decisivo é a opinião católica, é importante ver em que sentido evoluirá.

Mas, paremos aqui um instante, e assinalemos o fato. Nenhum, nem de longe, e sob nenhum aspecto, se iguala em importância. No país que fez a Revolução, o peso político mais forte é, hoje em dia, a opinião católica. Tudo passou, tudo virou pó. Só a Igreja está de pé. Stat Crux dum volvitur orbis.

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E, antes de prosseguir, façamos outro comentário. E é a solidariedade dos socialistas com os comunistas até contra os mais moderados dos católicos.

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A questão pode ser vista sob um ângulo ainda mais vasto. Passado o entusiasmo pessoal despertado pelos elementos comunistas do movimento de resistência; patenteado perante o mundo inteiro o domínio que a URSS exerce sobre os vários partidos comunistas; anulado pelo imperialismo insolente dos soviéticos o "superávit" de simpatia que suas vitórias contra o nazismo lhe valeram; justiciados os chefes colaboracionistas e eliminado o perigo cagoulard, os comunistas se verão despojados de todos os seus fatores efêmeros de êxito, e seus votantes serão só seus correligionários. Estes quantos serão?

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Ou ainda: o Partido Socialista se identificou praticamente com os comunistas, coligando-se a estes contra os católicos muito moderados do MRP. Pergunta-se: à vista disto, os moderados do Partido não o abandonarão? E os intransigentes não passarão de vez para o comunismo?

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Por fim, dos votantes do MRP, quantos continuarão em suas fileiras? É absolutamente certo que muitos católicos só votaram no MRP como em uma tábua de salvação, mas discordam de seus chefes em muitos pontos não sem importância. O que prevalecerá? Os chefes do Partido terão habilidade de evoluir, sacrificando muitas de suas posições para conservar a unidade, a preciosa unidade que foi a chave da vitória? Se isto não se der, até que ponto será possível a existência de católicos dissidentes da direção do partido, dentro do MRP? E, se em consciência, lhe for impossível aí permanecer, para aonde rumarão? Mais para a esquerda? Mais para a reação?

E a reação, ela mesma? Não se avolumará com todos os elementos que o comunismo parece estar perdendo por sua inabilidade palmar?

E por fim a pergunta atômica: e De Gaulle?