Legionário, n.° 784, 17 de agosto de 1947

AINDA O DISCURSO DE  DE GAULLE

Retomamos hoje nossas considerações sobre o discurso sensacional em que o General De Gaulle rompeu claramente com os comunistas. Já mostramos que todo o esforço dos políticos do MRP [Movimento Republicano Popular], bem como dos partidos socialista e comunista consistiu em evitar a cisão da França nos dois blocos tradicionais, direita e esquerda. Mostramos, ainda, que a recordação recente da luta comum de muitos direitistas e esquerdistas, nas fileiras do Movimento de Resistência contra o nazismo, estabelecera ambiente psicológico para essa atitude política que, antes da guerra, teria parecido absurda. O General De Gaulle, em seu discurso, mostrou que a manutenção do regime de colaboração cordial entre o MRP e as esquerdas era impossível, e insistiu especialmente sobre dois argumentos: a) os comunistas não se mostram sinceros nesta colaboração, e, enquanto simulam propósitos pacíficos em relação aos outros partidos, de fato estão ocupando gradualmente os postos-chave e preparando na França uma grande ofensiva para a implantação, à viva força, de seu regime; b) a URSS conta dominar toda a Europa, e o Partido Comunista da França não é senão uma quinta coluna de Moscou, para assaltar o país na primeira ocasião. Em abono de suas teses, De Gaulle mostrou a conivência dos comunistas franceses com os nazistas na primeira fase da guerra, a deslealdade de sua colaboração com os anti-nazistas na segunda fase, e explicou toda a conduta dos vermelhos, não como uma prova de patriotismo, mas como uma demonstração de sua absoluta dedicação aos interesses russos. Segundo o General, os comunistas só serviram a França nos períodos em que tal convinha à política internacional da URSS. É fácil conceber como estas palavras, procedentes do chefe da Resistência, gelaram o ambiente de cordialidade que a reminiscência dos dias de ocupação criara entre comunistas e anticomunistas.

Segundo prometemos, resta-nos examinar as repercussões deste discurso no MRP e no desenvolvimento da diplomacia Soviética.

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Nada é mais complexo do que o Movimento Republicano Popular. Antes de tudo, note-se que ele não é propriamente um Partido Católico como o da Bélgica ou Holanda, mas, segundo a fórmula consagrada, um "Partido de católicos". Em suma, o MRP não estabelece como ponto supremo de seu programa a defesa da religião, está aberto a todos os homens com ou sem Fé, e não tem para com o catolicismo compromissos definidos. Sucede, porém, que muito de seus leaders são católicos militantes.

Daí decorre que o partido despertou a confiança de todos os católicos, ou de quase todos eles. Assim, este partido onde se encontram homens de todas as religiões, e que em tese não tem compromissos totais e absolutos com a Igreja, recebeu quase todo o formidável apoio da opinião católica.

Esta situação, que não é muito clara e que pode até parecer algum tanto contraditória, foi possível em conseqüência de uma circunstância especial. No lendemain da guerra, temiam todos uma luta civil entre comunistas e anticomunistas, o que teria acabado de arrasar a França. Era preciso, pois, não precipitar os acontecimentos desfraldando uma bandeira anticomunista. De outro lado, porém, era preciso organizar as forças anticomunistas com vistas a uma resistência que de um momento para outro poderia tornar-se indispensável. A fórmula ideal era um partido moderadamente anticomunista, no qual se agrupassem todos os elementos que não eram nem socialistas, nem comunistas. Como a derrota do nazismo estraçalhara todas as organizações de "direita", o remédio único foi este: aderir em bloco ao MRP.

Assim, este contou não só com o apoio decisivo do imenso movimento do laicato católico francês, mas com boa parte da chamada "direita", monarquistas, antigos "Croix de Feu", etc., etc.

Esta política foi possível enquanto as circunstâncias aconselharam moderação para com o comunismo. Mas com o tempo esta moderação se tornou desnecessária, e até nociva. Desnecessária porque, normalizada algum tanto a vida depois do primeiro ano de paz, a França já podia dedicar-se às discussões políticas inerentes ao regime democrático. Nociva, porque os anticomunistas colaboravam de boa fé, mas os comunistas colaboravam de má fé, e preparavam lentamente um golpe. Assim, no laicato católico francês, numerosas correntes começaram a aspirar por uma ruptura com o comunismo.

Mas - e entramos aqui no ponto delicado do problema - os líderes católicos do MRP, Bidault por exemplo, eram da opinião que a política de cordialidade com o comunismo não era apenas desejável por razões de momento, mas por grandes e profundas razões de outra ordem. Para muitos dos mentores do MRP, o comunismo "é um mal menor", ao menos sob certos aspetos, do que o regime atual com suas injustiças flagrantes. A pressão comunista pode, pois, ser utilizada como força útil para reformar o mundo em que vivemos. De outro lado, não há que recear que os comunistas vençam, nem é necessário o emprego da polêmica ou da repressão policial para impedir esta vitória: com bons tratos e uma cordial política de colaboração, o MRP acabaria por converter os comunistas. Pelo contrário, tudo isto parecia ingenuidade, e ingenuidade rematada, a muitos franceses. Não admitiam como provável a conversão em massa de todos os comunistas, e achavam que deixar os vermelhos soltos pelas ruas para corrigir por meio da pressão deles os males atuais da organização social era algo de tão extravagante quanto soltar leões em campo cultivado, esperando que eles com o peso de suas patas matassem as formigas e resolvessem o problema da saúva. Claro está que este modo de ver é o certo. Mas o fato é que o tema foi muito debatido na França, gerando no MRP um mal estar crescente.

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Ora sucede que De Gaulle desfruta, no MRP, do maior prestígio. Seu discurso veio tornar patente uma crise que de há muito minava o MRP. A divisão deste partido em duas correntes é agora um fato consumado, que tende a se agravar a todo momento. Claro está que a posição pessoal de Bidault e de seus colaboradores ficará profundamente prejudicada com isto, uma vez que a cisão do partido os forçará a optar por um ou outro grupo, descendo do pedestal de chefes de uma grande corrente, para o de chefes de uma fração, apenas, do antigo MRP. De outro lado, se entrarem para o movimento de De Gaulle estão condenados a não ser senão satélites do grande chefe da Resistência. O que fazer?

Parece-nos que procurarão contemporizar, evitando de tomar posição perante o discurso de De Gaulle, e abafando tanto quanto possível, nas fileiras do MRP, o eco de sua voz. De Gaulle, pelo contrário, com o intuito de ampliar os quadros de seu movimento, o Rassemblement du Peuple Français, procurará insistir na questão, servindo-se dela para desagregar o MRP.

O êxito da política de contemporização de uns, e da política de separação de campo de outros, depende essencialmente da atitude de Moscou. Se o imperialismo da URSS na Europa se tornar ainda mais premente, os anticomunistas franceses ficarão alarmados, e romperão com o comunismo. Se, pelo contrário, os soviéticos contemporizarem em seus avanços fora da França e dentro da França, a contemporização do MRP tem algumas possibilidades de êxito.

É indiscutível que uma política de separação de campos servirá muito melhor os interesses do catolicismo. Por isto mesmo, temos certa impressão de que a URSS evitará cuidadosamente qualquer atitude que torne tal separação inevitável. Vejamos.