Como sempre
“O
Legionário”, N.º 132, 12 de novembro de 1933
Estão iniciados os trabalhos da Constituinte. (*)
Praticamente, portanto, deixou de existir no Brasil o poder discricionário
exercido pelo Governo Provisório a partir de outubro de 1930. Um poder novo
aparece no tablado da política nacional, investido de poderes irrestritos, e
apto, portanto, a ditar suas leis ao Governo Provisório.
Tudo indica, portanto, que estamos chegando aos
últimos dias da ditadura, e que já está próximo o momento em que o Brasil se
governará por autoridades legalmente investidas, e com poderes delimitados pela
nova Constituição.
Parece, no entanto, que o Governo Provisório, nesta
quadra terminal de sua carreira, quis perpetuar, num esforço supremo, a sua
orientação doutrinária, cristalizando-a nos artigos do anteprojeto de
Constituição.
Em suma, esta orientação se resume na flutuação
incessante entre o Catolicismo e o socialismo.
Se, no plano espiritual, quisermos fazer um balanço
para apurar os títulos de benemerência da ditadura em relação à consciência
católica, ficaremos realmente embaraçados.
É incontestável, por um lado, que tivemos o ensino
religioso - ao menos em tese - coisa que foi impossível obter na vigência da
chamada República Velha. Mesmo no terreno da legislação do trabalho, tivemos
alguns progressos a acentuar. As relações entre os poderes espiritual e
temporal decorreram num ambiente de perfeita harmonia e tranqüilidade. A
cortesia do Governo para com o Legado ao Congresso Eucarístico da Bahia foi
inatacável. Mas... e fica realmente de pé um “mas”.
Efetivamente, por que, para que, o Governo Provisório
- se pretendia afinal reconhecer à consciência católica os seus direitos -
facilitou e protegeu os preparativos para um grande Congresso protestante a
realizar-se no Rio, chegando mesmo a ceder para este efeito o Teatro Municipal?
Por que, ao instituir uma legislação do trabalho que quebrava os velhos moldes
do liberalismo da República Velha, instituiu ao mesmo tempo o laicismo
sindicalista, tão ou mais pernicioso do que o laicismo escolar que ele baniu?
Na distribuição dos altos cargos administrativos, não
foi outro o seu critério. Ora confiava as mais importantes tarefas a elementos
mais ou menos da “direita”, apaixonados da disciplina social e freqüentemente
simpáticos ao Catolicismo, ora introduzia habilmente, em outros cargos, alguns
agitadores impenitentes, capazes de imprimir à sua atividade os rumos mais
inquietantes. Ora combatia o liberalismo, servindo-se das armas da sociologia
católica. Ora fazia socialismo do mais extremado, flertando a esquerda com a
mesma insouciance
(despreocupação) sorridente com que, há pouco, se aproximara da direita.
Pensarão todos que reavivamos estes fatos para lançar
uma condenação. Queremos ser mais práticos e mais positivos. Não nos serve de
nada condenar uma obra que chega ao seu termo. Indaguemos, porém, por que
motivo ela se fez às vezes conosco, às vezes sem nós, e outras contra nós. É
esta a lição que, por hoje, queremos colher.
Coloquemo-nos no plano exclusivamente espiritual,
fazendo, no momento, abstração de todos os problemas temporais.
Um “Governo Provisório” é antes de tudo um governo que
precisa de apoios. Se não tem uma coloração nitidamente católica ou acatólica -
e é este o nosso caso - será tão católico ou tão acatólico quanto lho
aconselharem as circunstâncias.
Não é, pois, o governo que toma a iniciativa de se
filiar a esta ou àquela orientação religiosa. Depende das diversas correntes o
poder e saber atrair, para o campo magnético de sua influência, a ação governamental.
A orientação religiosa de tal governo depende pois, em
grande parte, da atividade, energia, força e persistência das diversas
correntes religiosas.
Tivesse o Brasil uma Liga Eleitoral Católica
perfeitamente organizada, quando se instituiu o Governo Provisório; tivesse
esta Liga uma disciplina férrea, posta a serviço de uma pureza de intenções sem
mácula; ingressassem em seu seio todos os católicos, para coordenar suas
forças, enfeixando-as em uma organização eficiente: eles se teriam tornado uma
potência de primeira grandeza (que hoje ninguém discute, depois do 3 de maio),
capaz de propor e eventualmente de impor todas as medidas exigidas pela
consciência católica.
O que se fez contra nós não se teria talvez feito. O
que se fez sem nós se teria feito conosco. E o que se fez por nós teria sido
mais aproveitável.
Não condenemos pois, irrefletidamente, a inconstância,
a tibieza ou a pouca sinceridade daqueles de quem, posto que católicos,
queríamos exigir uma conduta religiosa irrepreensível.
Não será a sua inconstância um reflexo da atenção
secundária que costumamos prestar a nossos problemas espirituais? Não será a
sua tibieza uma conseqüência da indiferença com que tratamos os princípios
católicos?
Reflitamos. Durante três anos de ditadura, o Governo
Provisório foi, sem dúvida, a cortiça que flutuou ao sabor de todas as ondas ou
correntes em matéria religiosa. Mas o mar revolto e inconstante, que guiava a
cortiça, não terá sido talvez a opinião católica brasileira, sempre tão tímida
em suas exigências, tão pouco consciente da força de seus direitos e do valor
de sua influência?
Não queremos fazer política, e falamos apenas com
referência ao campo espiritual. Isto posto, concordemos: é muito fácil, às
vezes, dizer j'accuse
para as falhas alheias, mas não teremos nós também a ocasião para recitar, ao
mesmo tempo, o “confiteor”?
(*)
Entenda-se, não propriamente a reunião dela, que se deu no dia 15 de novembro.