Os padres e o casamento - II
“O
Legionário”, N.º 78, 19 de abril de 1931
Venho cumprir uma velha promessa feita aos leitores do
“Legionário” (*), relativa ao problema do celibato dos sacerdotes católicos. Em
janeiro p.p., o Sr. Pierre Mille, autor francês apontado como especialmente
propenso para a literatura imoral, pelos dicionários bibliográficos, tomou a
liberdade de asseverar, em artigo publicado no “Estado de S. Paulo”, que o
casamento é permitido pela Igreja aos sacerdotes da América Latina. Além disto,
estendeu-se em divagações mais ou menos desinteressantes sobre o assunto, e
concluiu apontando diversos casos de casamento sacrílego de ilustres sacerdotes
franceses.
Existe, neste país, uma ampla liberdade de mentir, que
a tolerância das autoridades vai tornando cada vez mais nociva. Mas ainda
existe também a liberdade de desmentir. Usando, pois, desta faculdade (uma das
poucas de que os homens de bem ainda gozam), desmentirei agora as afirmações
imprudentes do Sr. Mille.
Quatro eram os sacerdotes a respeito dos quais tomou
ele a liberdade de lançar as afirmações as mais degradantes. Entre estes
estavam os nomes dos Padres Pereyve e Gratry, vultos eminentes do Clero francês.
Segundo o Sr. Mille, teriam eles tido os mais
vergonhosos desvios em relação ao celibato. Alguns chegaram a casar-se
civilmente. Outros, arrastando durante toda a vida a vergonha de ligações
ilícitas, foram o escândalo da Igreja na França.
Dois dos nomes citados, ou se referem a pessoas que
nunca existiram, ou se aplicam a sacerdotes tão obscuros que, a seu respeito,
não pude obter a menor informação.
Sobre os outros dois, porém, o infatigável zelo
apostólico e a gentileza do Rev.mo Padre de Condé, da Ordem dos Rev.mos
Padres de Sion, me forneceu dois livros, editados
ambos em 1912, na coleção Les grands hommes de l'Église au XIXe.
Siècle. O primeiro é uma biografia do Padre Gratry, por Albert Autin, com
prefácio de Denys Cochin, da célebre Academia de
Letras da França. O outro é sobre o Padre Pereyve,
por J. Riché, com prefácio de S. Ex.a.
Rev.ma o Sr. Bispo de Versailles.
Traz por subtítulo os seguintes dizeres: Un modèle de vie sacerdotale.
Ambos os livros e seus respectivos prefácios estão
cheios de referências as mais elogiosas aos
biografados. Exaltam-se constantemente as virtudes sacerdotais dos dois
sacerdotes que, segundo os livros, foram até seus últimos instantes de vida
expoentes do Clero francês, tanto no tocante à austera perfeição de seus
costumes quanto à brilhante formação de suas inteligências.
O Padre Pereyve morreu em
1862, aos 35 anos de idade, depois de uma carreira sacerdotal cheia de brilho e
de méritos.
O Padre Gratry faleceu em
1872, em idade muito avançada.
Ora, não se compreende que, em se tratando de figuras
notabilíssimas nas rodas literárias (o Padre Gratry
era membro da Academia Francesa), de dois vultos de grande destaque nos
círculos religiosos, cujas obras ainda hoje são citadas por muitos escritores,
escândalos iguais aos que o Sr. Mille mencionou tivessem passado absolutamente
despercebidos aos biógrafos.
Efetivamente, escândalos como estes teriam por tal
forma agitado Paris, que seria impossível silenciar sobre eles ainda hoje. Não
se concebe que autores de responsabilidade tivessem a audácia de ir escolher
sacerdotes indignos, cheios de pecados, para incluí-los numa coleção de Grands hommes de l'Église au XIXe.
Siècle. E isto porque receberiam, certamente, o
mais formal e violento desmentido dos inimigos da Igreja e das próprias
autoridades religiosas, pois que estas não permitiriam de modo algum que se
tentasse reavivar escândalos passados e reabilitar com mentiras imprudentes
figuras vergonhosas, quando à França não faltam sacerdotes dignos de todas as
homenagens.
Ora, o que vemos é muito significativo: um bispo e um
membro da Academia Francesa prefaciam os livros, e cobrem de elogios a memória
dos biografados.
Diante de fatos tão favoráveis às vítimas do Sr.
Mille, está fartamente demonstrada a inocência dos dois sacerdotes.
No entanto, não podemos deixar de, ainda agora,
renovar nosso protesto e exprimir nosso sentimento de estranheza ao “Estado de
S. Paulo“. Um jornal que está na vanguarda da imprensa paulista, que tem um
passado grande, e que se atribui tradições respeitáveis, não deveria nem
poderia, de modo algum, aceitar um artigo como o que ora refutamos.
Já não digo que “O Estado” tenha obrigação de conhecer
o passado dos Padres Gratry e Pereyve,
mas penso que não pode ignorar que, no Brasil, os sacerdotes católicos não se
podem casar. No entanto, o Sr. Mille tem a audácia (dizemos audácia, para não
dizer mais) de afirmar precisamente o contrário. E “O Estado” tem a leviandade
de publicar tal artigo, denotando um desprezo soberano pelos elementos
católicos do Brasil.
Que ao menos este protesto veemente se erga contra tão
indefensável atitude.
Nota:
(*)
Cfr. Os padres e o casamento “O Legionário”, no 72,
11-1-31.