Legionário,
N° 381, 31 de dezembro de 1939
7 Dias em Revista
Já acentuamos em nossa edição anterior que nos
documentos pontifícios deve ser pesada cada palavra e até cada letra, porque a
Santa Sé os redige com uma precisão maravilhosa, sempre livre de demasias de
expressão, superfluidades ou redundâncias inúteis. Em
tudo o que emana do Vaticano, as frases são como organismos em que cada palavra
tem uma razão de ser própria, e profundamente meditada.
É à luz deste princípio de hermenêutica que se deve
analisar o texto dos “itens” de paz apresentados pelo Papa Pio XII.
Ver-se-á que eles foram redigidos com a precaução
meticulosa de servirem à paz sem constituírem, entretanto, pretexto para aquilo
a que a giria diplomática convencionou chamar “um
novo Munich”.
* * *
O primeiro item é a “garantia e independência de todas
as nações”. Em outros tempos, a palavra “garantia” seria inútil. Bastaria pedir
a independência de todas as nações, o que já subentenderia a garantia moral de
que tal independência seria respeitada. Mas Pio XII, prudentemente, forrou a
expressão com a palavra “garantia”. É que o Santo Padre não quer um platônico
reconhecimento de independência. Uma independência “garantida” é uma
independência protegida por elementos eficazes de defesa quer econômicos quer
militares. E a necessidade de “garantia” revela a persuasão de que, sem
garantia, os apetites de conquista, sempre vivazes na “mentalidade
totalitária”, tornarão nula a independência.
* * *
Convém acrescentar que o Santo Padre não pede a independência
de todos os Estados, mas de todas as nações. Em linguagem jurídica, entre uma
expressão e outra há diferenças apreciáveis, e perfeitamente consagradas pela
unanimidade dos tratadistas. Quando um povo ocupa um determinado território,
tem linguagem própria, costumes próprios, tradições históricas próprias, etc.,
é uma nação. A Nação pode ser independente – neste caso é um Estado, como por
exemplo o Brasil – ou pode estar sob a soberania de outra, como por exemplo a
Polônia, a Boêmia, a Morávia, a Albânia, etc. Se elas
fossem plenamente independentes, seriam Estados. Mas hoje são meras nações. O
que Pio XII pede é a independência “das nações”. É este o texto que nos
transmitiu o telégrafo. E a expressão do Papa é genérica, não tem exceções e
nem comporta restrições...
Como antigo Cardeal-Secretário
de Estado de Pio XI, Pio XII não ignora que a ação política do Sr. Mussolini apresenta dois aspectos: de um lado o
anticomunismo que teve no Tratado de Latrão sua
expressão mais nobre e mais autêntica, e, de outro lado, o totalitarismo... que
Pio XII equiparou ao comunismo, e que teve na famosa crise de 1931 e na aliança
confessadamente diplomática e também ideológica com a
Alemanha a sua expressão mais forte. Todos se lembram das lágrimas e das
queixas amargas, oficialmente externadas por Pio XI ante o espetáculo doloroso
da Cidade dos mártires e dos Papas embandeirada com a cruz suástica, no dia da
Santa Cruz, para receber um dos mais declarados inimigos da Cruz de Cristo em
nosso século, o Sr. Adolf Hitler.
Ao mesmo tempo que condena o totalitarismo com uma
frase de inevitável repercussão interna na Itália, Pio XII mobiliza todas as
forças sadias daquele glorioso país em benefício de uma paz que, feita nos
termos em que o Pontífice a propõe, será a morte do eixo Roma-Berlim.
É este o sentido da aproximação entre o Vaticano e a Casa de Sabóia.
Assim, a diplomacia Pontifícia parece tender a apertar
o Sr. Mussolini entre as pontas de uma alternativa:
ou romper com o totalitarismo e dar definitiva preponderância aos bons aspectos
de sua política sobre os maus, ou conservar-se fiel ao eixo e à política
totalitária desgostando toda a massa católica da população e todos os elementos
ligados à Casa Real no exército e na “elite” do país, arcando com as
conseqüências disto...
Com todo o peso sobrenatural de sua autoridade divina,
com toda a suavidade de seu coração de Pai, com toda a sabedoria de seu tato
diplomático, Pio XII procurará, ao receber a visita do Sr. Mussolini,
orientá-lo no caminho de Deus, que só o Papa pode e sabe apontar. Para tanto,
esquecendo generosamente o passado, preparar-lhe-á certamente carinhosa
recepção pública. Virá depois o colóquio a portas fechadas, acompanhado de
joelhos e em espírito de oração, por toda a Cristandade. Queime o Sr. Mussolini o que adorou, e adore o que queimou, e o
“Legionário”, exultando de satisfação, será para sua política, no âmbito de
suas possibilidades, um inexpugnável reduto de admiradores. Porque com o mesmo
ardor com que combatemos os seus erros, amamos sua alma e nos regozijamos com
sua penitência.
Mas se tal “conversão” não se der, o Santo Padre já
semeou no caminho de Mussolini, com sua aproximação
com a Casa Real, obstáculos que dificilmente conseguirá ele superar.
* * *
O “item” 4º se refere à “revisão dos tratados atuais,
de forma a fazerem face às exigências e às justas necessidades dos povos e das
minorias”.
Bento XV recriminou clara e insistentemente o Tratado
de Versailles, por expor os povos vencidos a uma
dureza de condições que, cedo ou tarde, teria como conseqüência o renascimento
do espírito de “revanche”. As reais injustiças deste
tratado serviram de pretexto à toda a propaganda nazista, e é possível que sem
elas o Sr. Hitler não tivesse subido ao poder. Nunca talvez se pagou mais caro
o desprezo às palavras do Pontífice.
Aludindo à conveniência de se destruírem algumas
injustiças ainda remanescentes do Tratado de Versailles,
o Pontífice se mantém dentro da tradição diplomática do Vaticano, firmada por
Bento XV e mantida por Pio XI. E ao mesmo tempo, dá provas de um admirável
equilíbrio, pois que pleiteia para a Alemanha o que de justo ela pode desejar,
no próprio documento em que se condena com tanto vigor uma política de agressão
cujo autor ninguém desconhece.
* * *
Há entretanto, mesmo neste tópico, uma distinção
curiosa que revela o receio do Pontífice de ser envolvido como pretexto para um
“novo Munich”. Fala ele em “justas necessidades”. Em
tese, toda a necessidade real e autêntica de um povo laborioso, honesto e
moderado em suas despesas, é justa. Injusta só é a necessidade decorrente do
crime, da inércia, ou do mau emprego do dinheiro.
Note-se que há diferença entre “reivindicação” e
“necessidade”. A reivindicação pode não ser necessária, se bem que justa. A
necessidade, sempre que sobrevenha sem culpa do necessitado, é justa.
Não é difícil compreender que o Santo Padre quis
distinguir positivamente as necessidades decorrentes de inelutáveis tropeços
econômicos, das que provém do excesso de armamentismo, da manutenção de uma
propaganda imperialista no mundo inteiro sob a forma de partidos nacionais
oficialmente organizados em países estrangeiros, do exibicionismo faustoso das
manifestações políticas, etc., etc. Ou então, como sucede do outro lado das
trincheiras, das “necessidades” dos banqueiros (...) que não se fartam de sugar
os orçamentos, sob pretexto de juros...
* * *
Também o terceiro “item”, referente à “criação de uma
instituição jurídica incumbida de velar pela aplicação leal e legal do acordo
internacional e que garanta que o tratado de paz não será interpretado
arbitrária e unilateralmente”, merece atenção.
Para que tal exuberância de adjetivação? Para que
falar em aplicação “leal e legal” do acordo internacional, senão para mostrar
que ainda está bem viva a apreensão causada por toda a sorte de “aplicações
ilegais” e “desleais” de acordos internacionais? E quem fez, a seu talante,
interpretações unilaterais destes tratados?
Não é preciso ser estadista para conhecer a resposta.
* * *
A despeito de todo o seu trabalho em prol da Paz, Pio
XII tem, no fim, uma advertência realista que deixa entrever seus temores pela
durabilidade da obra. O 5º item é a “obrigação, para os governos, de manterem o
senso de suas responsabilidades”.
Em outros termos, Pio XII reedita neste item a eterna
lição da Igreja de que nada valem as constituições, as leis, os tratados e os
acordos internacionais, se uma séria regeneração moral dos que estão
encarregados de lhes dar aplicação, não sobrevier quanto antes.
Pio XII poderia ter dito muito mais do que disse no 5º
“item”. Ele, entretanto, não pediu uma virtude sobrenatural, mas uma simples
virtude humana: o senso das responsabilidades.
A que eqüivale isto senão a afirmar que não se pode
esperar muito mais do que esse minimalíssimo mínimo
dos homens que dirigem o mundo? E ainda que até este minimum
parece ter desertado?
Enfim, essa perspectiva final sombria não impediu o
Papa de rezar e de trabalhar por uma “paz decorrente da justiça”, e não da
consolidação definitiva da rapina e do crime na esfera internacional.
Rezemos também nós, em união com o Pontífice, a Nossa
Senhora, Medianeira de todas as Graças, para que suas intenções sejam atendidas
para a maior glória de Deus e exaltação da Santa Igreja.
* * *
Finalmente, sobre o “item” 4º ainda uma observação. O Papa fala em direito
de minorias. Que minorias? O assunto atrapalhou tanto certos estadistas, que,
na Alemanha, a publicação disto foi proibida.
É que eram, por exemplo, minorias os sudetos.
Mas hoje não é a Polônia, por exemplo, uma minoria?