Achamos excessiva - se bem que salutar até certo
ponto - a repercussão que teve a notícia da reconstituição
da III Internacional. Em sua simplicidade, o fato reduz-se ao seguinte: os
representantes do Partido Comunista na Rumânia,
Iugoslávia, Polônia, Bulgária, URSS, França, Itália, Hungria e Checoslováquia
se reuniram em Belgrado, para concertar planos de ação comum. Ora, ninguém
ignorava que os comunistas do mundo inteiro receberam sempre suas ordens de
Moscou. Ninguém ignorava que
as transmissões dessas ordens implicava na existência de um serviço regular,
uma vasta burocracia mais ou menos clandestina, com tentáculos no mundo
inteiro. Ninguém ignorava que essa organização não poderia funcionar sem que
através dos mesmos órgãos de transmissão de ordens, os partidos comunistas
enviassem de volta a Moscou informações pormenorizadas sobre o efeito dos
planos executados, e sobre a atmosfera política em função da qual os novos
planos deveriam ser traçados. A tal ponto ninguém ignorava nada disto, que em
vários países - felizmente o Brasil está entre eles - o Partido Comunista foi
posto fora da lei precisamente porque obedecia às ordens de um governo
estrangeiro. E ninguém podia ignorar que esta vasta máquina de fornecimento de
informações (de espionagem, se pusermos de lado os eufemismos)
e de transmissão de ordens era muito exatamente a mesma III Internacional
aparentemente dissolvida pela Rússia, durante a guerra. Assim, pois, parece-nos
de todo em todo exagerado intitular a reunião de Belgrado "restauração da
III Internacional". Só se restaura o que fora abolido. Só ressurge o que
morrera. A III Internacional não podia ser restaurada pelo simples motivo de
que jamais deixara de existir.
* * *
Não negamos, contudo, que o
acontecimento teve importância. Quando dizíamos, linhas acima, que ninguém
negava a existência da III Internacional, falávamos,
é claro, de modo geral. De fato, havia alguns ingênuos explorados por alguns
mal-intencionados, negando uns e outros a subordinação dos Partidos Comunistas
a Moscou. De agora em diante, essa atitude ficará impossível. A própria
imprensa comunista se incumbiu de arrancar dos olhos dos ingênuos as últimas
ilusões e da boca dos mal-intencionados os últimos pretextos. Foi ela mesma que,
comentando a reunião de Belgrado,
esclareceu que sua finalidade consistia em lutar, tanto quanto possível contra
a pressão dos povos anticomunistas e anglo-saxões.
Assim, pois, a reunião de Belgrado colocava os Partidos Comunistas na posição
declarada de instrumentos de ação de Moscou, na eventualidade de uma próxima
guerra. Poder-se-ia esperar pelo menos, que os comunistas dos países não
representados no conclave de Belgrado ficassem alheios às articulações e tramas
que ali se estabeleceram? Não. O Partido Comunista britânico, poucos dias
depois, timbrou em aderir oficial e solenemente à conferência. O mesmo fez o da
Colômbia. Isto mostra bem a tendência de agrupar, em torno do organismo criado,
os PCs também de outras nações. Depois disto, que
dúvidas ainda podem restar?
De todo o rumor provocado
pelo assunto, uma conseqüência importantíssima ressalta com toda clareza: no
mundo inteiro, oficial e declaradamente Moscou tem agentes, e estes agentes são
comunistas. Se pois, um país receia as investidas da URSS, deve precaver-se
contra os adeptos do comunismo. Os ingênuos, que até aqui procuravam fechar os
olhos a este fato, ficaram desmoralizados. Agora só lhes resta escolher entre a
organização social vigente e o comunismo; entre o patriotismo e a fidelidade a
Moscou.
* * *
Dentre os ingênuos e os
mal-intencionados que não viam nem queriam ver o perigo, se destacavam os
socialistas de todo feitio e, até mesmo, elementos de "centro-esquerda"
de certos partidos como o MRP francês e o PDC italiano. Por isto
mesmo, foram eles tratados durante muito tempo com simpatia pelos comunistas, e
com visível desconfiança pelos elementos mais radicais da reação anticomunista.
Ora, por ocasião do conchavo de Belgrado, não só a imprensa de Moscou destroçou
a política destes elementos pela clareza com que confessou seus objetivos, mas
chegou ao ponto de atacar vivamente os socialistas e "moderados" do
centro, apontando neles os maiores adversários da expansão vermelha. Depois
disto, qual será sua situação política? E, exemplificando, pode-se perguntar se
a linguagem empregada pelos jornais russos teve por efeito prejudicar a
situação do MRP, ou beneficiá-la aos olhos dos anticomunistas franceses.
De um lado, é possível que
muitos elementos abram os olhos diante da cegueira, da imprevidência, da
fraqueza demonstrada até aqui pelo MRP em sua política contra o comunismo: não
ruíram por terra todas ilusões do MRP sobre a possibilidade de uma conciliação
com os vermelhos? Se o MRP perder terreno, o único beneficiário dessa
transformação será o General De Gaulle.
De outro lado, porém, o
próprio fato de haverem os comunistas tratado de desmoralizar o MRP ou certa
ala do MRP, os trabalhistas britânicos etc., poderá dar a muita gente a idéia
de que contrariará eficazmente os planos soviéticos, prestigiando esses
partidos. Com tal, ficará beneficiado na França o Sr. Bidault, na
Inglaterra o Sr. Attlee, em
detrimento de De Gaulle e Churchill.
É verdade que os maliciosos
poderão por sua vez ponderar que o empenho de Moscou em romper com seus aliados
de ontem, bem pode ser uma manobra para evitar que esses aliados percam o apoio
das massas "moderadamente" anticomunistas (pode alguém ser
"moderadamente" anticomunista?) em que se firmavam. Se esses aliados
de ontem continuarem no poder amanhã, poderão ainda prestar serviços
inestimáveis... Mas a massa não tem em geral malícias
destas, e é difícil que se deixem impressionar por um raciocínio tão ardiloso.
A última questão que se trata
de formular é a seguinte: em conseqüência da atitude da URSS, a liderança da
reação anticomunista continuará em mãos de De Gaulle,
de Churchill, dos monarquistas italianos? Ou passará
para a dos partidos "ex-nazistas", do tipo
do "Uomo Qualunque",
ou das falanges de Sir Robert
Owen? Nesta
semana, um oficial sueco apareceu em público, garantindo que transportou Hitler para um "lugar desconhecido". É
pouco provável. Mas que surpresas não nos pode reservar o dia de amanhã?
* * *
Na esfera internacional, a
URSS... e os EE.UU. só lucraram com o conchavo de Belgrado. Com
efeito, a divisão do mundo em dois blocos antagônicos se acentuou, e, quanto
mais se acentuar esta divisão, tanto mais se acentuará a subordinação dos
países anticomunistas a Washington, e dos países comunistas ou bolchevizantes a Moscou. A ONU parece estar em estado pré
cadavérico.
Assim, a atmosfera se torna
francamente saturada de eflúvios bélicos. A guerra parece inevitável dentro de
um futuro mais ou menos próximo, mais ou menos remoto.
E um novo resultado se impõe
a nossos olhos. Para fazer face ao perigo, em todos os países o Estado se vai
tornando cada vez mais absorvente. Caminhamos com isto, aceleradamente, na
direção da socialização completa, não só dos países bolchevizantes,
mas ainda dos países antibolchevistas. E com isto é
só Moscou que ganha.
* * *
Por fim, uma última pergunta.
Por que deu Moscou publicidade a este encontro de Belgrado? Não se realizaram
por detrás da famosa cortina de aço dezenas e até centenas de conferências como
esta, de que o mundo jamais teve conhecimento? Evidentemente, Moscou quis
publicar. E se o quis, por que o quis?... Eis a questão.
Em outros termos, Moscou é
por demais sagaz, atilada, experimentada, para não ter previsto as
conseqüências que acabamos de enumerar. Se Moscou as previu, e assim mesmo
praticou o ato que forçosamente as produziria, Moscou quis estas conseqüências.
Por que as quis? No que estas
conseqüências beneficiam o grande plano geral da bolchevização
no mundo?
É bem possível que fazendo um
paciente puzzle
com tudo que acabamos de dizer, se chegue a conseqüências muito sólidas sobre
este ponto. Mas, para este puzzle nos faltam tempo, espaço, e gosto.
Contudo, deixamos aqui mais um aspecto da situação
a ser encaixado no puzzle
pelos que tiverem curiosidade e paciência. Por que motivo não participaram da
reunião de Belgrado os representantes do PC da América? Por que motivo, pelo
contrário, nações da importância da França e da Itália ali figuraram ao lado de
pequenos povos centro ou sul europeus? Dir-se-ia que a URSS visa a conquista
imediata de quase todo o continente europeu, e renuncia no momento a dominar
qualquer parte da América, que ficará inteiramente nas mãos dos americanos.
Terá alguma relação com isto a anunciada
retirada de todos os embaixadores soviéticos da América, e o complô em que se deixaram apanhar os diplomatas iugoslavos
no Chile? Enigmas. Note-se, contudo, que isto concorre
para dividir ainda mais o mundo em dois blocos, um soviético (e europeu) e
outro anti-soviético (e americano). E o Império
Britânico? Pobre Inglaterra!