Retomamos hoje nossas considerações sobre o
discurso sensacional em que o General De Gaulle rompeu claramente
com os comunistas. Já mostramos que todo o esforço dos políticos do MRP
[Movimento Republicano Popular], bem como dos partidos
socialista e comunista consistiu em evitar a cisão da França nos dois blocos
tradicionais, direita e esquerda. Mostramos, ainda, que a recordação recente da
luta comum de muitos direitistas e esquerdistas, nas fileiras do Movimento de
Resistência contra o nazismo, estabelecera ambiente psicológico para essa
atitude política que, antes da guerra, teria parecido absurda. O General De
Gaulle, em seu discurso, mostrou que a manutenção do regime de colaboração
cordial entre o MRP e as esquerdas era impossível, e insistiu especialmente
sobre dois argumentos: a) os comunistas não se mostram sinceros nesta
colaboração, e, enquanto simulam propósitos pacíficos em relação aos outros
partidos, de fato estão ocupando gradualmente os postos-chave
e preparando na França uma grande ofensiva para a implantação, à viva força, de
seu regime; b) a URSS conta dominar toda a Europa, e o Partido
Comunista da França não é senão uma
quinta coluna de Moscou, para assaltar o país na primeira ocasião. Em abono de
suas teses, De Gaulle mostrou a conivência dos comunistas franceses com os
nazistas na primeira fase da guerra, a deslealdade de sua colaboração com os anti-nazistas na segunda fase, e explicou toda a conduta
dos vermelhos, não como uma prova de patriotismo, mas como uma demonstração de
sua absoluta dedicação aos interesses russos. Segundo o General, os comunistas
só serviram a França nos períodos em que tal convinha à política internacional
da URSS. É fácil conceber como estas palavras, procedentes do chefe da
Resistência, gelaram o ambiente de cordialidade que a reminiscência dos dias de
ocupação criara entre comunistas e anticomunistas.
Segundo prometemos, resta-nos examinar as repercussões
deste discurso no MRP e no desenvolvimento da diplomacia Soviética.
* * *
Nada é mais complexo do que o Movimento Republicano
Popular. Antes de tudo, note-se que ele não é propriamente um
Partido Católico como o da Bélgica ou Holanda, mas, segundo a fórmula consagrada, um "Partido de
católicos". Em suma, o MRP não estabelece como ponto supremo de seu
programa a defesa da religião, está aberto a todos os homens com ou sem Fé, e
não tem para com o catolicismo compromissos definidos. Sucede, porém, que muito
de seus leaders
são católicos militantes.
Daí decorre que o partido despertou a confiança de
todos os católicos, ou de quase todos eles. Assim, este partido onde se
encontram homens de todas as religiões, e que em tese não tem compromissos
totais e absolutos com a Igreja, recebeu quase todo o formidável apoio da
opinião católica.
Esta situação, que não é muito clara e que pode até
parecer algum tanto contraditória, foi possível em conseqüência de uma
circunstância especial. No lendemain da guerra, temiam todos uma luta civil entre
comunistas e anticomunistas, o que teria acabado de arrasar a França. Era
preciso, pois, não precipitar os acontecimentos desfraldando uma bandeira
anticomunista. De outro lado, porém, era preciso organizar as forças
anticomunistas com vistas a uma resistência que de um momento para outro
poderia tornar-se indispensável. A fórmula ideal era um partido moderadamente
anticomunista, no qual se agrupassem todos os elementos que não eram nem
socialistas, nem comunistas. Como a derrota do nazismo estraçalhara todas as
organizações de "direita", o remédio único foi este: aderir em bloco
ao MRP.
Assim, este contou não só com o apoio decisivo do
imenso movimento do laicato católico francês, mas com
boa parte da chamada "direita", monarquistas, antigos "Croix de Feu", etc., etc.
Esta política foi possível enquanto as circunstâncias
aconselharam moderação para com o comunismo. Mas com o tempo esta moderação se
tornou desnecessária, e até nociva. Desnecessária porque, normalizada algum
tanto a vida depois do primeiro ano de paz, a França já podia dedicar-se às
discussões políticas inerentes ao regime democrático. Nociva, porque os
anticomunistas colaboravam de boa fé, mas os comunistas colaboravam de má fé, e
preparavam lentamente um golpe. Assim, no laicato
católico francês, numerosas correntes começaram a aspirar por uma ruptura com o
comunismo.
Mas - e entramos aqui no ponto delicado do problema
- os líderes católicos do MRP, Bidault por exemplo, eram
da opinião que a política de cordialidade com o comunismo não era apenas
desejável por razões de momento, mas por grandes e profundas razões de outra
ordem. Para muitos dos mentores do MRP, o comunismo "é um mal menor",
ao menos sob certos aspetos, do que o regime atual com suas injustiças
flagrantes. A pressão comunista pode, pois, ser utilizada como força útil para reformar
o mundo em que vivemos. De outro lado, não há que recear que os comunistas
vençam, nem é necessário o emprego da polêmica ou da repressão policial para
impedir esta vitória: com bons tratos e uma cordial política de colaboração, o
MRP acabaria por converter os comunistas. Pelo contrário, tudo isto parecia
ingenuidade, e ingenuidade rematada, a muitos franceses. Não admitiam como
provável a conversão em massa de todos os comunistas, e achavam que deixar os
vermelhos soltos pelas ruas para corrigir por meio da pressão deles os males
atuais da organização social era algo de tão extravagante quanto soltar leões
em campo cultivado, esperando que eles com o peso de suas patas matassem as
formigas e resolvessem o problema da saúva. Claro está que este modo de ver é o
certo. Mas o fato é que o tema foi muito debatido na França, gerando no MRP um
mal estar crescente.
* * *
Ora sucede que De Gaulle desfruta, no MRP, do maior
prestígio. Seu discurso veio tornar patente uma crise que de há muito minava o
MRP. A divisão deste partido em duas correntes é agora um fato consumado, que
tende a se agravar a todo momento. Claro está que a posição pessoal de Bidault e de seus colaboradores ficará profundamente
prejudicada com isto, uma vez que a cisão do partido os forçará a optar por um
ou outro grupo, descendo do pedestal de chefes de uma grande corrente, para o
de chefes de uma fração, apenas, do antigo MRP. De outro lado, se entrarem para
o movimento de De Gaulle estão condenados a não ser
senão satélites do grande chefe da Resistência. O que fazer?
Parece-nos que procurarão contemporizar, evitando
de tomar posição perante o discurso de De Gaulle, e
abafando tanto quanto possível, nas fileiras do MRP, o eco de sua voz. De
Gaulle, pelo contrário, com o intuito de ampliar os quadros de seu movimento, o
Rassemblement du Peuple Français, procurará
insistir na questão, servindo-se dela para desagregar o MRP.
O êxito da política de contemporização de uns, e da
política de separação de campo de outros, depende essencialmente da atitude de
Moscou. Se o imperialismo da URSS na Europa se tornar ainda mais premente, os
anticomunistas franceses ficarão alarmados, e romperão com o comunismo. Se,
pelo contrário, os soviéticos contemporizarem em seus avanços fora da França e
dentro da França, a contemporização do MRP tem algumas possibilidades de êxito.
É indiscutível que uma política de separação de
campos servirá muito melhor os interesses do catolicismo. Por isto mesmo, temos
certa impressão de que a URSS evitará cuidadosamente qualquer atitude que torne
tal separação inevitável. Vejamos.