Lembro-me ainda da melancolia dos últimos momentos
que passei em companhia do Pe. Sigaud, antes de sua partida para a Europa. Estávamos no Rio,
para onde me havia levado o desejo de aproveitar por mais alguns dias o seu
convívio. Um assunto importante
forçou-me, todavia, a regressar a São Paulo antes que o “Cabo de Buena
Esperanza” rumasse para a Espanha. O transatlântico espanhol adiara, por sua
vez, a partida, e o Pe. Sigaud decidiu aproveitar estes dias complementares,
com que contava, para dizer um último adeus aos irmãos de hábito de Juiz de
Fora. Combinamos que eu regressaria ao Rio para o rever, ainda
antes de seguir ele viagem. Mas a coisa parecia incerta por mil embaraços do
momento. E, assim, quando eu acompanhei o Pe. Sigaud até o ponto de partida dos
autos-locação para Juiz de Fora, tínhamos ambos o pressentimento de que
provavelmente não nos encontraríamos mais. Foi o que efetivamente sucedeu. Não
pude voltar ao Rio, nem sequer consegui uma ligação interurbana para lhe falar
ainda uma vez. O último contato que tive com o Pe. Sigaud foi, pois, no
ambiente vulgar, movimentado e desagradável de uma ruela próxima à Igreja de
São Francisco de Paula, de onde partem os autos para o sul de Minas. E foi no
grande abraço que dele recebi naquele instante, que me ficou toda a recordação
desta triste despedida.
* * *
Não me lembro do nome da ruela. Lembro-me, porém,
do hotel em cujo hall os passageiros
esperavam a hora de saída dos autos. Não creio que o dono daquele
estabelecimento me queira mal por minha franqueza, mas tenho visto muito pouca
coisa tão pouco atraente. O que chamei hall
é um vasto armazém quadrangular, inteiramente aberto para a rua. Colunetas
arcaicas sustentam um teto alto, ao qual aderem sedimentos de poeira de todas
as eras históricas da cidade. De um dos lados, uma escada conduz o hóspede ao
sobrado. Suponho que ela deve ranger terrivelmente de cansaço, ao prestar este
serviço, porque a velhice lhe tirou a cor, e quase lhe modificou a forma. Dois
balcões semi-novos, mas que parecem berrantemente modernos no ambiente, servem
para informações. Uns bancos de talhe mais ou menos recente, mas patinados pelo
uso como se fossem centenários, servem a alguns passageiros que esperam com um
olhar entediado e vago. Mas os bancos são pequenos, e os passageiros que
sobram, formigam de todos os lados. Falam. Comem balas, fumam, batem com os pés
no chão de impaciência, caminham de um lado para o outro, e de quando em quando
algum deles entra em sobressalto: é que se esqueceu de fiscalizar a bagagem que
está atirada a algum canto, ou o precioso guarda-chuva perigosamente exposto
ali mesmo, na grade, à cobiça atrevida dos transeuntes de bom gosto. Não sei
porque, tudo isto me parecia ter um forte ar de família com nossa Estação do
Norte. É o misterioso e sutil cachet
da Central do Brasil que se nota em um e
outro lugar. De que maneira chegou até aí a terrível influência da Central? Só
um inquérito o poderia dizer. Se eu devesse orientar o inquérito, eu alertaria
todas as minhas desconfianças na direção dos limpadores: devem ser os mesmos em
um e outro lugar. Ou, mais provavelmente, quando os encarregados da limpeza se
aposentam no hotel, são engajados pela Central. Deve estar nisto, a explicação
do mistério.
Se o dono do hotel ler estas linhas, repito, não me
queira mal por elas. Eu tive de tomar contato com todos estes esplendores, num
momento de grande melancolia. Pairava sobre mim a tristeza da perda do meu José
Gustavo. E agora era o pesar de mais uma separação. Detesto
viagens de automóvel, detesto aglomerações de gente que vai e vem, detesto a
Estação do Norte e o sistema de limpeza da EFCB. Pois apesar de tudo isto,
fiquei querendo bem ao seu hotel, e sempre que tiver de passar diante dele o
olharei com curiosidade e simpatia. É que não poderei deixar de refletir jamais
que no momento preciso em que o Pe. Sigaud e eu nos abraçávamos comovidos,
pensando que talvez fosse esta a última vez, a Providência Divina tinha vistas
muito diferentes e preparava para nós dois uma grande satisfação. Simpático
hotel de tão amargas e amáveis recordações, jamais me recordarei sem comoção,
do que significas para o LEGIONÁRIO.
* * *
Quando penso nestas tristezas de ontem, e nestas
alegrias de hoje, como não me lembrar de outro quadro, aliás diametralmente
diverso, que me ficou na memória, ligado àquela viagem ao Rio?
Outra rua de que no momento não me lembro o nome,
rua residencial e recolhida, com algumas casas de aspecto agradável, e bem
ajardinadas, e um ou dois pequenos e confortáveis prédios de apartamento. O
ambiente distinto e familiar deste recanto da cidade empresta aos próprios
edifícios de apartamento um quê de casas tradicionais, muito em contraste com a
brutalidade arrogante dos prédios congêneres de Copacabana. Encontro-me em um desses apartamentos, e converso com
uma senhora. Coisa rara, hoje em dia, em
nossas grandes cidades, nas quais pululam
cada vez mais numerosos os homens e mulheres, e rareiam sempre mais os senhores
e senhoras. Por exemplo, jamais me resignarei a designar com estes
respeitáveis títulos os velhotes gaiteiros e as girls fanadas que representam nas praias a comédia de sua juventude
septuagenária. Oh, as velhas pagãs de
nossos dias: cabelos azuis rigorosamente colados junto às têmporas; grandes
jóias vistosas, daquelas de que as lojas americanas são férteis, isto é, grandes
balangandãs de carregação, para a senectude jovial das crianças de mais de
sessenta anos; grandes braços à mostra, um cliquetis
de pulseiras superabundantes, voz estridentes, unhas roxas de tão pintadas,
cigarrinho, piteirona, saias curtas, sapatos sport. De meias, não falemos. Um
tremendo esforço para encobrir o que a idade tem de fanado, com o berreiro das
cores, dos gritos dos gestos e das formas. Não é esta a única modalidade do
gênero. Há outro tipo de velha pagã:
é a desiludida. Relaxamento completo,
abandono de si, vergonha de uma velhice que já não consegue encobrir. Conheci
uma assim, que era copeira: cabelos cortados a escova de dentes, rosto e corpo
mirrados pelo tempo, sapatos sport,
nenhum traço de faceirice: tudo era calculado para lavar, enceirar, limpar e
servir mais à vontade. Um visível e
amargo desprezo de si. Notei com surpresa que ela era a própria mãe da dona
do hotel. Esta última jogava comodamente bridge,
a um canto do terraço, enquanto a velhota, aos saltinhos, servia os hóspedes retardatários,
e achava tudo muito natural. Tinha-se a impressão de que ela caçoava de si
mesma. Pobre coitada!
Por que falei nestes tipos hoje tão freqüentes? Não
sei bem; a alegria é naturalmente loquaz. Em qualquer caso, pode-se compreender
à vista disto, o alto apreço que eu dava a esta oportunidade hoje rara, de
conhecer mais uma autêntica e veneranda
senhora.
Preciso dizer quem era
esta dama? Preciso dizer que conversávamos sobre a dor da separação que a ambos
nos fazia sofrer? Preciso acrescentar que a contemplação do que ela sofria, de
quanto ela sofria, de como ela sofria, me edificou, me enlevou, me encheu de
veneração? Nunca vi Mãe que oferecesse
seu filho com espírito mais sobrenatural, embora com tão sentida dor. Fora,
a grande metrópole vivia, suava, pecava. De mim para mim, pensei no valor expiatório deste sereno sacrifício. Os instantes
que passei naquele apartamento foram inesquecíveis para mim.
Quantas vezes pensei depois disto, nesta
genuína e grande dama cristã. E que especial inflexão de alegria teve o seu
Magníficat, quando me lembrei do
júbilo que naquele momento lhe deveria inundar o coração!
Perdoe-me ela se
levantei indiscretamente o véu de seu recolhimento. Todos os leitores de
"Legionário" são amigos do Pe.
Sigaud, e todos eles terão pensado em sua
veneranda Mãe com respeito e carinhosa veneração nestes dias. Estou certo
de que minhas palavras constituem para
ela uma homenagem a que todos se associam.
* * *
Penso também na vasta e heteróclita família dos
amigos do Pe. Sigaud.
São tantos que poderiam constituir uma sociedade, a
"Sociedade dos Amigos do Pe. Sigaud", diríamos se as honras do
Episcopado não o colocassem acima das expansões de nosso bom humor.
Há de tudo, nesta vasta sociedade: irmãos de
hábito, como o Pe. Caio Castro e o Pe. Otto Popp, a risonha e
ruidosa brigada dos meus amigos do LEGIONÁRIO, sacerdotes de todas as Dioceses,
de todas as Ordens ou Congregações. E seria indispensável mencionar ainda as
falanges da JEC, sem as quais, o quadro estaria
irremediavelmente incompleto.
A alegria de toda esta multidão foi rápida e
expansiva como a deflagração de pólvora. E foi
como um frêmito de alegria e de esperança, que transportada de mil modos
por todos eles, a grande notícia
circulou: o Pe. Sigaud voltará ao Brasil
como Bispo de Jacarezinho.
Simpático e benemérito Jacaré, que depois de ter
tragado um Vigário Geral, o restituiu para bem perto de nós como fez a
prestadia baleia de Jonas, não junto do mar mas junto ao formoso salto de
Piracicaba. Simpático e amável jacaré que, agora perseverante em sua
gentileza devora nas orlas hispânicas o Pe. Sigaud e o traz novamente para o
solo brasileiro.