Dr. Estêvão de Souza Rezende

“O Legionário”, N.º 124, 16 de julho de 1933

 

Era a mim que a Providência reservava a triste tarefa de dizer, sobre o grande amigo que a terra acaba de acolher em seu seio, as palavras de homenagem do “Legionário”. Era a mim que incumbiria o doloroso dever de traçar o elogio póstumo do primeiro presidente da Liga Eleitoral Católica, que a morte surpreendeu em plena atividade a serviço da Igreja, como morriam seus maiores “a serviço de Deus, e d'El Rey Nosso Senhor”.

Conhecia-o há pouco tempo, mas uma admiração sincera já me prendia a ele, quando a Providência nos reuniu na luta comum pela Liga Eleitoral Católica.

Havia já muito tempo que me impressionara a figura, para mim então desconhecida, de um perfeito cavalheiro que se aproximava assiduamente da Sagrada Eucaristia, em Santa Cecília.

A elegância sóbria, impecável com que se trajava, a distinção natural do seu porte e a transparência cristalina do seu olhar, indicavam nele uma admirável fusão da nobreza da alma com a do sangue, que atraía o respeito e a simpatia de quantos dele se aproximassem.

Costumava entrar na igreja pela porta da sacristia, dirigindo-se imediatamente à capela do Santíssimo Sacramento, onde se mergulhava em profunda oração.

Só uma vez eu o vi interromper sua oração. Descia a escada da capela uma velha muito achacada, pertencente à ínfima camada social. A dificuldade com que se movia encheu-o de dó. Levantou-se e ofereceu-lhe o braço, para auxiliá-la a descer a escada, com a mesma elegância fidalga com que auxiliaria a uma senhora. Sorriu depois bondosamente e retomou o fio de suas orações interrompidas.

Chamados por nosso Arcebispo para colaborarmos na Liga Eleitoral Católica, nosso convívio tornou-se cada vez mais constante, formando uma amizade sincera e profunda, de que recebi provas tocantes.

Nos nove meses em que lutamos juntos, cada vez mais crescia em meu afeto e em minha admiração a sua figura de fidalgo, enquanto me cativava profundamente a beleza de suas virtudes morais. E hoje, quando já não ouço mais a sua voz de amigo, e não sinto mais o conforto de seu apoio e de sua amizade, voltando-me cheio de saudades para o tempo em que lutamos juntos, posso resumir minhas impressões nestas curtas palavras: lutou como um fidalgo, viveu como um santo.

Lutou como um fidalgo - Chamado a orientar a atuação eleitoral dos católicos em um período extraordinariamente melindroso da vida de São Paulo, teve em suas mãos todos os elementos para exercer, sobre nossa política, uma influência decisiva.

Pode-se mesmo afirmar que esteve em suas mãos o destino da Chapa Única, que se iria constituir.

Outros, fazendo do Catolicismo um palco para a exibição de suas vaidades pessoais, teriam aproveitado a circunstância para dar entrevistas ruidosas, noticiar aos jornais démarches misteriosas, “despistar” repórteres, intrigar a todo o mundo, fascinando, pelo prestígio do cargo e importância da atuação, a todos os seus conterrâneos.

Ele, pelo contrário, apagou-se. Sua ação, sempre criteriosa e prudente, nem um minuto sequer refletiu vaidade de quem se quer exibir. Trabalhou com afinco. Lutou. Defendeu dedicadamente as reivindicações dos católicos. Levou a termo sua tarefa espinhosa, dificultada por entraves que o público não conhece. E quando se aproximou a hora em que as 22 vagas da Chapa sorriam como recompensa, ele se afastou com desprendimento, voltando para a sombra e pondo na evidência, que poderia ter cobiçado para si, um dos seus mais obscuros e mais sinceros amigos, em quem a generosidade de seus sentimentos depositara sincero afeto e grande confiança.

São Paulo há de registrar, futuramente, esta página de desprendimento e de abnegação. E a História ainda contará a beleza do desinteresse de quem soube lutar e vencer como um fidalgo, quem de fidalgo tinha o sangue e o nome.

Viveu como um santo - Conta-se que, certa vez, São Francisco de Assis convidou um de seus irmãos de hábito a saírem juntos, a pregar um sermão. Passearam pela cidade e regressaram ao convento no máximo silêncio. E tendo o irmão perguntado ao Santo o que fizera do sermão que pretendia pregar, este lhe respondeu: “Nossa passagem pelas ruas da cidade, a humildade de nosso burel, e o recolhimento de nosso olhar, são um sermão eloqüente, que convence sem argumentar”.

Assim foi a sua vida. Passou. Mas em todos os círculos em que vivia, em todas as rodas que freqüentava, sua austeridade impecável e a coerência inflexível com que ostentava sua Fé faziam dele um sermão vivo, pregado até nos ambientes os mais refratários a qualquer influência religiosa.

Freqüentava assiduamente o Automóvel Clube, onde gozava de grande estima. No entanto, ele o freqüentava com o espírito mortificado de um monge. Contou-me um seu amigo que, antes de se converter ao Catolicismo, ele tinha verdadeiro horror aos “sapos” que, aproximando-se das mesas de jogo, perturbavam a serenidade dos jogadores com seus conselhos ou perguntas importunas.

Mais tarde, quando integrado no espírito da Igreja, por mortificação, não só ele não repelia os “sapos”, mas atraía-os e os prendia, pela amabilidade de suas explicações e pela gentileza com que os recebia...

Parece-me suficiente mencionar este ato de virtude para ver até que ponto soube praticar as mais belas virtudes cristãs, fazendo-as florescer, não sob o manto austero de um monge, mas sob o traje elegante e correto de um gentleman.

Viveu como um santo, porque teve em alto grau as virtudes fundamentais do espírito católico, e porque seu exemplo teve a eloqüência suave, mas arrebatadora, que só uma profunda vida interior sabe dar.

No dia 14 de julho, a eternidade se abriu para sua bela alma de fidalgo e de santo.

Seu corpo, tragou-o a terra. Sua alma, recolheu-a o Céu, mas de sua memória uma coisa nos resta: um grande exemplo.