Plinio Corrêa de Oliveira
Carta ao novo Bispo Auxiliar
Legionário, n.° 780, 20 de julho de 1947 |
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Exmo. Revmo. Sr. Bispo, São Paulo está se preparando, neste instante, para assistir a sagração episcopal de V. Excia. Revma. Fá-lo também o Legionário, e nos momentos de raro e fatigado lazer, que nos deixam as ocupações de todos os dias, providenciamos febrilmente a matéria desta edição, em que prestamos homenagem a V. Excia., em sua pessoa e na de seu santo padroeiro. Confesso, contudo, que, enquanto assentamos medidas, combinamos planos, realizamos o trabalho, meu pensamento insiste a todo momento em se desprender da tarefa que tenho diante de mim, para se fixar na pessoa de V. Excia., e nos instantes sagrados que V. Excia. vai viver quando baixar sobre V. Excia. a plenitude da Ordem, e começar a refulgir em sua pessoa, e em torno de sua pessoa, a luz esplêndida e terrível do Principado espiritual na Igreja de Deus. Quais serão os sentimentos de um Bispo da Santa Igreja, ao receber a investidura no governo das almas, ao tomar aos ombros o encargo honroso e oneroso do múnus apostólico? Quais serão, sobretudo, os seus sentimentos quando uma cerimônia destas se realiza numa quadra de incertezas e desgraças apocalípticas como a nossa? Na liturgia católica oriental, há uma fase do sacrifício, que o sacerdote se oculta por detrás de uma parede, para celebrar. A ação é tão sagrada, que se passa entre ele e Deus, num mistério que outros olhares não devem desvendar. O mesmo se dá com certos episódios espirituais e interiores da vida de um Ministro do Senhor. São tão santos e tão íntimos, que os fiéis os devem observar, não com os olhos do corpo, mas somente com os do coração, como acompanham o rito que se passa por detrás do iconostase. Neste espírito, é que penso desde já no momento em que V. Excia. receberá das mãos ungidas de nosso Cardeal Arcebispo a plenitude do Sacerdócio. Permita V. Excia. que eu o manifeste pelas colunas deste jornal. * * * Como me agradaria ver tudo róseo, risonho, promissor, em dia tão belo como este! Não seria "digno e justo, eqüitativo e salutar" que na data de hoje os céus e a terra cantassem pela voz da natureza, dos homens e da Igreja o esplendor e o gáudio da paz de Cristo no Reino de Cristo? Mas por mais que o queira, não consigo ver assim as coisas. Há mil anos, pelo menos, que não se sagra um Bispo na Santa Igreja em dias mais trágicos que os de hoje. Segundo me parece, não há nisto uma afirmação gratuita, provocada por pessimismo ou melancolia. O raciocínio mais frio, esquemático e impessoal conduz a esta conclusão. A sociedade humana se compõe de numerosos elementos, que são os povos e nações. Nas nações podemos distinguir o Estado e a sociedade. Na sociedade, podemos mais uma vez distinguir múltiplos elementos orgânicos, como as classes sociais, os grupamentos religiosos, intelectuais, profissionais, recreativos, etc. Analisando ainda mais a fundo o corpo social, divisamos outras células menores e mais fundamentais: são as famílias. Na família encontramos vários membros, pai, mãe, filhos. Cada um destes é uma pessoa humana e na pessoa humana podemos considerar de um lado o corpo e do outro lado a alma. Na alma, por fim, a filosofia nos ensina a existência de três potências diversas, inteligência, vontade, sensibilidade. Vista assim a humanidade, ela pode de algum modo ser comparada a um imenso mecanismo em que milhões de pequenas peças com movimento próprio e autônomo constituem peças maiores, que por sua vez se integram em outras ainda mais vastas, até formar as nações e a sociedade internacional. A perfeição do todo depende, evidentemente, da perfeição das partes. Ora, neste vasto todo qual a parte que não está enferma? Não posso negar que esteja enferma a alma humana: seria negar a própria evidência. Os sistemas ideológicos aloucados como o existencialismo ou o essencialismo, os sistemas políticos celerados como o nazismo e o comunismo, as modas extravagantes e ridículas, as psicoses de guerra, os costumes dissolutos e animalizados, tudo indica uma desordem total dentro da pessoa humana: o corpo procura dominar e asfixiar a alma, a inteligência detesta a verdade, a vontade odeia o bem, a sensibilidade aberra do belo. Daí na família, uma desagregação total. O laço conjugal é frouxo, precário, e pesa como um fardo sobre grande número de casais. A obediência dos filhos mingua a olhos vistos. O amor fraterno se volatiliza. A natalidade decai. Por sua vez, as classes, os partidos, as forças sociais têm aspirações imoderadas e opostas entre si. Se o Estado as reconhece como entidades livres e autônomas, provem uma desordem que ameaça degenerar em anarquia. Belo pretexto para que o Estado, também ele um monstro devorador, aniquile toda a vida social sob a laje sepulcral do regime totalitário. Que vejo diante de mim, em matéria de ordem internacional? Prefiro não continuar... Ainda assim, posso ser tentado de duvidar do quadro que a razão me apresenta. Procuro quem me orienta. Penso no Papa. Abro a Encíclica "Miserentissimus Redemptor" de Pio XI. "O espetáculo das desgraças contemporâneas é de tal maneira aflitivo que se poderia ver nele a aurora deste início de dores, que trará o homem do pecado, elevando-se contra tudo que é chamado Deus e recebe a honra de um culto... Não se pode verdadeiramente deixar de pensar que estão próximos os tempos preditos por Nosso Senhor, e por causa dos progressos crescentes da impiedade, a caridade de um grande número se esfriará". Pio XI escreveu estas palavras em 1928. Estamos em 1947, depois da maior tormenta da História e preparamos outra maior. O que ele diria hoje? * * * Assim, a humanidade é um imenso corpo que sofre a tortura apocalíptica em cada membro, em cada célula. E não podia deixar de ser assim. Se é apocalíptica a desordem, apocalíptica tem de ser a dor: a dor é filha necessária da desordem. Dor e desordem geram a ruína. Dor apocalíptica, desordem apocalíptica, ruína apocalíptica... Ruína da civilização cristã, da civilização por excelência, da civilização tout court (por excelência, n.d.c.). Ruína das almas que se perdem para sempre no torvelinho da desordem destes dias crepusculares. Se todo o pecado é uma desordem, e se esta desordem de nossos dias é, pelo que tem de mais entranhado e visceral, uma desordem de pecado; se entre o pecado e a perdição das almas há uma relação indiscutível, como não fremir de terror diante do número de almas que hoje se expõem à eterna ruína? Sofrimentos da alma e do corpo, ruína da civilização cristã, perdição eterna das almas, é forçoso, inevitável, certíssimo que estas coisas devem fazer vibrar as cordas mais sensíveis, mais interiores, mais possantes, de um coração de Bispo. Penso nisto tudo, e vejo no momento em que o óleo santo escorrer sobre V. Excia., a prece de todos os que sofrem, todos os que se perdem, todos os que estertorem de angústia nas trevas e na confusão, subir até V. Excia., Príncipe e Pastor na Igreja de Deus. Ah, Sr. Bispo, se na alma de um simples leigo estas coisas tem uma tal repercussão, que eco encontram em uma alma de Pastor? Pode V. Excia. dizê-lo, mas penso que preferirá guardar tudo isto no segredo de seu coração. Não me engano, porém, imaginando que V. Excia. arde e se consome do desejo de multiplicar em todos os sentidos sua atividade, lamentando não possuir mil cabeças, mil braços, saúde de mil, o dia com mil horas de ação, para por toda a parte lutar, falar, enfim, agir segundo sua mente in Fide et Lenitate. Este desejo se concretizará em um anseio. É o de encontrar legiões de auxiliares. Não é bem certo que este anseio não abundará a V. Excia. por um instante sequer, no dia de hoje? A minha preparação para o dia de hoje, a preparação dos redatores do Legionário está feita. No momento em que V. Excia. for sagrado pelo nosso augusto Cardeal Arcebispo, pediremos que Nossa Senhora suscite em torno de V. Excia. um poderoso sopro do Espírito Santo, despertando às centenas, os apóstolos com espírito abrasador, arrasador e edificante que o vosso e nosso Padroeiro Grignion de Monfort descreveu na esplêndida oração pedindo missionários. São estes os nossos votos de felicidade. Reze V. Excia. por nós, Sr. Bispo, e dê-nos sua preciosa bênção para que possamos ser, nesta falange, soldados obscuros mas prontos para todas as lutas e sacrifícios. |