Legionário, N.º 603, 27 de fevereiro de 1944

7 DIAS EM REVISTA

Os recentes artigos que esta Folha publicou a respeito do livro do Sr. Jacques Maritain, Les Droits de l'Homme e la loi naturelle, tem valido a seu ilustre autor, o Revmo. Pe. Arlindo Vieira, S.J., numerosas felicitações que exprimem o desafogo sentido por numerosos elementos de grande valor cultural no Clero e laicato católico, ao ver por fim apontados os erros e ambigüidades daquele escritor.

Esta Folha recebeu de Minas Gerais, a respeito do mesmo assunto, os seguintes telegramas:

Do Revmo. Pe. José Corrêa, Vigário da Catedral de Juiz de Fora:

"Parabéns inteiro apoio "LEGIONÁRIO" pelas atitudes ortodoxas desassombradas sobretudo no caso Maritain. Pe. José Corrêa, Vigário Catedral".

Do Revmo. Sr. Padre Flávio da Motta, nosso confrade de Sete Lagoas:

"Congratulo-me confrade "LEGIONÁRIO" órgão genuinamente católico nobre atitude repulsa erro maritaino defesa benemérito jesuíta, Padre Arlindo. Abraços fraternais. Padre Flávio da Motta".

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Ano por ano, o LEGIONÁRIO tem acentuado a decadência dos festejos carnavalescos entre nós. Tudo se faz para eternizar esses festejos populares outrora pitorescos e familiares, mas já agora profundamente deformados pelos costumes pagãos de nosso século. Nem sequer os largos e obstinados auxílios oficiais conseguiram reacender as ardências do espírito carnavalesco. Sua agonia era irremediável e não houve subvenções nem tablados que a retardassem. A guerra outra coisa não fez senão atirar Momo dentro da sepultura que já lhe estava preparada. Em 1944, não houve cronista social da imprensa diária que não lhe registrasse o definitivo desaparecimento.

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Ainda alcançamos em São Paulo o tempo do carnaval estritamente familiar que se fazia na Avenida Paulista. Com uma ordem impecável os magníficos carros subiam em fila ininterrupta pela Av. Angélica, tomavam a Av. Paulista e desciam pela Av. Brigadeiro Luiz Antônio, refazendo depois o mesmo caminho em sentido inverso. Automóveis esplêndidos, fantasias muito ricas e até por vezes faustosas, em que a intenção de manifestar bom gosto e opulência era muitíssimo mais freqüente do que o desejo de causar riso, provocar pilhéria e descambar para a palhaçada. O carnaval paulista era bem paulista, bem grave, bem familiar e bem aristocrático. Nos carros viajavam as famílias "au grand complet", isto é, ao par dos moços ou das moças da casa, os pais, tios, avós, as crianças, os [.....falta palavra no texto] mente o carro. Iam de pé no automóvel, ocupavam os interstícios disponíveis entre os mais velhos e até entre as moças na capota, incomodavam e apertavam um pouco a todo o mundo, mas ninguém se lembrava de protestar. De vez em quando, um dedo amassado por um pisão violento e irrefletido de criança, um pé de criança luxado por ter entrado em colisão com a ossatura irredutível de algum adulto, um pouco de manha, algum pequeno protesto, e sobretudo muita risada e muita bonomia, era em suma o que esses incidentes de superlotação no automóvel provocavam. Nos estribos dos dois lados e junto ao "chauffeur" na parte dianteira do automóvel - dizia-se ainda a "boleia" como se se tratasse de um carro - iam os rapazes.

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Como se vê, cada automóvel levava uma família "au grand complet" e os divertimentos ainda tinham uma tal nota de seriedade, ao menos relativa, que ninguém imaginava que pudesse ser mais "divertido" alijar os mais velhos para dar largas a uma conduta que eles reprovariam, ou trancar em casa as crianças para não as escandalizar. Os moços se divertiam. As crianças brincavam. Os velhos se distraiam vendo divertir-se uns e brincar outros. E, as horas tantas, a dona da casa, sempre previdente, tirava de algum recanto - esqueci-me de dizer que no grande torpedo familiar cabia ainda todo um sortimento de serpentinas, lança-perfumes, confetis, viveres - um vasto "estoque" de pastéis, sanduíches, empadas, croquetes, doces, garrafas de vinho, cerveja, águas minerais, mil coisas ainda, guardanapos, copos, garrafas térmicas etc., e familiarmente, pachorrentamente, enquanto os automóveis passeavam e os conhecidos gritavam "bom apetite" ou jogavam serpentinas, todo mundo se punha a comer com uma fome aguçada pela novidade do menu. Pelo ar livre, pela gesticulação freqüente dos bombardeios de confeti e das batalhas de serpentinas, e avós, filhos, primos, netos, "toute la marmaille" comiam até se fartar. Esta nota sobre a lotação do automóvel familiar não seria completa se não se dissesse que a prudência das mães de família conseguia o milagre de incluir inexplicavelmente em enigmáticos recantos do carro, agasalhos necessários para a hipótese reputada terrível, de uma inesperada carga de água, ou para uma longa resistência a um chuvisco sempre possível mas diante do qual ninguém arredava pé do corso. E ainda havia mais: um remedinho discreto e oportuno para cortar o resfriado traiçoeiro que acometesse alguma criança e se externasse por algum espirro alarmante para o zelo materno.

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Todas essas coisas já são tão distantes, que vale a pena recordar alguns pormenores. Ao longo das três grandes artérias em que se fazia o corso da aristocracia paulista, quase só se viam nos vistosos automóveis as famílias de "quatrocentos anos", e no corso todo o mundo de linha era mais ou menos parente, mais ou menos amigo. As famílias íntimas se cumprimentavam com grande efusão, multiplicando as serpentinas de lado a lado indefinidamente, enquanto alcançassem. As que tinham menos intimidade eram mais cerimoniosas. Raros, relativamente, eram os carros de pessoas que só se conheciam "de vista", caso em que as manifestações de parte a parte ou não existiam ou eram muito formais. Os intrusos passavam ignorados pela gentry. Não eram só as pessoas que estavam de automóvel que participavam do corso. Em grande número de residências aristocráticas - não uso a palavra "burguês" porque seria um insulto naquele tempo de bom gosto - havia toda uma iluminação de lâmpadas multicolores. Em alguns jardins, bem junto ao muro havia em certas residências pequenos terraços especialmente feitos para "ver passar o corso" nos três dias do carnaval. E, quando passavam os conhecidos, era sempre uma orgia de confetis e serpentinas.

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Ao mesmo tempo, em alguns coretos, tocava a Banda da Força Pública. Se não me engano, a Avenida Paulista - dizia-se Avenida simplesmente - era iluminada por iniciativa da Prefeitura. De quando em quando encontravam-se quiosques vistosamente enfeitados: vendiam artigos carnavalescos para os automóveis que tivessem esgotado sua provisão, máscaras, bisnagas e víveres de segunda classe para o povinho. Este, fervia de contentamento e formigava ao longo das ruas. Eram numerosas famílias da pequena burguesia, ou do operariado que se comprimiam pelas calçadas para ver passar, deslumbrados, toda a "jeunesse dorée" da cidade, escoltada pelos elementos mais veneráveis do patriciado. E, evidentemente, também esse povinho muito se divertia a valer, gastando o que podia, exibindo as fantasias que arranjara e cantando alto e em cordões as canções do carnaval.

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Toda esta recordação tem seu motivo útil. Houve tempos, como vemos, em que o carnaval era uma indiscutível imprudência, mas não chegava nem de longe a ser uma indecência. Os costumes sociais eram bastante sólidos para coibir qualquer imoralidade, se já não eram bastante firmes para evitar qualquer imprudência. São Paulo tinha quadros sociais definidos, uma organização familiar forte e estável, costumes pautados por princípios morais ainda vivazes. E, entretanto, tudo isso, no espaço máximo de 20 anos, derivou para a promiscuidade, a indecência, o escândalo, a abjeção. Por que? Eis aí uma questão que vale a pena de ser feita.

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O carnaval era dentro do ano, apenas um rápido episódio de três dias. Nos outros dias do ano, o teor da vida aqui, como aliás, infelizmente, no mundo inteiro, ia mudando cada vez mais, a invasão torrencial das idéias ditas modernas destruía princípios, aluía hábitos, deformava sentimentos e desorientava as mentalidades. Cada ano representava um degrau que se descia na escala da moralidade. E, por isso, cada carnaval seguinte trazia consigo sintomas mais característicos de decadência moral. Todos os instintos, todos os atrevimentos, todas as imprudências, todas as facilidades e desregramentos, cada vez mais acesos e mais mal contidos no correr do ano, explodiam durante o carnaval com intensidade maior. Os três dias de carnaval passavam a ser a válvula por onde passava a chama de um incêndio que crescia sob a aparente normalidade da vida quotidiana. O carnaval perdeu assim sua nota familiar. Ao lado do corso, outras festas apareceram mais "decididas", mais "radicais". Para que lembrar tudo isto? Chegamos por fim a este resultado: antigamente o carnaval era um desabafo. Mas desabafo supõe abafamento. A vida se transformou em um carnaval; o carnaval perdeu a sua razão de viver. Caturrice do LEGIONÁRIO? Não. Constatação espirituosa de um dos cronistas sociais mais lidos nesta cidade.

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Todo mundo nestes dias foge para as praias e para os campos. Para que? Para descansar? Sim. Só para isso? Talvez não. Com efeito, chegados às praias, aos campos, o que fazem os excursionistas? Outro desabafo. Desabafam-se da civilização. Despem tudo quanto podem despir. Falemos só dos homens: peitos peludos à mostra, braços felpudos cobertos apenas pelos poucos centímetros de uma manguinha infantil. Camisão de tecido poroso e cores de lingerie de crianças de colo usado todo ele indecentemente de fora, e às vezes de calça curta e meia curta; ei-los em pleno desabafo, rubicundos e pletóricos meninões de todas as idades - 20, 30, 50 anos - e de todas as profissões desde o banqueiro, o industrial ou o comerciante até o modesto funcionário, passando pela classe intermediária dos doutores e professores. Tudo se desabafa, tudo se despe, tudo toma roupas com corte de traje proletário ou de mendigo (mas com que fazendas, exorbitantemente caras), tudo toma ares de poviléu, quebram-se as últimas cerimônias, desfazem-se os últimos recatos, dissolvem-se as últimas dignidades, e, terminados os dias de excursão, todo mundo volta para a vida de todos os dias um pouco mais inimigo da roupa, da linha, da cerimônia do que fora. É o fruto deste outro gênero de desabafo. Outrora o carnaval era um desabafo da imoralidade. Agora, as excursões marítimas e silvestres servem para desabafar das regras mais elementares do bom tom. Daqui a 30 anos é provável que o desabafo consista em usar só uma tanga, não limpar mais os ouvidos nem o nariz, nem as unhas, cuspir no chão, dançar samba descalços no mato. Haverá tabas luxuosas, com diária de 700 ou 800 cruzeiros. Cada pena de tanga custará 100 cruzeiros, o que não será mal porque as tangas não terão muitas penas. Uma tanga modelo cuja originalidade consistirá em ser de penas de pássaros de vários países, custará alguns dez mil cruzeiros.

Exagero, dir-se-á. Há 30 anos, havia uns catões que prediziam em que charco haveríamos de parar. E havia também uns toleirões que respondiam "exagero". Os exageros não estavam nos profetas, mas nos acontecimentos que superaram as profecias.

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Mas, graças a Deus, há também outro "desabafo". É o dos Congregados Marianos, das Filhas de Maria, da Ação Católica que não se podem conformar com tudo isto, se sentem abafados neste asfixiante desabafamento de maus odores, de maus costumes, de péssimas inclinações. E que se desabafam nos retiros espirituais, trabalhando para preparar no recolhimento e na piedade nestes dias de carnaval um Brasil mais católico, um Brasil reintegrado em suas tradições e digno de seu futuro.

Esse desabafo vencerá todos os outros. Otimismo nos dirão os que há pouco nos diziam pessimismo. E nós responderemos: "qui vivra verra!".