Legionário, n.° 782, 3 de agosto de 1947

O DISCURSO DE DE GAULLE

A figura do Sr. De Gaulle não é indiscutível. Tenho conversado com muitos franceses sobre o chefe da libertação, e deles tenho ouvido as opiniões mais desencontradas sobre o homem que - é incontestável - encarnou em certo momento a dignidade e o patriotismo francês. Claro está que ninguém lhe nega os louros de salvador da Pátria, nem é a este respeito que se discute o homem e sua obra. De Gaulle estaria colocado em um alto pedestal na galeria dos grandes homens da França, superior a todas as misérias e discussões das lutas partidárias, se tivesse encerrado sua carreira política logo após a libertação. Mas o General não cruzou os braços, e pelo contrário pretendeu reorganizar a França, depois de a ter salvo. O problema da reorganização põe em jogo princípios e interesses por demais graves, para que o programa de De Gaulle seja aceito sem discussão, por mera homenagem de gratidão ao grande homem. E, aliás, qual é bem exatamente este programa? Os franceses discutem as intenções presumíveis de De Gaulle, mas ninguém sabe muito ao certo o que ele deseja. Assim, não espanta que a polêmica pró e contra De Gaulle seja veemente, entre os seus compatriotas.

A nós, brasileiros, ela interessa profundamente, como aliás ao mundo inteiro. Os acontecimentos da política interna da França têm mais ou menos como os da Grécia clássica um significado universal. Assim, pois, algumas reflexões à margem do problema "De Gaulle" serão para nós das mais oportunas e proveitosas.

Consagremos a elas algum espaço de nossa edição de hoje.

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O discurso pronunciado pelo Sr. De Gaulle em Rennes teve numerosas conseqüências, que podemos classificar em dois campos: o da política interna francesa, e o da política internacional.

Quanto à política interna, podemos ainda distinguir as conseqüências produzidas pelo discurso na opinião em geral, e as conseqüências na opinião católica.

Tradicionalmente, a França é um país dividido em "esquerda" e "direita". Desde 1789, a cisão do país nestas duas tendências fundamentais é fato consumado, e domina toda a vida pública. Não falta, mesmo, quem remonte mais longe e afirme que a divisão em "esquerda" e "direita" vem das guerras de Religião, em que os Guises e a Liga Católica representavam a direita, os huguenotes a esquerda. Cessadas as guerras de Religião, a política de esquerda teria sido personificada em Richelieu, Mazarino e Colbert, criadores do Estado burocrático e burguês. E a direita na aristocracia que defendia contra o absolutismo igualitário a sociedade orgânica e hierárquica da Idade Média. Depois, o espírito da esquerda lançou a ofensiva jansenista e galicana, e os Jesuítas empunharam o estandarte da reação ortodoxa e ultramontana. Assim, antes mesmo de 1789, e muito antes, a vida política da França - e, como é fácil perceber, do mundo inteiro - teria sido uma longa luta entre direita e esquerda. Estas digressões históricas são muito interessantes. Não queremos aqui discutí-las. Mas o simples fato de que se tenha querido remontar tão longe neste terreno, mostra que a divisão entre direita e esquerda é algo de clássico e secular na política francesa, é mesmo o próprio cerne de toda a História da França, da História antiga como da mais recente.

Ora, sucede que os acontecimentos trágicos de 1938 lançaram a confusão neste campo tão retilineamente demarcado, e, diante do problema da colaboração ou da insurreição, entre Pétain e De Gaulle tanto a esquerda quanto a direita se dividiram de alto a baixo. Ninguém ignora que em 1914 os franceses mais germanófobos, mais enragés, eram os da direita. Os socialistas chegaram a sabotar muitas vezes a resistência nacional. Em 1938, muitas forças de esquerda colaboraram com os nazistas no momento da invasão: [...] células comunistas, agentes soviéticos, esperançados pelo acordo imoral entre Hitler e Stalin a propósito da Polônia viam nos teutônicos autênticos aliados, e lhes abriam despudoradamente as portas. Mas outros esquerdistas, movidos por algum resto de patriotismo, ou impressionados pelos slogans antinazistas que a propaganda esquerdista produzia abundantemente poucos meses antes da invasão, receberam as tropas de Hitler como se fossem as coortes de Satanás (ou, melhor, como receberiam as de S. Miguel Arcanjo, pois que as coortes de Satanás nunca seriam mal recebidas por nenhuma espécie de nenhuma espécie). Entre os direitistas, muitos se colocaram do lado de Pétain, persuadidos de que Hitler representava a reação, encarnava a direita, e facilitaria na França a derrubada das instituições democráticas. Outros direitistas, contudo, reagiram violentamente: Hitler não era senão um comunista de camisa parda, a colaboração com o inimigo era uma indignidade. Vichy era sinônimo de traição.

Daí o fato de que elementos da esquerda tanto quanto da direita se ligaram contra Pétain nas organizações de resistência, e, do outro lado, direitistas e esquerdistas colaboraram ao lado de Pétain, mesmo depois da invasão da Rússia pelos nazistas.

A colaboração cria hábitos de cordialidade, cria simpatias, cria entrosamentos profundos. Pela primeira vez depois de mais de cem anos, não havia mais na França uma esquerda, nem uma direita. Havia colaboracionistas e anti-colaboracionistas.

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Estes últimos venceram. Expulsaram da vida pública os primeiros. O movimento de resistência subiu ao poder, como uma síntese de tudo quanto lutara pela França em dias de vergonha e de desgraça. Punha-se então uma grande questão: os aliados da véspera se dividiriam novamente em esquerda e direita? Ou seria o caso de aproveitar a oportunidade, e tentar unir todos os franceses, por cima das divisões partidárias, em um grande programa comum?

É muito curioso notar que o movimento de resistência sendo essencialmente democrático, deveria ver na luta dos partidos um bem, e não um mal, mas no caso concreto, desmentindo todos os postulados do regime representativo que é essencialmente pluri-partidário, os leaders do movimento de resistência manifestaram profunda aversão ao regime de lutas de partido, e apontaram na união nacional o sumo bem. O sumo bem, sim, a expressão não é forte demais. Com efeito, os jornalistas e escritores que se fizeram corifeus da união dos partidos não se limitavam a apresentar tal união como um expediente transitório imposto pelas dificuldades do momento, mas como um ideal de uma nova ordem de coisas, o início de uma era nova na História da França.

Claro está que esse programa de união apresentava dificuldade teóricas e práticas imensas. Primeiramente, trazia em si o germe de uma contradição essencial. A tendência para o partido único, ou para o cancelamento de todos os partidos, era tipicamente fascista. Como justificá-la como ideal de luta dos heróis da resistência anti-nazista? Em segundo lugar, no que consistia concretamente esse programa supra-partidário a respeito do qual poderiam concordar homens que pensam ponto por ponto o contrário uns dos outros, como os comunistas e os monarquistas da vieille roche dos quais muitos também eram partidários de De Gaulle. Este ideal se apresentava não apenas como impreciso e perigoso, mas francamente como quimérico. Cheirava a manobra política. Por fim, o hábito multisecular de luta entre direita e esquerda não se poderia eliminar da noite para o dia. Como habituar homens que cresceram na atmosfera da luta contra o "outro lado" a ver nesse "outro lado" apenas aliados? Enquanto o inimigo ocupava o solo, a colaboração entre esquerdistas e direitistas fora possível. Mas, fatalmente, a vida normal traria o retorno de muitas coisas antigas, e com elas a atmosfera de colaboração fatalmente se dissiparia.

Diante disto, os leaders da resistência tomaram uma atitude intermediária. Os partidos se reconstituíram mais ou menos como antes da guerra. Entre eles apareceu um inteiramente novo, o M.R.P. Mas todos resolveram colaborar, esperando que nessa colaboração exercida em um ambiente tranqüilo, aos poucos a reminiscência das antigas divisões se apagasse, os franceses se habituassem à paz política na vida civil e normal, e da colaboração nascesse - com os atritos e as concessões recíprocas impostas pelo convívio pacífico quotidiano - uma mentalidade e um programa comum. Este o sentido mais profundo da colaboração entre os socialistas, comunistas e partidários do M. R. P.

O êxito desta política dependia de quatro fatores: a) a atitude dos católicos intransigentes; b) a atitude de Moscou; c) o desenvolvimento da luta esquerda-direita nos outros países da Europa, que poderia criar na França reflexos inadequados à conciliação interna; d) a atitude de De Gaulle.

De Gaulle acaba de se definir. Vejamos no próximo artigo as conseqüências que teve esta definição no modo de agir dos outros fatores.