Legionário, n.º 336, 19 de fevereiro de 1939
7 DIAS EM REVISTA
Plinio Corrêa de Oliveira
Deploramos profundamente que a imprensa fascista - na Itália e fora dela - tenha citado de modo incompleto a alocução de Natal, proferida pelo grande Papa que o mundo inteiro ainda chora.
Em nossa última edição publicamos o texto integral daquela importantíssima alocução, fazendo nossa tradução diretamente do "Osservatore Romano", órgão oficioso da Santa Sé.
De acordo com o que se vê no texto do "Osservatore", o Santo Padre, depois de se referir ao Tratado de Latrão em termos elogiosos, lembrou a participação que, para a realização daquele acordo, tiveram S. M. o Imperador-Rei Victor Manuel e o Sr. Benito Mussolini. Depois, com palavras de uma veemência, desusada nos documentos pontifícios, Pio XI exprimiu o mais amargo ressentimento pelos gestos expressamente qualificados de "brutais", de autoridades fascistas, e confirmou com sua autoridade suprema e decisiva todas as apreensões que o LEGIONÁRIO, infelizmente, se tem visto obrigado a nutrir. Ninguém poderá ter uma idéia do que foi, como modelo de coragem apostólica, o discurso do Santo Padre, se não tiver lido seu texto integral.
Isto posto, o que faz a imprensa fascista? Publica o discurso depois da morte do grande Papa, citando apenas a parte elogiosa e silenciando o resto.
Preferimos não qualificar essa atitude.
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Os prognósticos feitos pela imprensa diária a respeito da sucessão de Pio XI merecem alguns reparos.
O primeiro deles se refere à orientação política do futuro Pontífice. Muitos jornalistas falam da possibilidade de ser eleito um Papa fascista ou antifascista, democrático ou antidemocrático, que, segundo eles, seria de suma importância para conhecer a futura orientação da Igreja.
Em primeiro lugar, cumpre notar que, no Sacro Colégio Cardinalício, poderá haver diversidade de modo de vistas a respeito de coisas exclusivamente humanas. Entretanto, nem um único Cardeal pode existir que dispense apoio ou simpatia a qualquer dos erros doutrinários existentes, tanto no campo das pretensas democracias, quanto no campo totalitário.
Por outro lado, o Cardeal que for elevado ao trono de São Pedro ficará, ipso facto, amparado pela infalibilidade papal, pelo que é impossível que, de futuro, venha ele a revogar algo do que disseram seus antecessores, ou de pactuar e aprovar algum erro sobre o qual estes ainda não se pronunciaram.
Assim seja qual for o futuro Papa, a Santa Igreja está resguardada contra qualquer possibilidade de aprovação de erros existentes, quer em um quer em outro dos grandes campos políticos em que, na aparência, está cindido o mundo contemporâneo.
Há outra observação a fazer. É a que se refere à distinção entre cardeais místicos e políticos. Apresentada assim, essa distinção gera uma impressão errada, parece ela insinuar que há cardeais que se dedicam exclusiva ou principalmente à política (sabemos quanto essa expressão é ambígua) e outros que se dedicam à Religião. Estes últimos, evidentemente, estão no seu papel. Quanto aos primeiros, apresentados ao grande público sobretudo como homens políticos, que impressão causarão?
Entendamo-nos. Os cardeais são os auxiliares imediatos do Santo Padre, a quem prestam seus serviços na solução de todos os assuntos que afetam a missão divina da Igreja. Esses assuntos, evidentemente, são de uma imensa variedade e de uma inexaurível complexidade. A Santa Sé é chamada constantemente a se definir a respeito de questões científicas, sobre as quais o povo deseja saber o verdadeiro pensamento da Igreja. Assim, pois, precisa a Santa Sé contar com a cooperação de insignes cientistas católicos, capazes de manter sempre nos devidos termos as relações entre a ciência e a Fé. Por outro lado, há questões teológicas importantíssimas a resolver, para as quais a Santa Sé precisa de grandes teólogos. Há ainda importantes problemas de ação apostólica concreta. Para estes problemas, a Santa Sé precisa de pessoas dotadas de um espírito prático, positivo e realizador. Finalmente, há as relações entre a Santa Sé e os governos do mundo inteiro, para cujo andamento, evidentemente, a Santa Sé precisa de pessoas experientes, perspicazes e cultas. Esta enumeração sumária é evidentemente muito incompleta.
Ora, para cada uma dessas atividades, tem a Santa Sé seus cardeais, dentre os que alguns são diplomatas, como o virtuosíssimo Cardeal Pacelli. É o que, na realidade, se pode dizer sobre "cardeais políticos".
Vamos agora aos "cardeais místicos". É uma tolice supor que só os cardeais que se dedicam aos assuntos estritamente piedosos são, na realidade, homens de uma intensa e fervorosa vida de oração.
Um cardeal deve desenvolver todo o seu apostolado unicamente por amor de Deus. E seu apostolado será tanto mais frutuoso quanto maior será o amor com que o fizer. Porque Deus não precisa de ninguém e não abençoa o apostolado feito sem um verdadeiro amor, conquanto com grande talento e saber.
Por isso mesmo, tanto um cardeal dedicado ao estudo de questões diplomáticas e sociais, quanto outro que se dedica a questões rigorosamente místicas, quanto outro, ainda, que seja grande organizador de obras de apostolado, quanto outro, finalmente, que vive empenhado nas mais altas questões científicas, deve ser um homem de vida de oração, que faça de sua santificação a única preocupação essencial de sua vida.
Assim pois, se é verdade que há cardeais cientistas, diplomatas ou dirigentes de grandes movimentos de massas, nenhum há entretanto que não seja um cardeal inteiramente voltado para o cultivo de sua santificação.
Nesta ordem de idéias, há outra coisa a dizer. É sobre a questão de ser ou de não ser italiano o futuro Papa.
Em tese, pouco importa. Desde que seja digno de seu alto cargo, e corresponda inteiramente à vontade de Deus, o Papa corresponderá inteiramente às intenções de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando instituiu o Papado na pessoa de São Pedro. Aliás, ainda que sua vida não fosse digna, o que seria estúpido e injurioso esperar, seria ele para todos os efeitos o Vigário de Cristo, dotado da proteção do Espírito Santo, que lhe asseguraria a infalibilidade em matéria de Fé e costumes.
Portanto, parece-nos simplesmente malsão que alguém tenha pruridos de querer um Papa não italiano. Preto, branco, amarelo ou vermelho, tanto faz. Não vemos, pois, porque, senão por uma fútil ciumeira, se haveria de querer um Papa desta ou daquela nação, de preferência a esta ou aquela outra.
Dissemos que, "em tese", é indiferente a nacionalidade do Papa. Na prática, porém, tudo faz prever que, na sua sabedoria, o conclave elegerá um Papa italiano.
Não é preciso ter olhos de lince para perceber o motivo disto. A qualquer momento pode surgir um incidente da Santa Sé com o governo da Itália, como aliás com o de qualquer outro país. Se esse incidente surgisse com um Papa estrangeiro, não seria difícil suscitar contra ele o nacionalismo tão em voga em nossa época, dizendo que ele está procurando beneficiar seu país de origem, em detrimento da Itália. Sendo italiano o Papa, essa fácil e funestíssima manobra cairia por terra.
Ainda que outras e fortíssimas razões não existissem, bastaria esta. Entretanto, fazemos ainda uma pergunta: se durante a última guerra mundial o Papa, em lugar de ser italiano, tivesse sido alemão ou austríaco, qual seria a posição do Papado? Não seria melindrosíssima?
Portanto, o Papa será provavelmente italiano. Aliás, a Itália está perfeitamente à altura da glória de ver um seu filho elevado ao sólio de São Pedro, glória essa que todos devem admirar fraternalmente, sem que a ninguém seja lícito invejá-la.
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Já que se trata de guerra, mais uma palavra rápida. Chamamos a atenção de nossos leitores para a belíssima pastoral do Cardeal Kaspar, Arcebispo de Praga, em que aquele alto Prelado afirma publicamente que Pio XI tudo fez pela Tchecoslováquia na última crise, tendo mesmo envidado esforços muito maiores do que os que o público conhece. Se um Papa não italiano, um francês, por exemplo, fizesse tanto pelos tchecos, quem não diria, em certos círculos, que se tratava de um gesto de hostilidade à Itália, para favorecer à França?
A margem deste fato, mais um comentário, revelada agora pelo Arcebispo de Praga a atitude discreta, mas eficientíssima de Pio XI em prol da nobre Tchecoslováquia, fica ou não confirmada a atitude assumida pelo LEGIONÁRIO, a propósito daquele acontecimento?