Para nossos leitores, que se lembram do interesse
vivaz e das profundas preocupações com que acompanhávamos o desenvolvimento da
questão liturgicista no orbe católico, é facilmente
explicável a emoção, feita de veneração e júbilo, com que acolhemos o veredicto
decisivo que o Sumo Pontífice, continuando os ensinamentos da Encíclica Mistici Corporis Christi, pronunciou sobre o liturgicismo.
Estes sentimentos, felizmente, não são apenas
nossos, mas de todos os verdadeiros fiéis, que se alegrarão ao ler a Encíclica Mediator Dei, e verificar que o valor espiritual
jamais contestável de práticas e atos de piedade a que estavam afeitos por uma
tradição secular, refulge hoje com um brilho novo e meridiano: a meditação, o
exame de consciência, a adoração ao Santíssimo Sacramento, as novenas à
Santíssima Virgem e ao Sagrado Coração de Jesus, os jamais assaz louvados
Exercícios Espirituais segundo Santo Inácio de Loiola
ficam pairando acima de qualquer crítica ou contestação, já que foram apontados
pelo Vigário de Cristo como práticas de piedade sempre atuais, sempre fecundas,
profundamente coerentes com a doutrina ortodoxa, às quais o povo fiel se deve
apegar com religiosa obstinação.
Segundo inúmeras vezes escrevemos nesta folha, um
dos inconvenientes mais graves do liturgicismo que
apareceu em vários países, consistia em comprometer, por seus excessos, um
renascimento litúrgico providencial, brotado na
França do coração apostólico de Dom Guéranger, apoiado
e estimulado pela valorosa corrente de “ultramontanos”
à testa dos quais estava Louis Veuillot,
desejado e aplaudido por todos os homens de senso verdadeiramente católico.
Com efeito, certos espíritos tímidos e retrógrados,
avessos a qualquer alteração, ainda que para ao bem, encontraram nos desmandos
do liturgicismo pretexto de impugnar qualquer são
esforço em favor do renascimento litúrgico. Como
legitimar tal excesso, nascido do desejo de coibir outro? Como não desejar um
movimento litúrgico são, visando reacender o amor dos fiéis à Sagrada Liturgia? Nenhum espírito cioso
de se manter na linha do santo
equilíbrio poderia aplaudir isto. Como escrevíamos em 1943, menosprezar a
Liturgia, que é a voz da Igreja orante, “é ser,
quando nada, suspeito de heresia”. E, acrescentávamos, entender que o “esforço
desenvolvido em prol de uma mais profunda compreensão da Liturgia e de sua
exata localização na vida espiritual dos fiéis possa trazer inconvenientes, é
um absurdo”. Assim, era preciso “manter longe de qualquer censura esforços
meritórios, feitos com a louvável intenção de incrementar a piedade em torno da
Sagrada Liturgia”, evitando de confundir o são liturgismo
com o erro que o egrégio teólogo, Pe. J. M. Penido,
em seu livro sobre a Encíclica Mistici Corporis Christi chama liturgicismo. Esta confusão seria um perigo.
Pio XII, à vista deste perigo, desvencilha o liturgismo dos obstáculos em que o enredara a afoiteza do liturgicismo. Confortando a timidez, quiçá a prudência de
muitos que, em tamanha confusão, por motivos às vezes explicáveis, receiavam não poder distinguir o joio do trigo, o Papa Pio
XII declara a todos qual é o erro e qual a verdade, e, assim, salva orienta e
guia ele próprio o renascimento de um espírito litúrgico
verdadeiramente católico. Com efeito, desde
já se vê que o grande trabalho da Encíclica Mediator Dei consiste em distinguir o verdadeiro espírito da Liturgia das
contrafações doutrinárias primorosas nas quais, com argúcia de linguagem
sibilina, se infiltrava entre os fiéis o veneno pestífero das modernas
correntes teológico-filosóficas.
A publicação da Encíclica Mediator Dei constitui assim, para todos nós, motivo de santo e vibrante
júbilo.
Não vejamos contudo na Mediator Dei apenas uma lição de doutrina. Ela nos dá também um grande e
nobre exemplo de caridade. Há nesta Encíclica um senso de equilíbrio que todos
nós devemos notar. É o equilíbrio no modo de ser caridoso.
O primeiro dever da caridade consiste em servir à
Verdade. Por isto Pio XII declara a verdadeira doutrina, aponta, refuta e
confunde o erro. É manifestamente este o objetivo máximo do importante e
extenso documento. Há nisto um inestimável ato de caridade. Caridade para com
os que estão na verdade, e que com a palavra do Papa se sentem confirmados,
quiçá até protegidos contra injustos ataques. Caridade para com os que estão no
erro, porque nenhum benefício maior se pode fazer a quem erra, do que
arrancá-lo ao erro em que jaz sepultado. Definida
assim a Verdade em torno da qual todos se devem unir, Pio XII põe em relevo a
obrigação de amor que incumbe a todos os filhos da Verdade.
A admirável lição de caridade, que nos mostra que
devemos amar acima de tudo a Igreja e sua doutrina, e depois os homens salvos
pelo Sangue de Cristo, sempre que nisto não haja prejuízo para a Verdade e a
Fé.
* * *
A polêmica tem algo de comum com a cirurgia: jamais
é um bem, e na melhor das hipóteses é um mal necessário. Por isto mesmo, deve
ser empregada apenas quando indispensável, e amar a polêmica em si mesma pelo
mero gosto de discutir é algo de tão irracional e descaridoso quanto amar em si
mesma a cirurgia pelo mero prazer de talhar e retalhar um corpo.
Alegramo-nos, pois, com um dos mais preciosos
resultados que se podem esperar desta Encíclica. Aceita por todos com espírito
de submissão sincera e absoluta, ela fará desaparecer como que por encanto, em
todo o orbe, qualquer espírito de discórdia patente ou latente. A todos os
verdadeiros católicos resta pois considerar com esperança o futuro, dispondo-se
a trabalhar com mais entusiasmo do que nunca, unidos e filialmente
obedientes a seus Bispos e ao Sumo Pontífice, pela instauração do Reino de
Cristo e de Maria: ut adveniat regnum Christi, adveniat regnum Mariae.