Uma página de diário
“O
Legionário”, N.º 134, 10 de dezembro de 1933
A medida que vão passando os dias, os diversos tipos
de deputados se vão definindo perfeitamente e os hábitos, usos e costumes da
nova Constituinte são consolidados pela prática.
A primeira impressão que me deu a Constituinte foi a
de um enorme e suave aquário de água morna, banhado por uma luz brandamente
pálida, em que evoluíam, com a discrição silenciosa com que só os peixes sabem
evoluir, os tubarões ou as sardinhas da política nacional.
Só quem conhece o Palácio Tiradentes pode apreciar a
justeza da comparação. Tudo nele é rico, discreto e acolchoado, desde a
poltrona em que pontifica o Sr. Antônio Carlos, até a cadeira de engraxate
instalada na barbearia.
Neste ambiente, que o Sr. Zoroastro de Gouveia chama
provavelmente de plutocrático, circulam os representantes da nação brasileira,
com uma gentileza recíproca sem igual.
Realmente, a cortesia é a nota característica de nossa
Constituinte.
O fato tem sua explicação. A grande maioria dos
constituintes é composta de calouros do parlamentarismo brasileiro.
A 15 de novembro, ninguém se conhecia. E, ainda hoje,
o regime é das “abordagens” jeitosas e das “sondagens” disfarçadas.
Compreende-se facilmente que, neste estado de coisas,
um sorriso mais insistente, um pequeno obséquio, ou mesmo um olhar esgueirado,
abre perspectivas inteiramente novas no mapa político de qualquer deputado.
* * *
Já começam a se esboçar as primeiras combinações, e as
negociações se desenvolvem freqüentemente no modo mais pitoresco.
Assim, por exemplo, o deputado X quer salvar a pátria,
resolvendo o problema do ensino primário. Por seu [turno], o deputado Y, que
professa o máximo descaso pela opinião do seu colega, tem por preocupação
central a proteção à pecuária, coisa de que o X nunca cuidou.
Depois de alguns sorrisos e algumas sondagens,
chega-se rapidamente a um acordo, em que a pecuária e a instrução pública
lucram cada qual um novo defensor.
Outro aspecto curioso é a diferenciação das
atividades. Há os deputados de tribuna, e há os de corredor.
Os primeiros são os líderes dos grandes torneios
oratórios. Sua ação é essencialmente explosiva e detonante. São a artilharia
pesada. Ao lado destes, há os de corredor. São os líderes do cochicho e da
confabulação. Afetam um desdém condescendente para com os grandes debates
oratórios, de que não sabem participar.
O tipo intermediário mais característico é o do líder
da maioria, Sr. Oswaldo Aranha.
Ora S. Ex.a conversa
discretamente com algum colega, alheio ao discurso, mesmo quando está em causa
na verrina do orador, ora intervém nas menores
questões, aparteando com frases proferidas no tom em que Júpiter tonante
desfechava seus raios.
Dado o aparte, volta-se para os circunstantes, a
procurar com os olhos um contendor, para continuar mais baixo a discussão
entabulada.
Retira-se depois do recinto, com a fisionomia
satisfeita de si mesmo, distribuindo para a esquerda e para a direita sorrisos
mágicos, que eletrizam e enchem de sol o semblante dos beneficiados.
Com o olhar admirado e solícito, certos deputados
ainda o acompanham de longe, com a vista.
E, no seu porte dobradiço e na sua atitude reverente,
há alguma coisa que diz aos profanos: Voilà le soleil (Eis o sol).