Plinio Corrêa de Oliveira

 

Uma obra benemérita

 

 

 

 

 

 

Legionário, N.º 757, 9 de fevereiro de 1947

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Já tenho escrito mais de um artigo a pedido de instituições de benemerência. Poucas vezes, porém, tive ocasião de o fazer com tanta simpatia e empenho quanto hoje que escreverei em favor de uma obra que nada me pediu.

Um grupo de senhoras de nossa sociedade vem trabalhando na sombra - há dez anos já - em favor do que, na tradição da caridade cristã, se chama a "pobreza envergonhada". Nada há de firme e estável neste mundo e as pessoas mais educadas, dignas, prósperas, podem ser atiradas de um momento para outro ao arenal sem fundo das complicações econômicas e da penúria. Com uma tradição a manter, um nome por que zelar, não podem apelar para a caridade pública com o desembaraço de um pobre qualquer. Não há falso orgulho neste retraimento. Há apenas pundonor e dignidade. Como estes sentimentos são, hoje, de uma alarmante raridade, é possível que nem todos o compreendam, e não percebam o que torna a "pobreza envergonhada" digna de especial simpatia, e vejam orgulho onde há dignidade. Mas a Igreja, que é a mestra infalível da verdade e da moral, não só aprova o retraimento discreto e nobre dos chamados "pobres envergonhados", mas condoída especialmente de seus padecimentos, sempre multiplicou os recursos de sua industriosa caridade, para os socorrer sem os melindrar. São Vicente de Paulo, por exemplo, o vulto mais conhecido de toda a epopéia de caridade destes 20 séculos de civilização cristã, se assinalou pela delicadeza com que respeitava a obscuridade voluntária dos numerosos nobres de seu tempo reduzidos à penúria pela guerra civil, e pela extensão surpreendente dos recursos com que os beneficiava.

Como se vê, o zelo especial para com a pobreza envergonhada é muito antigo na Igreja, e foi um raro senso de caridade católica que levou essas damas do "Centro de Cultura e Ação Social" a se dedicarem a uma tal obra.

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Não será supérfluo acrescentar que, se trabalharmos por que esta obra seja cada vez mais compreendida, estaremos concorrendo para fazer um grande bem, não só às pessoas que forem socorridas, como ainda ao público em geral.

Com efeito, estamos em uma época em que o dinheiro está valendo cada vez mais, e todo o resto vale cada vez menos. Tradição, linha moral, competência, o que vale isto, ao lado do prestígio de uma Cadillac ou de uma Packard? O que importa que estes carros de triunfo de aço e de vidro hajam sido adquiridos à custa de negociatas escusas? O fato concreto é o fato concreto, e pesa no homem de nossos dias. E muito mais vale ao rico o esplendor do seu luxo, do que ao pobre o brilho de seu nome honesto. A riqueza é sempre uma honra ainda que adquirida pelos métodos mais escusos. E a pobreza sempre uma vergonha, mesmo quando derivada, não do ócio, nem do jogo, nem da delapidação, mas de vicissitudes inevitáveis, de que nossa época é fecunda. É este o estado de espírito monstruoso a que chegamos.

Ensinar nossa "geração" a respeitar algo no pobre - um nome honrado, uma educação de escol, a glória do infortúnio, a suprema dignidade do batismo - é fazer-lhe um beneficio inestimável. Uma pessoa que aprenda no exercício da caridade a respeitar a dor, a virtude,  mérito pessoal mesmo no pobre, lucra só com isto mais do que o pobre a quem beneficia.

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Será preciso acrescentar que em São Paulo esta obra é terrivelmente necessária? Tivemos outrora, em nosso Estado, uma classe dirigente cheia de tradições cristãs, em que se praticava e honrava, com religião, o pundonor doméstico das damas, e a honra cívica dos homens. À operosidade das velhas estirpes paulistas se deve a formação inicial de nossa riqueza: foram eles que fizeram as bandeiras, e depois "fizeram" a era do café. Tiveram seus defeitos, e não pequenos. Mas até o fim, souberam conservar honrados os seus nomes. Foi muito raro que algum de seus membros tivesse entrado para a caudal dos especuladores de negócios suspeitos, dos manipuladores de lucros ilícitos, os sanguessugas do povo no regime das altas e da baixas. Em parte por isto, muitos e muitos, perdida a fortuna na crise do café, não souberam reerguer-se. E enquanto varias destas estirpes tradicionais,desambientadas de sua condição natural e primitiva, vegetam na precária mediania de uma vida obscura e cheia de saudades, outros rolam mais fundo pelo abismo da verdadeira miséria. Relativamente poucas são as que conseguiram conservar-se em seu nível econômico antigo.

Alegrem-se com isto, se quiserem, os demagogos e os petroleiros de todas as tonalidades. Por mim, acho que seria muito difícil demonstrar que o povo lucrou nesta substituição de classes dirigentes, passando da hegemonia de homens probos, trabalhadores e comedidos nos lucros, para a direção de homens desconhecidos, de uma sede de dinheiro inextinguível, e de uma total indiferença para com os interesses coletivos. De uma indiferença tão absoluta e tão escandalosa, que au vu et au su de todo o mundo, nossa atual alta de preços tem como causa fundamental a ganância destes profitteurs de guerres. Ganância que se tornou tão onipotente que nem os governos a conseguem jugular.

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Há algum tempo atrás, o governo federal atribuiu uma pensão a descendentes de um titular e marechal do Império, caídos na miséria. Toda a imprensa aplaudiu o gesto. A gratidão nacional não podia sofrer que os honrados descendentes de um grande benemérito sofressem sob a indiferença geral uma pobreza originada no desprendimento de seu ilustre ancestral. Pouco depois, o Estado atribuiu outra pensão, em condições idênticas, a descendentes de um Presidente da República, falecido na pobreza graças a sua honestidade proverbial. E a imprensa elogiou igualmente o ato. Mas os beneméritos da Pátria não são somente marechais e presidentes. São todos aqueles que concorrem de modo útil, indivíduos ou famílias, para a manutenção da moralidade pública, da riqueza nacional, o esplendor e progresso da civilização. Muito explicável é, pois, que a caridade particular se encarregue de socorrer os descendentes das famílias que concorreram para a grandeza do país.

Mas, dirá alguém, que interesse merecem estas estirpes decadentes? Não é melhor que desapareçam de vez estes "fins de raça"?

De onde tirou o objetante que pobreza é sinônimo de decadência? Um exemplo mostrará o contrário. Houve uma estirpe real que chegou a tal "decadência", que seus membros ficaram reduzidos a ofícios manuais. Entre outros, um deles era carpinteiro. Deus abençoou o lar deste carpinteiro, e de sua Esposa nasceu Jesus Cristo. Quem ousaria dizer que São José, Nossa Senhora, eram meros "fins de raça"?

Leão XIII designou São José como patrono de todos os que vivem na "pobreza envergonhada". O exemplo deste celeste Patrono mostra bem quanto se pode esperar das estirpes que nossos biologistas de água doce, eivados do nazismo, qualificam sumariamente de raças em decadência.

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É bem evidente que a única modalidade de pobreza envergonhada não é a que acaba de aludir. Há nascidos de famílias sem passado mas dignas entre funcionários públicos modestos, entre viuvas e órfãos vivendo de rendas de casas reduzidas a zero pela imbecilidade (é o termo, e não há outro possível) da atual legislação, etc., muitos pobres, respeitáveis, a socorrer.

Esta esmola se dá sem a recompensa da inauguração de bustos solenes, e não é das que justificarão em vistoso salão de atos o retrato a óleo de um rotundo benfeitor. É uma obra que se fará na sombra, para socorrer a quem nem sequer pode publicar ou contar o benefício recebido, e na qual se pratica exemplarmente o preceito divino: que a mão esquerda ignore o que faz a mão direita.

Merece, pois, o máximo apoio a obra das ilustres damas do “Centro de Cultura e Ação Social”.


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