No momento em que a Encíclica Mediator Dei vem dirimir questões de tão funda
repercussão em nossa vida religiosa, dois deveres se impõem ao católico: um
para com a Verdade, outro para com a Caridade.
Para com a Verdade: acima de tudo e antes de tudo,
devemos cuidar de combater o erro e difundir a sã doutrina. A este dever
primordial, tudo se deve sacrificar. Mas a Verdade vence atraindo a si os que
erraram. E isto se faz com Caridade. Assim, pois, é preciso difundir a Verdade
com Caridade. E, se seria falso manter a Caridade calando ou velando a Verdade,
seria igualmente falso difundir a Verdade com espírito de orgulho ou vã glória.
Dizemo-lo, porque nada nos parece mais inoportuno
neste momento, do que fazer entre os católicos uma divisão de campos entre
vencedores e vencidos. Lendo-se a Encíclica, salta aos olhos que o Santo Padre
confirmou largamente todas as nossas apreensões acerca do liturgicismo,
bem como as teses que contra o liturgicismo
sustentamos. Temos a ventura indizível de ver que sempre estivemos com o Papa,
sentimos com o Papa, com o Papa pensamos sempre nos assuntos de que trata a
Encíclica Mediator Dei. Todos os católicos que estão na
mesma situação não podem deixar de se sentir jubilosos, sob pena de mostrarem
tíbios na sua devoção à Cátedra de São Pedro. E é justo que associemos neste
júbilo os nossos leitores, e todos os que se associaram à nossa orientação.
Fazendo-o, não nos julgamos contudo no direito de tomar, em relação a nada e a
ninguém, a atitude de vencedores. Quando o Papa esmaga o erro e ensina a
Verdade, é o Papado que vence. E o Papado é grande demais para que sua vitória
seja a vitória deste ou daquele grupo, deste ou daquele indivíduo. As vitórias
do Papado são vitórias da Igreja inteira. Aqueles, pois, que sempre pensaram e
sentiram com o Papa reportem todo o esplendor destes dias a quem de direito,
isto é ao próprio Papa. É justo que se alegrem os que há muito souberam ver e atacar o erro. Lembrem-se, porém, de que devem
reportar humildemente a Deus, autor de todo o bem, a argúcia e a perseverança
de que deram provas. E, por isto, guardem-se, como da peste, de qualquer
sentimento de vaidade pessoal. Nem pensem, por um zelo indiscreto e mal
entendido, que o próprio interesse da Igreja exige que a distinção entre o
filho fiel e o filho pródigo se mantenha sob a forma de uma diferença odiosa
entre vencedor e vencido.
Esta distinção existe, é certo, na Igreja de Deus.
Mas sua forma é inteiramente outra. Há na Igreja duas situações inteiramente
distintas, a da inocência e a da penitência. Mas quem ousaria ver no inocente
um vencedor orgulhoso, e no penitente um vencido cheio de opróbrio? Será João
porventura um vencedor orgulhoso, e Paulo um mísero vencido? Ambrósio um dominador prepotente e Agostinho um guerreiro
imbele e esmagado?
A Igreja não dá tréguas nem quartel ao pecador
impenitente. Mas basta que este reconheça seu erro, repare humildemente o
escândalo, queime à vista de todos o que adorou, e adore o que queimou, para
que estejam abertas de par em par diante dele as portas do lar paterno.
Ninguém, é certo, tem autoridade para dispensar o
que Deus não dispensa, e confundir o penitente com o impenitente. A Igreja, bem
o sabemos, ama demais seus filhos penitentes para os injuriar com esta
confusão. Sabemo-lo bem, mas sabemos também, que ao pecador penitente em aberto
conflito com seus erros passados, a Igreja ama com entranhas de mãe: ai de quem
o moleste por aquilo que Deus perdoou!
Nisto devemos, mesmo, ser de um santo radicalismo.
Segundo as normas do mundo, o modo por que um ambiente põe à vontade quem errou
consiste em ocultar seus erros sob a laje do silêncio. O mundo não sabe que é
possível apagar nódoas, e, por isto, quando as quer tolerar ou perdoar, as põe
na sombra. A Igreja pelo contrário não age assim com seus Santos.
Ela considera que a penitência tira a nódoa. E, por
isto, em lugar de ocultar os erros dos penitentes que canoniza, ela os narra
longamente, por miúdo, para tornar mais gloriosa a penitência. Compreende-se
uma biografia de Santo Agostinho que o apresentasse como um São Luiz de
Gonzaga?
Assim, pois, o caso presente não é para prudências humanas, panos quentes e silêncios “caridosos”,
inspirados pelo sentimento baixamente naturalista do mundo. Não há o menor
motivo para que os que erraram se sintam obrigados a silenciar vergonhosamente
sobre seus próprios erros. Pelo contrário, cobrir-se-ão de glória
mencionando-os e refutando-os. Nem estes erros devem ser tratados por nós com
um silêncio “caridoso”, que é, no fundo, essencialmente desdenhoso porque
insinua cruel e insidiosamente que a nódoa continua. A solidariedade entre o
homem que errou e seus erros pretéritos é inteiramente destruída pela
penitência. Assim, pois, é possível atacar erros e não mencionar nomes, é
possível atacar erros e amar os que erraram.
Nosso radicalismo vai mais longe. Achamos que, ao
lado dos que nunca erraram, em situação não menos honrosa nem menos boa, estão
os que ainda ontem defendiam, porventura, o erro.
Dizemo-lo com esta franqueza, pois que, obrigados
de um lado a atacar o erro, queremos do outro lado criar um ambiente de inteiro
bem estar para os que erraram. Uma e outra coisa estão longe, muitíssimo longe
de ser inconciliáveis.
A Igreja, aos que erram pede tão somente que façam
o que o camelo tinha de fazer para transpor as portas baixas das cidades, que
no Oriente se denominavam “buracos de agulha”: deponham a carga de seus erros,
e façam-se pequeninos pela humildade. Quando os reerguer o perdão da Igreja,
ver-se-á que eles se tornaram gigantes porque nada engrandece mais do que a
verdadeira penitência.
Os apóstolos que atacavam o judaísmo não cuidavam
pôr mal à vontade o antigo zelota Paulo de Tarso.
Antes pelo contrário, ninguém atacou mais a Sinagoga do que o Apóstolo das
Gentes.
Ninguém tem, pois, o direito de achar que os
ataques desferidos contra o erro podem humilhar os que do erro se retrataram.
Lutando pela verdade, e combatendo ardentemente o
erro, convidamos todos como irmãos, na santa e augusta casa do Pai comum.