Legionário, n.° 789, 21 de setembro de 1947

O 1º ANIVERSÁRIO

Há dias atrás, o regime constitucional celebrou seu primeiro aniversário. A ocasião parece propícia para um balanço de quanto se realizou neste ano agitado. É o que tentaremos fazer.

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O primeiro problema brasileiro era propriamente institucional. O país estava literalmente farto do regime de exceção, com escândalo permanente do Tribunal de Segurança Nacional, das leis feitas atabalhoadamente, cominando penas severíssimas para atos definidos de modo apenas nebuloso, dos decretos-lei interferindo em processos sujeitos à apreciação da justiça, dos orçamentos perfeitamente clandestinos nos quais uma só coisa era clara, isto é, a existência de verbas, sub-verbas substanciosas em favor dos amigos do regime, e, mais do que tudo, da floração exótica e suspeita dos "homens públicos" da ditadura, misto pitoresco de valentões de bar, de aventureiros de bolsa, e de áulicos de sub-prefeituras. A poussée que derrubou a ditadura foi verdadeiramente um movimento nacional, do qual todos participaram, desde a extrema direita até a extrema esquerda. Era fora de dúvida que uma renovação se tornava necessária. Mas que renovação? É aí que as sombras começavam a surgir.

De um modo geral, caminhava-se para a democracia liberal e representativa. Mas é sabido que esse regime, dando amplo jogo às várias forças da opinião, se presta facilmente a proliferação das ideologias malsãs. Ora em certos setores da opinião pública, esta proliferação já vinha sendo notada desde o tempo da ditadura. O comunismo, por exemplo, jamais cessara de trabalhar. Não seria de temer que, em regime de livre opinião, ele se manifestasse mais agressivo, empreendedor e contagioso do que nunca? Que reações poderia suscitar o comunismo? Que eficácia teria as instituições representativas, num panorama político dividido pelo entrechoque violento do comunismo e do anticomunismo?

Cada uma destas questões constituía um escolho perigoso. O Brasil desejava superar estes obstáculos. Mas suas aspirações não eram apenas negativas. Queríamos mais. Todos esperávamos homens, programas, instituições capazes não só de vencer as crises do momento, mas de dar à nossa vida pública a estabilidade, a grandeza e a eficácia necessária; homens, instituições e programas que refletissem em nossas tradições, nossa mentalidade, nossos anseios. Desde 1889, nossa vida pública não tem sido senão uma grande decepção. Os homens honestos e capazes que de quando em quando tem aparecido, fazem o papel de demiurgos em confronto com os pigmeus que habitualmente se encontram a todas as horas em todos os cargos. Não há  idéias. Por isto mesmo, também de modo geral, não há partidos. Como os partidos, também a imprensa se dignifica apenas pela sua fidelidade a idéias e programas: nossa imprensa é quase sempre tão a-ideológica, e tão vazia "de homens e de idéias" quanto nossos partidos. Tem-se vontade de bocejar, ou de chorar  diante de tal quadro. Os brasileiros esperavam que desta vez, por fim, surgissem os homens, o partido, o programa com que cada um sonhava a seu modo. Era nesta atmosfera que a reconstitucionalização se iria fazer.

O problema institucional se definia, pois, com dois aspectos, um negativo e o outro positivo. Abismos a evitar, alturas a galgar. Deslizamos para o fundo dos abismos? Subimos ao alto dos píncaros? A quantas estamos depois de nos movermos afanosamente durante um ano inteiro?

É preciso reconhecer que não chegamos ao fundo do abismo. As instituições representativas venceram uma dura etapa de desprestígio. No tempo dos shows do Sr. Barreto Pinto era de bom tom ridicularizar-se à Assembléia. Hoje, isto passou, e os trabalhos legislativos vão prosseguindo normalmente. As leis que temos tido deixam muito a desejar. Mas ao menos não tem nenhuma extravagância, a arbitrariedade, o desleixo, a retroatividade hirsuta dos decretos-lei da era anterior. Nossos parlamentares tiveram a coragem de não tirar dos princípios rançosamente liberais todas as suas conseqüências em matéria de livre pensamento. E por isto, temos hoje o partido Comunista fora da lei. O próprio fato de que se cogita da cassação dos mandatos dos comunistas prova como o movimento anti-soviético é forte entre nós. Este movimento se desenvolve, contudo, numa atmosfera de equilíbrio e legalidade. Nosso eleitorado se mostrou sensato: os comunistas não obtiveram nas eleições estaduais resultado de monta. Pelo contrário, retrocederam um pouco. Em suma, neste primeiro ano de regime constitucional não se pronunciou nenhuma das grandes crises que poderíamos recear, e as coisas correram muito menos mal do que certas previsões pessimistas poderiam fazer supor.

Não descemos pois, ao fundo dos abismos. Subimos aos alto dos píncaros? Também não. As eleições para as assembléias legislativas estaduais desapontavam o Brasil, porque mostraram que a mediocridade do Legislativo Federal não era mero produto das agitações do momento em que se fez a constitucionalização. Há uma falta de homens, de idéias, de idealismo, que causa susto. Desiludida, enfastiada, a maior e melhor parte da população começa a se desinteressar da política. Nesta atitude está implícita a convicção de que nos atuais quadros políticos não se encontram os meios necessários para promover eficazmente o progresso do país.

Nisto há um perigo. A situação internacional pode jogar-nos de um momento para o outro em lutas aspérrimas. Evidentemente, nossa situação interna, já difícil, se ressentirá disto. Podemos, com este material humano, enfrentar o perigo, vencer a crise, salvar o país? Quanto ceticismo nestas perguntas que todos formulamos!

O Brasil espera algo que ainda não veio. Quem sabe se este algo se forjará apenas no momento da prova, da luta, do sacrifício?

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Em matéria financeira, poder-se-ia dizer o mesmo. Combatemos energicamente a inflação, e os especuladores andam verdadeiramente penalizados porque seus lucros não crescem mais na proporção astronômica dos bons tempos. Houve, porém, barateamento do preço de vida? Há mais conforto, mais largueza, mais bem estar para a classe média, sem dúvida a mais atingida pela crise? Também não. Podíamos ter piorado muito. Podíamos ter melhorado muito. Em  última análise, estamos como estávamos, depois de um ano inteiro de discursos e declamações.

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Esta a verdade. Diante de tal quadro, a impressão que se tem é confusa e algum tanto contraditória. Se pensamos no que o Brasil merece, no que poderia exigir, no que deveria ser, sentimos a indignação subir em nós. Mas, por outro lado, quando pensamos no esforço, na paciência, na energia de todos os instantes que é necessária em nossos dias para evitar que as coisas piorem, não podemos deixar de sentir algum contentamento. O mal tem hoje um dinamismo, uma penetração, uma eficácia omnímoda e incessante. Vista em seu conjunto, a civilização contemporânea dá a impressão de uma grande massa que rola pela encosta de uma montanha. Sem dúvida, é preciso que haja pulso, para impedir ou mesmo retardar apenas a velocidade com que rola a débâcle. Em outras palavras, não se pode negar que é satisfatório o fato de que em algum país as coisas não vão absolutamente tão mal como poderiam ir, neste mundo que vai de mal a pior.

É esta a apreciação final de que para sermos absolutamente justos, meticulosamente justos, devemos fazer do que sucedeu neste ano de regime legal, apreciação que, como sempre, abstraí de parcialidades, governismos ou anti-governismos, para olhar só as idéias, o regime, os programas do país, bem como os costumes, os estranhos e tristes costumes do século.