A figura do Sr. De Gaulle não é indiscutível.
Tenho conversado com muitos franceses sobre o chefe da libertação, e deles
tenho ouvido as opiniões mais desencontradas sobre o homem que - é
incontestável - encarnou em certo momento a dignidade e o patriotismo francês.
Claro está que ninguém lhe nega os louros de salvador da Pátria, nem é a este
respeito que se discute o homem e sua obra. De Gaulle estaria colocado em
um alto pedestal na galeria dos grandes homens da França, superior a todas as
misérias e discussões das lutas partidárias, se tivesse encerrado sua carreira
política logo após a libertação. Mas o General não cruzou os braços, e pelo
contrário pretendeu reorganizar a França, depois de a ter salvo. O problema da reorganização põe
em jogo princípios e interesses por demais graves, para que o programa de De Gaulle seja aceito sem discussão, por mera homenagem de
gratidão ao grande homem. E, aliás, qual é bem exatamente este programa? Os
franceses discutem as intenções presumíveis de De
Gaulle, mas ninguém sabe muito ao certo o que ele deseja. Assim, não espanta
que a polêmica pró e contra De Gaulle seja veemente, entre os seus compatriotas.
A nós, brasileiros, ela interessa profundamente,
como aliás ao mundo inteiro. Os acontecimentos da política interna da França
têm mais ou menos como os da Grécia clássica um significado universal. Assim,
pois, algumas reflexões à margem do problema "De Gaulle" serão para
nós das mais oportunas e proveitosas.
Consagremos a elas algum espaço de nossa edição de
hoje.
* * *
O discurso pronunciado pelo Sr. De Gaulle em Rennes teve numerosas
conseqüências, que podemos classificar em dois campos: o da política interna
francesa, e o da política internacional.
Quanto à política interna, podemos ainda distinguir
as conseqüências produzidas pelo discurso na opinião em geral, e as
conseqüências na opinião católica.
Tradicionalmente, a França é um país dividido em
"esquerda" e "direita". Desde 1789, a cisão do país nestas
duas tendências fundamentais é fato consumado, e domina toda a vida pública.
Não falta, mesmo, quem remonte mais longe e afirme que a divisão em
"esquerda" e "direita" vem das guerras de Religião, em que
os Guises e a Liga Católica representavam a
direita, os huguenotes a esquerda. Cessadas as
guerras de Religião, a política de esquerda teria sido personificada em Richelieu, Mazarino e Colbert, criadores do Estado burocrático e burguês. E a direita
na aristocracia que defendia contra o absolutismo igualitário a sociedade orgânica
e hierárquica da Idade Média. Depois, o espírito da esquerda lançou a ofensiva jansenista e galicana, e os
Jesuítas empunharam o estandarte da reação ortodoxa e ultramontana.
Assim, antes mesmo de 1789, e muito antes, a vida política da França - e, como
é fácil perceber, do mundo inteiro - teria sido uma longa luta entre direita e
esquerda. Estas digressões históricas são muito interessantes. Não queremos
aqui discutí-las. Mas o simples fato de que se tenha
querido remontar tão longe neste terreno, mostra que a divisão entre direita e
esquerda é algo de clássico e secular na política francesa, é mesmo o próprio
cerne de toda a História da França, da História antiga como da mais recente.
Ora, sucede que os acontecimentos trágicos de 1938
lançaram a confusão neste campo tão retilineamente
demarcado, e, diante do problema da colaboração ou da insurreição, entre Pétain e De Gaulle tanto a
esquerda quanto a direita se dividiram de alto a baixo. Ninguém ignora que em
1914 os franceses mais germanófobos, mais enragés, eram os
da direita. Os socialistas chegaram a sabotar muitas vezes a resistência
nacional. Em 1938, muitas forças de esquerda colaboraram com os nazistas no
momento da invasão: [...] células comunistas, agentes soviéticos, esperançados
pelo acordo imoral entre Hitler e Stalin a propósito da
Polônia viam nos teutônicos autênticos aliados, e lhes abriam despudoradamente as portas. Mas outros esquerdistas,
movidos por algum resto de patriotismo, ou impressionados pelos slogans antinazistas que a propaganda esquerdista produzia abundantemente
poucos meses antes da invasão, receberam as tropas de Hitler
como se fossem as coortes de Satanás (ou, melhor, como receberiam as de S.
Miguel Arcanjo, pois que as coortes de Satanás nunca seriam mal recebidas por
nenhuma espécie de nenhuma espécie). Entre os direitistas, muitos se colocaram
do lado de Pétain, persuadidos de que Hitler representava a reação, encarnava a direita, e
facilitaria na França a derrubada das instituições democráticas. Outros
direitistas, contudo, reagiram violentamente: Hitler
não era senão um comunista de camisa parda, a colaboração com o inimigo era uma
indignidade. Vichy era sinônimo de
traição.
Daí o fato de que elementos da esquerda tanto
quanto da direita se ligaram contra Pétain nas
organizações de resistência, e, do outro lado, direitistas e esquerdistas
colaboraram ao lado de Pétain, mesmo depois da
invasão da Rússia pelos nazistas.
A colaboração cria hábitos de cordialidade, cria
simpatias, cria entrosamentos profundos. Pela
primeira vez depois de mais de cem anos, não havia mais na França uma esquerda,
nem uma direita. Havia colaboracionistas e anti-colaboracionistas.
* * *
Estes últimos venceram. Expulsaram da vida pública
os primeiros. O movimento de resistência subiu ao poder, como uma síntese de tudo
quanto lutara pela França em dias de vergonha e de desgraça. Punha-se então uma
grande questão: os aliados da véspera se dividiriam novamente em esquerda e
direita? Ou seria o caso de aproveitar a oportunidade, e tentar unir todos os
franceses, por cima das divisões partidárias, em um grande programa comum?
É muito curioso notar que o movimento de
resistência sendo essencialmente democrático, deveria ver na luta dos partidos
um bem, e não um mal, mas no caso concreto, desmentindo todos os postulados do
regime representativo que é essencialmente pluri-partidário,
os leaders
do movimento de resistência manifestaram profunda aversão ao regime de lutas de
partido, e apontaram na união nacional o sumo bem. O sumo bem, sim, a expressão
não é forte demais. Com efeito, os jornalistas e escritores que se fizeram
corifeus da união dos partidos não se limitavam a apresentar tal união como um
expediente transitório imposto pelas dificuldades do momento, mas como um ideal
de uma nova ordem de coisas, o início de uma era nova na História da França.
Claro está que esse programa de união apresentava
dificuldade teóricas e práticas imensas. Primeiramente, trazia em si o germe de
uma contradição essencial. A tendência para o partido único, ou para o
cancelamento de todos os partidos, era tipicamente fascista. Como justificá-la
como ideal de luta dos heróis da resistência anti-nazista?
Em segundo lugar, no que consistia concretamente esse
programa supra-partidário a respeito do qual poderiam
concordar homens que pensam ponto por ponto o contrário uns dos outros, como os
comunistas e os monarquistas da vieille roche dos quais muitos também eram partidários de De Gaulle. Este ideal se apresentava não apenas como
impreciso e perigoso, mas francamente como quimérico. Cheirava a manobra política.
Por fim, o hábito multisecular de luta entre direita
e esquerda não se poderia eliminar da noite para o dia. Como habituar homens
que cresceram na atmosfera da luta contra o "outro lado" a ver nesse
"outro lado" apenas aliados? Enquanto o inimigo ocupava o solo, a
colaboração entre esquerdistas e direitistas fora possível. Mas, fatalmente, a
vida normal traria o retorno de muitas coisas antigas, e com elas a atmosfera
de colaboração fatalmente se dissiparia.
Diante disto, os leaders da resistência tomaram
uma atitude intermediária. Os partidos se reconstituíram mais ou menos como
antes da guerra. Entre eles apareceu um inteiramente novo, o M.R.P. Mas todos
resolveram colaborar, esperando que nessa colaboração exercida em um ambiente
tranqüilo, aos poucos a reminiscência das antigas divisões se apagasse, os
franceses se habituassem à paz política na vida civil e normal, e da
colaboração nascesse - com os atritos e as concessões recíprocas impostas pelo
convívio pacífico quotidiano - uma mentalidade e um programa comum. Este o
sentido mais profundo da colaboração entre os socialistas, comunistas e
partidários do M. R. P.
O êxito desta política dependia de quatro fatores:
a) a atitude dos católicos intransigentes; b) a atitude de Moscou; c) o desenvolvimento
da luta esquerda-direita nos outros países da Europa,
que poderia criar na França reflexos inadequados à conciliação interna; d) a
atitude de De Gaulle.
De Gaulle acaba de se definir. Vejamos no próximo
artigo as conseqüências que teve esta definição no modo de agir dos outros
fatores.