Há dias atrás, o regime constitucional celebrou seu
primeiro aniversário. A ocasião parece propícia para um balanço de quanto se
realizou neste ano agitado. É o que tentaremos fazer.
* * *
O primeiro problema brasileiro era propriamente
institucional. O país estava literalmente farto do regime de exceção, com
escândalo permanente do Tribunal de Segurança Nacional, das leis feitas
atabalhoadamente, cominando penas severíssimas para atos definidos de modo
apenas nebuloso, dos decretos-lei interferindo em processos sujeitos à
apreciação da justiça, dos orçamentos perfeitamente clandestinos nos quais uma
só coisa era clara, isto é, a existência de verbas, sub-verbas
substanciosas em favor dos amigos do regime, e, mais do que tudo, da floração
exótica e suspeita dos "homens públicos" da ditadura, misto pitoresco
de valentões de bar, de aventureiros de bolsa, e de áulicos de sub-prefeituras. A poussée que derrubou a ditadura foi verdadeiramente um movimento
nacional, do qual todos participaram, desde a extrema direita até a extrema
esquerda. Era fora de dúvida que uma renovação se tornava necessária. Mas que
renovação? É aí que as sombras começavam a surgir.
De um modo geral, caminhava-se para a democracia
liberal e representativa. Mas é sabido que esse regime, dando amplo jogo às
várias forças da opinião, se presta facilmente a proliferação das ideologias malsãs. Ora em certos setores da opinião pública, esta
proliferação já vinha sendo notada desde o tempo da ditadura. O comunismo, por
exemplo, jamais cessara de trabalhar. Não seria de temer que, em regime de
livre opinião, ele se manifestasse mais agressivo, empreendedor e contagioso do
que nunca? Que reações poderia suscitar o comunismo? Que eficácia teria as
instituições representativas, num panorama político dividido pelo entrechoque
violento do comunismo e do anticomunismo?
Cada uma destas questões constituía um escolho
perigoso. O Brasil desejava superar estes obstáculos. Mas suas aspirações não eram
apenas negativas. Queríamos mais. Todos esperávamos homens, programas,
instituições capazes não só de vencer as crises do momento, mas de dar à nossa
vida pública a estabilidade, a grandeza e a eficácia necessária; homens,
instituições e programas que refletissem em nossas tradições, nossa
mentalidade, nossos anseios. Desde 1889, nossa vida pública não tem sido senão
uma grande decepção. Os homens honestos e capazes que de quando em quando tem
aparecido, fazem o papel de demiurgos em confronto com os pigmeus que
habitualmente se encontram a todas as horas em todos os cargos. Não há idéias. Por isto mesmo, também de modo geral,
não há partidos. Como os partidos, também a imprensa se dignifica apenas pela
sua fidelidade a idéias e programas: nossa imprensa é quase sempre tão a-ideológica, e tão vazia "de homens e de idéias"
quanto nossos partidos. Tem-se vontade de bocejar, ou de chorar diante de tal quadro. Os brasileiros
esperavam que desta vez, por fim, surgissem os homens, o partido, o programa
com que cada um sonhava a seu modo. Era nesta atmosfera que a reconstitucionalização se iria fazer.
O problema institucional se definia, pois, com dois
aspectos, um negativo e o outro positivo. Abismos a evitar, alturas a galgar.
Deslizamos para o fundo dos abismos? Subimos ao alto dos píncaros? A quantas
estamos depois de nos movermos afanosamente durante um ano inteiro?
É preciso reconhecer que não chegamos ao fundo do
abismo. As instituições representativas venceram uma dura etapa de
desprestígio. No tempo dos shows do Sr. Barreto Pinto era de bom tom
ridicularizar-se à Assembléia. Hoje, isto passou, e os trabalhos legislativos
vão prosseguindo normalmente. As leis que temos tido deixam muito a desejar.
Mas ao menos não tem nenhuma extravagância, a arbitrariedade, o desleixo, a
retroatividade hirsuta dos decretos-lei da era anterior. Nossos parlamentares
tiveram a coragem de não tirar dos princípios rançosamente liberais todas as
suas conseqüências em matéria de livre pensamento. E por isto, temos hoje o
partido Comunista fora da lei. O próprio fato de que se cogita da cassação dos
mandatos dos comunistas prova como o movimento anti-soviético
é forte entre nós. Este movimento se desenvolve, contudo, numa atmosfera de
equilíbrio e legalidade. Nosso eleitorado se mostrou sensato: os comunistas não
obtiveram nas eleições estaduais resultado de monta. Pelo contrário,
retrocederam um pouco. Em suma, neste primeiro ano de regime constitucional não
se pronunciou nenhuma das grandes crises que poderíamos recear, e as coisas
correram muito menos mal do que certas previsões pessimistas poderiam fazer
supor.
Não descemos pois, ao fundo dos abismos. Subimos
aos alto dos píncaros? Também não. As eleições para as assembléias legislativas
estaduais desapontavam o Brasil, porque mostraram que a mediocridade do
Legislativo Federal não era mero produto das agitações do momento em que se fez
a constitucionalização. Há uma falta de homens, de
idéias, de idealismo, que causa susto. Desiludida, enfastiada, a maior e melhor
parte da população começa a se desinteressar da política. Nesta atitude está
implícita a convicção de que nos atuais quadros políticos não se encontram os
meios necessários para promover eficazmente o progresso do país.
Nisto há um perigo. A situação internacional pode
jogar-nos de um momento para o outro em lutas aspérrimas. Evidentemente, nossa
situação interna, já difícil, se ressentirá disto. Podemos, com este material
humano, enfrentar o perigo, vencer a crise, salvar o país? Quanto ceticismo nestas
perguntas que todos formulamos!
O Brasil espera algo que ainda não veio. Quem sabe
se este algo se forjará apenas no momento da prova, da luta, do sacrifício?
* * *
Em matéria financeira, poder-se-ia dizer o mesmo.
Combatemos energicamente a inflação, e os especuladores andam verdadeiramente
penalizados porque seus lucros não crescem mais na proporção astronômica dos
bons tempos. Houve, porém, barateamento do preço de vida? Há mais conforto,
mais largueza, mais bem estar para a classe média, sem dúvida a mais atingida
pela crise? Também não. Podíamos ter piorado muito. Podíamos ter melhorado
muito. Em última análise, estamos como
estávamos, depois de um ano inteiro de discursos e declamações.
* * *
Esta a verdade. Diante de tal quadro, a impressão
que se tem é confusa e algum tanto contraditória. Se pensamos no que o Brasil
merece, no que poderia exigir, no que deveria ser, sentimos a indignação subir
em nós. Mas, por outro lado, quando pensamos no esforço, na paciência, na
energia de todos os instantes que é necessária em nossos dias para evitar que
as coisas piorem, não podemos deixar de sentir algum contentamento. O mal tem
hoje um dinamismo, uma penetração, uma eficácia omnímoda e incessante. Vista em
seu conjunto, a civilização contemporânea dá a impressão de uma grande massa
que rola pela encosta de uma montanha. Sem dúvida, é preciso que haja pulso,
para impedir ou mesmo retardar apenas a velocidade com que rola a débâcle. Em
outras palavras, não se pode negar que é satisfatório o fato de que em algum
país as coisas não vão absolutamente tão mal como poderiam ir, neste mundo que
vai de mal a pior.
É esta a apreciação final de que para sermos
absolutamente justos, meticulosamente justos, devemos fazer do que sucedeu
neste ano de regime legal, apreciação que, como sempre, abstraí de parcialidades, governismos ou anti-governismos, para olhar só as idéias, o regime, os
programas do país, bem como os costumes, os estranhos e tristes costumes do
século.