À margem de uma crítica
“O
Legionário”, N.º 153, 2 de setembro de 1934
Dizia alguém de Joseph de Maistre que ele enfonçait la verité dans les têtes, par ses
pointes. Eis aí uma crítica que não pode ser feita ao Sr. Plinio Barreto,
que é um dos escritores mais suavemente, e eu quase diria, mais sorrateiramente
persuasivos, que atualmente vivem em terras do Brasil.
Já de há muito lhe venho eu admirando a habilidade com
que sabe sugerir ao leitor impressões que, em seus escritos, ele apenas esboça,
e a admirável sutileza com que semeia no espírito alheio, com mão aparentemente
despreocupada, premissas que, cedo ou tarde, frutificarão em conclusões
desejadas pelo autor.
Na bela crítica que ele faz ao trabalho do Sr. Daniel
de Carvalho, sobre “Theophilo Ottoni, Campeão da Liberdade”, mostra o Sr.
Plinio Barreto o desprestígio em que o liberalismo caiu, perante as massas, e
principalmente as massas jovens do século XX. Nenhuma palavra, porém, trai a
tristeza com que sua pena de infatigável batalhador do liberalismo traçou o
atestado de óbito glacial da ideologia defendida com tanto amor.
Apenas para que o percebessem tão somente os
iniciados, deixou ele flutuar em torno de sua crítica um vago perfume de
melancolia, que o autor não pretendeu ocultar, mas tornar acessível
exclusivamente a um grupo reduzido de técnicos neste inocente gênero de...
despistamentos.
Daí a poucos passos, porém, o liberal se trai. E é com
a “fougue” [fogo, arrebatamento, entusiasmo] e o brilho de sempre que o vemos
recitar seu velho Credo democrático, com um encolher céptico de ombros em
relação aos adversários, que faz esquecer certamente o doce comentador de
“Theophilo Ottoni”.
Não posso furtar-me ao prazer de transcrever o trecho,
para mim culminante, da critica que faz ao livro do prócer integralista, Sr.
Miguel Reale: “O meu cepticismo sobre as virtudes de regimes políticos
absolutos, sobre a possibilidade de encerrar os homens de uma nação no cárcere
da unidade mental e social, tira a sua seiva da observação desapaixonada do que
tem sido a humanidade na sua misteriosa peregrinação pela terra. Se a Igreja
Católica, que é mais admirável organização associativa e a mais forte
domesticadora de homens que o mundo jamais conheceu, não conseguiu estabelecer,
nem mesmo dentro de uma só nação, a unidade de pensamento e de ação e
integralizar o homem aos Evangelhos, que são o mais famoso dos códigos morais,
há de ser o Estado que consiga integralizá-los aos seus postulados, que nem
sempre se recomendam pela moral e pela justiça? Se a ação integralizadora da
Igreja falhou apesar da autoridade divina em que se apoiou e de se dirigir ao
que o homem tem de mais belo e mais nobre, que é o sentimento, que é a
espiritualidade, a do Estado, que se inspira em um triste utilitarismo e só se
alicerça nos instintos mais grosseiros da humanidade, é que há de triunfar?
“Não se pode afirmar que a dúvida seja destituída de
fundamento. Não. Se a Inquisição não pôde manter a Igreja ao abrigo das
heresias, não serão as tchekas que darão aos Estados a uniformidade de pensamento
e a subordinação integral dos indivíduos aos seus ditames. A razão humana será
sempre uma revoltada contra a razão do Estado. O não conformismo é uma das leis
da criatura humana”.
Confesso que não conheço o livro do Sr. Miguel Reale.
No entanto, pelo que conheço da doutrina integralista,
e pelo que conheço do Sr. Plinio Barreto, de quem sou velho e assíduo leitor,
não posso vencer a tentação de pôr em confronto o Sr. Miguel Reale e o
liberalismo, ao que diz respeito à sua posição perante o Catolicismo.
Não há duvida que o integralismo assume, perante o
Catolicismo, uma situação muito mais simpática do que o liberalismo. No fundo,
porém, é sempre uma posição agnóstica que dita a norma de conduta de ambas as
ideologias perante a Igreja. E, enquanto o agnosticismo continuar a servir de
base para as concepções políticas de nossos homens de Estado, não será possível
alicerçar no Brasil a civilização nova que ele tem de produzir.
O liberalismo parte do conceito de que, sendo o
conhecimento da verdade religiosa “inacessível ou de difícil acesso”, não pode
o Estado transformar em causa sua a defesa de uma determinada Religião.
A questão religiosa é, para o liberalismo, uma bomba
que, colocada nas mãos do Estado, nelas tem de estourar inevitavelmente, gerando
as mais ruinosas guerras de religião ou provocando as mais intoleráveis
opressões da liberdade de consciência. O seu âmbito natural é tão somente o da
consciência individual. E a questão religiosa, de problema que interessa à
própria ordem pública, passa a ser uma mera questão de ordem privada,
rebaixadas, consequentemente, as diversas igrejas, a simples instituições de
caráter particular. Dentro da imensidade da matéria e do seu número de
variantes que a teoria liberal comporta, penso que resumi com fidelidade
imparcial o pensamento do agnosticismo democrático.
O integralismo, pelo contrário, reconhece a Igreja...
ou as igrejas como instituições que têm direito a uma expressão político-social
determinada, elementos que são, e dos mais ponderáveis, da vida social que o
Estado integralista deve levar em consideração ao organizar-se. Daí um
deslocamento novo, em que a Igreja, da esfera de mera instituição de vida
privada em que a pusera o liberalismo, é transferida para situação de
instituição de caráter oficial. Ao contrário do que freqüentemente fazia o
Estado liberal, o Estado integralista não persegue a Igreja, não a ignora e nem
a odeia. Pelo contrário, ele lhe dá meios para se defender e até a ampara; não
só ele a conhece como a estimula no exercício de sua missão espiritual; e, em
sã doutrina, ele de bom grado lhe vota aquele respeito atencioso mas um pouco
superior com que um rapaz novo e cheio de vida se compraz em homenagear uma
matrona, que se aproxima do ocaso carregada de gloriosas tradições.
Há, pois, um abismo que separa o integralismo e o
liberalismo, do ponto de vista católico. No entanto, cortando este abismo, há
ainda entre as duas doutrinas antagônicas uma ponte de comunicação. E a esta
ponte parece que até agora não houve, nos arraiais integralistas, senão poucos
atrevidos que ousassem vibrar-lhe o golpe de misericórdia: é o agnosticismo.
Ao contrário do Estado liberal, o Estado integralista
“afirma o espírito”. No entanto, ele não ousa romper de vez com o pior dos
preconceitos liberais, que é o agnosticismo oficial.
Efetivamente, porque não vai o integralismo até um
reconhecimento explícito e oficial da Igreja Católica como Religião de Estado?
Endossa ele os velhos preconceitos liberais a respeito do famoso duende da
liberdade de pensamento? Entende ele ser impossível estabelecer, no domínio
invisível do espírito, uma soberania, uma disciplina e uma lei justificadas
pela razão, a exemplo do que ele tenta fazer no domínio visível do Estado?
Se é este o estado de espírito integralista, é oportuna,
profundamente oportuna a observação do Sr. Plinio Barreto, em alguns de seus
aspectos.
De que maneira pretende o Estado integralista realizar
a disciplina social e suprimir a luta partidária, se não recorrer à
incomparável força espiritual disciplinadora da Igreja, para estabelecer antes
de tudo a unidade dos espíritos?
Pretender que se possa estabelecer em uma nação unida
de ação e de vida política, sem antes se ter estabelecido a unidade de
pensamentos, é pretender implicitamente que não é pelo pensamento que se
governa o homem.
Desacoroçoados, parece-nos que já vemos alguns
integralistas a nos exclamarem (fazendo suas as críticas liberais do Sr. Plinio
Barreto, note-se): mas se a Igreja já revelou sua incapacidade, permitindo que
a civilização ocidental, nascida no seu regaço, progredisse sem ela, e
finalmente se voltasse contra ela, como havemos nós de confiar esta tarefa
novamente às suas mãos? Se fracassou a Igreja Católica no seu ideal de formar
um único rebanho, apascentado por um único Pastor! Com que direito pretendem
agora os seus adeptos arrancar novamente das mãos do Estado o cajado do mando
dos povos, para os depositar novamente nas mãos da Igreja?
Esquece-se o Estado de que ele não sabe manejar o
cajado do pastor, a não ser quando se serve dele como bordão com que se fustiga
ou tacape com que se agride.
Não é verdade que a Igreja nunca tenha realizado a
unidade do espírito humano. A Idade Média realizou, sem dúvida, na Europa, uma
unidade cristã, que o cisma russo reduziu à Europa Ocidental e que a reforma
luterana destruiu.
No entanto, é incontestável que esta unidade existiu.
E nem se argumente que as heresias que às vezes alteavam o colo na Idade Media.
A existência de meteoros que rolam pelo céu,
vagabundos e desorbitados, não implica em negação da existência de um sistema
planetário ordenado, que a marcha das estrelas errantes não pode alterar. As
heresias foram apenas os aerólitos incandescentes que, de quando em quando,
rasgavam com chamas o plácido céu medieval. Isto não impede, porém, que toda a
vida nacional, internacional e social da vida do medievo estivesse fortemente
centralizada, em toda Europa, em torno do Papado, que era a clarabóia da cúpula
medieval, a filtrar sobre todo o organismo social as luzes celestes da doutrina
Católica.
Que o mundo tenha fugido à Igreja, e que ele a tenha
açoitado finalmente no doloroso calvário dos últimos séculos, que milagre?
O homem é livre. E serão vãs todas as tentativas que
pretendam chumbá-lo indissoluvelmente a esta ou àquela ideologia. É o terreno
íntimo do livre arbítrio, em que o Estado não pode intervir e em que o próprio
Deus quer deixar livre jogo à criatura
humana.
Mas se o integralismo não quer reconhecer a verdade
intrínseca da Igreja, mas apenas fazer dela uma propagadora de mitos sociais
úteis, não será loucura tentar ele privar-se da ação daquela em que o Sr.
Plinio Barreto, bem insuspeito, é certo, viu “a mais forte domesticadora de
homens que o mundo jamais conheceu”?