Para atender ao pedido de um amigo, rompo hoje a
linha de conduta que o "Legionário" vem seguindo invariavelmente em
relação ao jornalista V. Cy, que, no "Estado de
São Paulo”, tem atacado freqüentemente a Igreja. Como todo o mundo, leio
há muitos anos os artigos de V. Cy, em quem sempre admirei um dos jornalistas mais
espirituosos, perspicazes e agradáveis do Brasil. Mais de uma vez tenho
discordado de suas opiniões, e o "Legionário", em outros tempos, já
andou publicamente em discussões com ele. Nada disto, porém, prejudicou o
grande conceito que dele formei como jornalista. Uma das grandes qualidades que
sempre reconheci nele foi a habilidade em escolher o assunto mais atual, para
as suas crônicas, que tomavam com isto um interesse sempre palpitante. Ora,
precisamente esta qualité maitresse vem
faltando às publicações de V. Cy. Parece que o exílio
voluntário a que ele se condenou, em Paquetá, o
colocou tão longe dos homens e das coisas, que em geral os assuntos que escolhe
já não tem o interesse de outros tempos. Por vezes, tem-se a impressão de que
ele se esforça longamente à procura de um tema e, à mingua de resultados, se
decide a contragosto a explorar esta ou aquela questão manifestamente sem atualidade
nem interesse. Seus freqüentes ataques à religião se explicam assim a meu ver.
Outrora, quando V. Cy atacava a Igreja, não se tinha
a impressão contrafeita que alguns de seus artigos dão hoje. Podia-se discordar
totalmente de suas idéias, reconhecendo embora o senso de oportunidade e a
verve brilhantíssima do grande jornalista. Hoje, por vezes isto não se dá.
Tem-se a sensação de que V. Cy, de quando em vez,
toca em temas religiosos por falta de assunto, para suscitar polêmicas,
réplicas e tréplicas que alimentem sua seção. A meu ver, melhor seria deixá-lo
dizer, e é o que de nosso lado temos feito. Mas desta vez V. Cy foi muito longe. Não se pode
admitir em política que os fins santificam os meios, e o mesmo não se pode
admitir em jornalismo. Há expedientes lícitos para uso dos jornalistas sem
tema. Mas ao jornalista não é licito servir-se de qualquer meio para se
abastecer de assuntos...
Foi, contudo, o que fez no domingo passado nosso
cronista de Paquetá. Em suas notas, que deveriam ser
de atualidade, apresentando assuntos do dia que, por sua natureza,
interessassem a coletividade, ele nos vem com um escândalo. Em princípio, em
uma crônica como a de V. Cy, um escândalo só teria
razão de ser caso exprimisse uma tendência geral dos costumes, um ato que, pelo
risco próximo e grave de repetição, poderia transformar-se em hábito geral,
etc. O resto, o caso de um homem que engolia uma laranja de uma só vez, de
outro que tentou ir à Europa a nado, apostasias de
sacerdotes, incestos, infanticídios, tudo isto enfim é extravagante, ou
monstruoso, está pela própria natureza das coisas fora da vida habitual,
normal, quotidiana, fora do campo dos interesses coletivos e sociais mais
atuais e palpitantes. É o material para as crônicas policiais ou para os jornaizinhos sem linha.
Insistimos quanto ao caso de apostasias
de sacerdotes. É inquestionável que elas são possíveis: nem sequer um fanático
o poderia contestar. Seria preciso ser mentecapto para negar que elas existam.
Não temos diante de nós a apostasia de um bispo? Logo nos primórdios do
cristianismo, não tivemos a de Judas? Nosso Senhor profetizou Ele mesmo que
tais apostasias ocorreriam. Pois o que significa,
senão isto, a parábola do sal insípido, que só serve para ser atirado à rua e
calcado aos pés?
A Igreja sabe e proclama que a observância dos
mandamentos exige do homem grandes e terríveis sacrifícios. Ela chega, mesmo, a
ensinar que sua moral é tão superior às simples forças da criatura que nenhum
homem a poderia observar integralmente e duravelmente
sem o auxílio da graça de Deus. A esta graça, cumpre-nos corresponder. E a
correspondência se faz por meio de renúncias, de lances de heroísmo que às
vezes exigem de nós o sacrifício de tudo quanto nos parece concretizar e
consubstanciar a felicidade terrena. Se isto se diz dos deveres de um fiel, o
que dizer dos de um padre, de um bispo? Quem não percebe que a natureza humana,
confortada embora pelo auxílio sobrenatural, tem de fazer esforços incessantes
para se manter sempre à altura de tão nobre e austera vocação?
Tudo isto considerado, se de outro lado tivermos em
mente o número quase incontável de bispos e sacerdotes que a Igreja teve nestes
vinte séculos, seria o caso de dizer que não nos admira que tenha havido
defecções nas fileiras da hierarquia. O que nos admira é que elas tenham sido
tão poucas...
V. Cy nos narra
prolixamente o caso de um Padre Aleixo, que entrou muito cedo no seminário, por sugestão
materna, exerceu o ministério em uma grande paróquia, e acabou deixando a
batina para contrair "casamento" civil com certa moça. Porque razão
acha V. Cy o caso tão digno de nota, que lhe consagra
uma extensão considerável? Se o caso fosse freqüente, comum, teria interesse
igual? Não percebe V. Cy que comentando tanto o fato,
ele que afirma achá-lo inteiramente normal do ponto de vista moral, confessa
implicitamente que o caso só é notável por sua raridade? E não compreende que
casos escandalosos e raros assim não devem ser tratados como fatos freqüentes e
comuns, sem grave injustiça?
Parece-me que no artigo, V. Cy
faz uma charge
contra as vocações "prematuras". Se o Pe. Aleixo
não tivesse entrado tão cedo para o seminário, teria podido conhecer outros
aspectos da vida, e teria evitado uma carreira para a qual não tinha vocação.
Há objeção mais debatida, mais conhecida, mais
refutada? Para que o homem conheça os atrativos da vida inteiramente pagã e
naturalista, não é necessário que tome contato com eles. Basta-lhe escutar as
vozes interiores dos instintos e paixões postos em desordem depois do pecado
original. Assim, para persuadir a um menino que não deve roubar, não é
necessário levá-lo antes diante de cofres bem cheios, para lhe fazer sentir a
fascinação do ouro. Nem é necessário fazer com que um jovem se embriague ou
tome morfina, para depois de ter tido a experiência direta da coisa, se decidir
a abster-se dela. Tanto é isto verdade, que se um educador sustentasse o
contrário seria tido por doido. Percebemos todos, que a atração do roubo ou da
embriaguez pode ser muito bem percebida e sentida até de longe. O mesmo se pode
dizer da pretensa necessidade de entrar o seminarista tarde para o seminário.
Dizer que este ou aquele padre apostata porque jamais soube no seminário que
delícias poderia haver na vida crapulosa, é o mesmo que dizer que A ou B se
tornou ladrão na idade adulta, porque foi educado em um ambiente muito fechado,
onde ninguém lhe fez sentir as delícias do roubo, de sorte que, quando pela
primeira vez as viu, estava desarmado.
* * *
V. Cy termina seu artigo
com uma censura à dona Camilla, mãe do padre Aleixo, porque induziu o filho a entrar para o seminário.
Induziu, note-se, sem pressão alguma.
Pois se eu conhecesse essa dona Camilla
mais ou menos hipotética, eu lhe beijaria as duas mãos em sinal de respeito, e
a felicitaria com todo o calor, por ter desejado tanto ter um filho padre e por
ter chegado a ver a ordenação de seu filho; e isto ainda que eu a conhecesse só
depois de seu filho ter apostatado.
A mãe que, sem coação nem violência, encaminha seu
filho para o serviço de Deus cultivando nele uma vocação precoce – jamais uma
suposta vocação, criada pela força – uma tal mãe merece o respeito dos homens,
e as lágrimas que verter pela apostasia de seu filho serão recolhidas pelos
próprios anjos, tão nobres e preciosas aos olhos de Deus, quanto as lágrimas de
emoção e de júbilo que ela derramou no dia da ordenação.