Ainda é cedo para que se possa fazer uma apreciação
segura acerca do processo de Riom. De qualquer
maneira, os telegramas divulgados pela [agência] oficiosa de Vichi, Havas-Telemondiale,
parecem insinuar que os inculpados não tiveram, no fundo, qualquer
responsabilidade, sendo do regime, e só dele, todos os defeitos. Nesse mesmo
sentido, a "Manhã" publicou e o "Estado" transcreveu um
artigo que sustentava explicitamente tal tese.
Desde logo, devemos dizer que não aceitamos esse
ponto de vista, e que, se for essa a conclusão das cortes de Riom, todo o processo terá fracassado.
Com efeito, pode-se admitir que um regime embarace
de modo profundo a atividade de homens moral e intelectualmente apreciáveis.
Não se pode, entretanto, admitir que um regime possa estar em mãos de pessoas
excelentes sobre os quais exerça entretanto ação corruptora e analgésica
inelutável, de maneira que o imenso e trágico fracasso da França só à má mecânica
constitucional se deva atribuir.
Os homens valem e podem mais do que os regimes e
não devem procurar responsabilizar exclusivamente as formas de governo por
acontecimentos de que são eles mesmos os primeiros culpados.
* * *
Assim, se se pretende
responsabilizar exclusivamente a forma liberal democrática de governo ter-se-á
errado redondamente. Certamente, essa forma teve uma nefasta influência sobre o
curso dos acontecimentos, mas estes não teriam sido nem tão catastróficos nem
tão inesperados se a França, desde 1789 até aqui, não tivesse sido lentamente minada
pelo agnosticismo, pelo ateísmo, pela legislação laica, pela ação dissolvente
da [...] quinta coluna, cagoulards
e outras forças [...], pelo repúdio sistemático de suas tradições. A corte de Riom passará uma venda nos olhos da opinião pública se se limitar a um julgamento impessoal que atinja tão somente
a estrutura das instituições francesas. A França apostatou da Igreja e repudiou
o seu passado histórico. É esse o mal que ela expia, e‚ só no corretivo desse
mal que ela encontrará remédio.
Isto posto, de nada valerá que o Sr. Pétain e seus auxiliares
pretendam resolver tudo retocando a fachada das instituições francesas segundo
os últimos figurinos de Berlim, e aproveitando quiçá, no regime novo, todos os
[...] livres pensadores do regime antigo.
* * *
Se fazemos esta observação não é porque desejamos
agravar a justíssima dor de nossos irmãos franceses, mas porque uma grande
lição desprende destes fatos para o mundo inteiro. Não é com paliativos, com
meias medidas que se pode resolver o mal.
Os paliativos só podem retardar a cura. Não foi
pintando com novas tintas seus velhos ídolos que a França de Clóvis se converteu: ela teve que queimar o que adorara, e
adorar o que queimara.
Para a França, e para todos os povos
contemporâneos, não pode ser outro o caminho. O totalitarismo não significa a
destruição dos ídolos do século passado, mas apenas uma mudança em suas
roupagens. É preciso que os ídolos caiam, e não basta que se transformem.
* * *
Duas notícias interessantes nos vieram na última
semana, acerca do Vaticano. Uma narrava que o Santo Padre recebera de Stalin uma secretíssima
mensagem. A outra informava que o Vaticano estava estudando uma proposta de Tóquio
no sentido da constituição de uma legação permanente do governo nipônico junto
ao Trono de S. Pedro, o que até aqui não existia.
Ambas as notícias — das quais a primeira parece não
ser verídica — não estariam em desacordo com a orientação da Santa Sé. Com
efeito, o Santo Padre Leão XIII já esclareceu que a
Igreja, quando estabelece relações diplomáticas com qualquer governo não
pretende de modo algum reconhecer sua legitimidade, a conformidade da
organização político-social por ele adotada com a doutrina católica, ou o valor
de seus métodos do ponto de vista da moral internacional. O Vaticano considera
os governos como detentores de fato de uma soma de faculdades de agir, e assim,
reservando-se embora o direito de condenar formalmente toda a ideologia sobre
que se baseiam, pode o Vaticano manter com eles relações que versam sobre uma
ou outra questão de detalhes.
Nesse
sentido, p. ex., é curioso notar que, tendo chegado ao auge da tensão as
relações diplomáticas entre o Vaticano e a Alemanha, e sendo fortíssima a
perseguição religiosa naquele país, ainda existe um Núncio acreditado em Berlim, e um embaixador teuto
acreditado junto ao Vaticano.
E isto
posto, não surpreende que o Vaticano, condenando embora os métodos imorais da
política exterior nipônica, tenha o Núncio em Tóquio; em que o Santo Padre,
estigmatizando a fundo o bolchevismo, examine com atenção algumas missivas de
Stalin.