Legionário, N.º 795, 2 de novembro de 1947

Na França

Os debates parlamentares tormentosos, que se verificaram na França a propósito da atitude dos comunistas, ofereceram um pormenor digno de nota.

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 Primeiramente, devemos analisar a atitude do partido socialista chefiado pelo Sr. Ramadier, apoiado pelos numerosos deputados do Movimento Republicano Popular. À primeira vista, esta atitude parecia muito simpática. O duelo oratório entre o Sr. Ramadier e o "camarada" Duclos, líder da bancada comunista, pareceu demonstrar, a um tempo, o empenho que têm os comunistas em derrubar o governo, e o empenho do governo em combater os comunistas. Daí se deduziria que nada é mais nocivo aos comunistas do que a permanência dos socialistas no poder. E, em conseqüência, o Partido Socialista começa a parecer capaz de conter a maré montante de desordem e de confusão, que os comunistas procuram provocar na França. Em outros termos, o governo, singularmente desprestigiado pelos resultados do pleito municipal, começa a readquirir algum vigor junto à opinião pública.

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Em situação análoga, fica colocado o MRP. Com efeito, este Partido foi praticamente abandonado pelos seus eleitores, que lhe preferiram à corrente do general De Gaulle. A grande razão disto está em que De Gaulle parecia encarnar a própria resistência anticomunista, enquanto o MRP se mostrara ingênuo, vacilante, fraco perante o grande inimigo. Com os recentes debates ocorridos no Parlamento, a situação parece mudar. O MRP apoiava o gabinete socialista. Esta posição desagradava aos católicos justamente receosos de uma conivência comuno-socialista. Vemos agora, de modo inopinado, os socialistas e o MRP lutarem energicamente contra o comunismo. Quem sabe, então, se a melhor política consiste em apoiar o Governo?

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A maioria dos franceses é anticomunista. O pleito municipal o demonstrou à evidência. Isto posto, os políticos desejosos de conservar o poder devem, antes de tudo, inspirar confiança à opinião anticomunista. Deste ponto de vista, o Governo ganhou com os debates parlamentares. Com efeito, sua conduta começou a inspirar um pouco de confiança. E esse "renouveau" de confiança provoca inevitavelmente um pequeno "renouveau" de influência política.

Pode-se medir em toda a sua extensão a vantagem que o governo obteve com os debates parlamentares de terça-feira última, analisando a situação sob  outro aspecto.  De Gaulle pede a queda do governo, já que este não tem raízes na opinião pública, segundo demonstrou o pleito municipal. Em termos estritamente democráticos, seria muito difícil não atender à reclamação de De Gaulle. Como justificar que, em uma república, fique no poder um Governo que o povo não quer? Ora, à vista dos últimos debates, já não se pode afirmar tão claramente que o povo não quer de modo nenhum a continuação do atual Gabinete. E, assim, fica menos absurdo, mais viável, recusar a De Gaulle o que ele reclama. Em outros termos, tudo isto importa em afirmar que o Governo recebeu, pelo fato de sua atitude anticomunista de terça-feira, uma verdadeira corda de salvação. Nada poderia suceder que mais prejudicasse De Gaulle e mais favorecesse os seus inimigos do Centro.

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Claramente focalizado o problema, verifica-se não só que esta atitude serviu muito ao Governo, mas que ele não teria outra atitude a tomar, se quisesse sobreviver à derrota das eleições municipais. Isto é incontestável.

É muito difícil, e por vezes até impossível, conhecer as intenções dos homens. Tudo isto não obstante, não deixa de ser verdade que se o Governo não tivesse tido outra intenção ao lutar contra os comunistas no Parlamento senão prolongar sua própria existência, ele teria agido precisamente como agiu. A tese pode parecer um pouco nebulosa. Esclareçamos o nosso pensamento. Se o Governo tivesse combatido o comunismo não por motivos ideológicos, mas simplesmente pelo intuito de sobreviver ao fracasso eleitoral do último pleito, teria agido precisamente como agiu. De outro lado, é fora de dúvida que se o Governo tivesse querido a todo preço prolongar sua existência, teria combatido o comunismo no Parlamento como combateu. Nasce, pois, um problema que enunciaríamos na seguinte interrogação: foi por idealismo, ou foi por instinto de conservação, que o Governo Francês se voltou tão energicamente contra os comunistas?

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 É difícil, repetimos, conhecer as intenções dos homens. Por isto, é igualmente difícil saber se os socialistas agiram por uma razão ou pela outra. Tendo isto em consideração, os observadores políticos devem recorrer às hipóteses, processo clássico para se chegar aproximadamente à verdade quando não se sente o terreno bastante firme para lançar afirmações peremptórias.

Das hipóteses, lançaremos mão também nós. Observemos em primeiro lugar que a situação se apresenta cheia de antecedentes. Os comunistas e os socialistas têm programas quase idênticos. Por isso, a Igreja condena o socialismo pelos mesmos motivos doutrinários pelos quais condena o comunismo. A diferença essencial entre ambas as correntes consiste em que, enquanto o comunismo visa a chegar a seus fins de modo imediato, e se necessário pela violência, o socialismo visa a chegar ao mesmo fim pela brandura e pelos meios graduais. Assim, os socialistas divergem entre si em uma questão acidental. Com efeito, o que é a escolha dos meios, senão um problema secundário em comparação com a escolha dos fins? Isto posto, verifica-se que os socialistas e comunistas estão muito mais próximos entre si do que qualquer deles está em relação aos partidos não socialistas. É óbvio. Socialistas e comunistas estão de acordo quanto ao fim visado. Divergem de nós precisamente quanto a este fim. E a divergência quanto aos fins é sempre mais grave do que a divergência quanto aos meios.

 Num Parlamento em que há partidos que divergem entre si a respeito dos fins visados, vemos de um momento para outro um fato estranho: um Partido poderoso rompe com aquele cujos fins deseja e alia-se àqueles cujo fim não deseja. Não é mais do que curioso?

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Que dinamismo, que vitalidade, que dedicação se pode esperar da reação de um Partido que luta contra o comunismo simplesmente porque dele diverge numa questão tática? Muito pouco, evidentemente.

Por isto mesmo, a atitude do Partido Socialista foi sempre muito tíbia em matéria de reação anticomunista. Tíbia na política internacional, a conduta socialista se caracterizou pela idéia fixa de não se colocar claramente ao lado dos americanos contra os soviéticos. A frieza com que o governo francês recebeu o auxílio americano contrasta claramente com a aliança leal e calorosa que De Gaulle oferece aos "yankees". Tudo isto por quê? Porque a hostilidade dos comunistas contra os socialistas não chegava a ponto de determinar entre uns e outros, no terreno internacional, senão uma política de panos quentes.

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O mesmo se diga do ponto de vista da política interna. Jamais os socialistas se mostraram alarmados com o perigo comunista dentro da própria França. Não viram, ou não quiseram ver que o P.C. é uma verdadeira quinta-coluna a serviço de Moscou. Por seus discursos, sua linguagem, sua conduta, alimentaram a este respeito as mais perigosas ilusões na opinião pública. Seria impossível servir melhor os interesses da propaganda comunista do que fizeram os socialistas. A tal ponto toda a França sentia isto, que nas últimas eleições repudiou os chefes socialistas, bem como os do MRP, aliados dos socialistas. As eleições equivalem a um veredictum formal da França de que o governo resultante da coalizão entre socialistas e membros do MRP não estava cumprindo seu dever na luta contra o comunismo. Assim, pois, a "anticomunisticidade" do gabinete de coligação, poderia facilmente parecer ineficaz e frouxa.

De uma hora para a outra, porém, o quadro se transforma. Os anticomunistas frouxos de ontem passam a ser paladinos do anticomunismo de hoje. E esta transformação política espantosa se dá no momento preciso em que ela é útil e até indispensável para a sobrevivência do governo de coligação.

À vista disto tudo, qualquer espírito equilibrado e prudente não poderá deixar de sentir as mais fundas dúvidas quanto ao valor da reação anticomunista tão tardiamente encetada pelos grupos do chamado "centro" francês.