Legionário, Nº 745, 17 de novembro de 1946

Gentilezas de um amável jacaré, ou reflexões numa hora de alegria

Lembro-me ainda da melancolia dos últimos momentos que passei em companhia do Pe. Sigaud, antes de sua partida para a Europa. Estávamos no Rio, para onde me havia levado o desejo de aproveitar por mais alguns dias o seu convívio.  Um assunto importante forçou-me, todavia, a regressar a São Paulo antes que o “Cabo de Buena Esperanza” rumasse para a Espanha. O transatlântico espanhol adiara, por sua vez, a partida, e o Pe. Sigaud decidiu aproveitar estes dias complementares, com que contava, para dizer um último adeus aos irmãos de hábito de Juiz de Fora. Combinamos que eu regressaria ao Rio para o rever, ainda antes de seguir ele viagem. Mas a coisa parecia incerta por mil embaraços do momento. E, assim, quando eu acompanhei o Pe. Sigaud até o ponto de partida dos autos-locação para Juiz de Fora, tínhamos ambos o pressentimento de que provavelmente não nos encontraríamos mais. Foi o que efetivamente sucedeu. Não pude voltar ao Rio, nem sequer consegui uma ligação interurbana para lhe falar ainda uma vez. O último contato que tive com o Pe. Sigaud foi, pois, no ambiente vulgar, movimentado e desagradável de uma ruela próxima à Igreja de São Francisco de Paula, de onde partem os autos para o sul de Minas. E foi no grande abraço que dele recebi naquele instante, que me ficou toda a recordação desta triste despedida.

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Não me lembro do nome da ruela. Lembro-me, porém, do hotel em cujo hall os passageiros esperavam a hora de saída dos autos. Não creio que o dono daquele estabelecimento me queira mal por minha franqueza, mas tenho visto muito pouca coisa tão pouco atraente. O que chamei hall é um vasto armazém quadrangular, inteiramente aberto para a rua. Colunetas arcaicas sustentam um teto alto, ao qual aderem sedimentos de poeira de todas as eras históricas da cidade. De um dos lados, uma escada conduz o hóspede ao sobrado. Suponho que ela deve ranger terrivelmente de cansaço, ao prestar este serviço, porque a velhice lhe tirou a cor, e quase lhe modificou a forma. Dois balcões semi-novos, mas que parecem berrantemente modernos no ambiente, servem para informações. Uns bancos de talhe mais ou menos recente, mas patinados pelo uso como se fossem centenários, servem a alguns passageiros que esperam com um olhar entediado e vago. Mas os bancos são pequenos, e os passageiros que sobram, formigam de todos os lados. Falam. Comem balas, fumam, batem com os pés no chão de impaciência, caminham de um lado para o outro, e de quando em quando algum deles entra em sobressalto: é que se esqueceu de fiscalizar a bagagem que está atirada a algum canto, ou o precioso guarda-chuva perigosamente exposto ali mesmo, na grade, à cobiça atrevida dos transeuntes de bom gosto. Não sei porque, tudo isto me parecia ter um forte ar de família com nossa Estação do Norte. É o misterioso e sutil cachet da Central do Brasil  que se nota em um e outro lugar. De que maneira chegou até aí a terrível influência da Central? Só um inquérito o poderia dizer. Se eu devesse orientar o inquérito, eu alertaria todas as minhas desconfianças na direção dos limpadores: devem ser os mesmos em um e outro lugar. Ou, mais provavelmente, quando os encarregados da limpeza se aposentam no hotel, são engajados pela Central. Deve estar nisto, a explicação do mistério.

Se o dono do hotel ler estas linhas, repito, não me queira mal por elas. Eu tive de tomar contato com todos estes esplendores, num momento de grande melancolia. Pairava sobre mim a tristeza da perda do meu José Gustavo. E agora era o pesar de mais uma separação. Detesto viagens de automóvel, detesto aglomerações de gente que vai e vem, detesto a Estação do Norte e o sistema de limpeza da EFCB. Pois apesar de tudo isto, fiquei querendo bem ao seu hotel, e sempre que tiver de passar diante dele o olharei com curiosidade e simpatia. É que não poderei deixar de refletir jamais que no momento preciso em que o Pe. Sigaud e eu nos abraçávamos comovidos, pensando que talvez fosse esta a última vez, a Providência Divina tinha vistas muito diferentes e preparava para nós dois uma grande satisfação. Simpático hotel de tão amargas e amáveis recordações, jamais me recordarei sem comoção, do que significas para o LEGIONÁRIO.

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Quando penso nestas tristezas de ontem, e nestas alegrias de hoje, como não me lembrar de outro quadro, aliás diametralmente diverso, que me ficou na memória, ligado àquela viagem ao Rio?

Outra rua de que no momento não me lembro o nome, rua residencial e recolhida, com algumas casas de aspecto agradável, e bem ajardinadas, e um ou dois pequenos e confortáveis prédios de apartamento. O ambiente distinto e familiar deste recanto da cidade empresta aos próprios edifícios de apartamento um quê de casas tradicionais, muito em contraste com a brutalidade arrogante dos prédios congêneres de Copacabana. Encontro-me em um desses apartamentos, e converso com uma senhora. Coisa rara, hoje em dia, em nossas grandes cidades, nas quais pululam cada vez mais numerosos os homens e mulheres, e rareiam sempre mais os senhores e senhoras. Por exemplo, jamais me resignarei a designar com estes respeitáveis títulos os velhotes gaiteiros e as girls fanadas que representam nas praias a comédia de sua juventude septuagenária. Oh, as velhas pagãs de nossos dias: cabelos azuis rigorosamente colados junto às têmporas; grandes jóias vistosas, daquelas de que as lojas americanas são férteis, isto é, grandes balangandãs de carregação, para a senectude jovial das crianças de mais de sessenta anos; grandes braços à mostra, um cliquetis de pulseiras superabundantes, voz estridentes, unhas roxas de tão pintadas, cigarrinho, piteirona, saias curtas, sapatos sport. De meias, não falemos. Um tremendo esforço para encobrir o que a idade tem de fanado, com o berreiro das cores, dos gritos dos gestos e das formas. Não é esta a única modalidade do gênero. Há outro tipo de velha pagã: é a desiludida. Relaxamento completo, abandono de si, vergonha de uma velhice que já não consegue encobrir. Conheci uma assim, que era copeira: cabelos cortados a escova de dentes, rosto e corpo mirrados pelo tempo, sapatos sport, nenhum traço de faceirice: tudo era calculado para lavar, enceirar, limpar e servir mais à vontade. Um visível e amargo desprezo de si. Notei com surpresa que ela era a própria mãe da dona do hotel. Esta última jogava comodamente bridge, a um canto do terraço, enquanto a velhota, aos saltinhos, servia os hóspedes retardatários, e achava tudo muito natural. Tinha-se a impressão de que ela caçoava de si mesma. Pobre coitada!

Por que falei nestes tipos hoje tão freqüentes? Não sei bem; a alegria é naturalmente loquaz. Em qualquer caso, pode-se compreender à vista disto, o alto apreço que eu dava a esta oportunidade hoje rara, de conhecer mais uma autêntica e veneranda senhora.

Eu tinha diante de mim uma figura genuína de grande dama cristã. Em todo o seu tempo deixara a marca indefinível de fundas dores, sofridas com grande nobreza, com imensa suavidade de alma. Olhos calmos, belos e tristonhos, penetrantes mas doces, inteligentes mas serenos. O porte, o gesto, o traje tinham a elegância singela, nobre e despreocupada que a verdadeira educação comunica ao vestuário humano. O timbre de voz afável, reservado, cheio de nuances, revelava um coração a um tempo forte e delicado. Pela janela entrava a jorros a claridade, que iluminava em certos momentos a cabeleira branca. Um reflexo prateado, confundindo-se com a suavidade do olhar, se difundia então por sua fisionomia. Toda a luz faz pensar em felicidade. A luz destes cabelos brancos fazia pensar na felicidade extraterrena. Era a grandeza da ancianidade cristã, santificada pelo mérito da maternidade, glorificada pela auréola discreta que os sofrimentos sofridos em união com Cristo, deixam em toda a alma, em todo o semblante justo. Muita dignidade, certa majestade diríamos mesmo. Não a majestade árdua, esforçada e duvidosa do dinheiro, mas a majestade única e suprema, que decorre da dignidade de Mãe, sentida e vivida até às últimas fibras de um coração nascido de nobre estirpe.

Preciso dizer quem era esta dama? Preciso dizer que conversávamos sobre a dor da separação que a ambos nos fazia sofrer? Preciso acrescentar que a contemplação do que ela sofria, de quanto ela sofria, de como ela sofria, me edificou, me enlevou, me encheu de veneração? Nunca vi Mãe que oferecesse seu filho com espírito mais sobrenatural, embora com tão sentida dor. Fora, a grande metrópole vivia, suava, pecava. De mim para mim, pensei no valor expiatório deste sereno sacrifício. Os instantes que passei naquele apartamento foram inesquecíveis para mim.

Quantas vezes pensei depois disto, nesta genuína e grande dama cristã. E que especial inflexão de alegria teve o seu Magníficat, quando me lembrei do júbilo que naquele momento lhe deveria inundar o coração!

Perdoe-me ela se levantei indiscretamente o véu de seu recolhimento. Todos os leitores de "Legionário" são amigos do Pe. Sigaud, e todos eles terão pensado em sua veneranda Mãe com respeito e carinhosa veneração nestes dias. Estou certo de que minhas palavras constituem para ela uma homenagem a que todos se associam.

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Penso também na vasta e heteróclita família dos amigos do Pe. Sigaud.

São tantos que poderiam constituir uma sociedade, a "Sociedade dos Amigos do Pe. Sigaud", diríamos se as honras do Episcopado não o colocassem acima das expansões de nosso bom humor.

Há de tudo, nesta vasta sociedade: irmãos de hábito, como o Pe. Caio Castro e o Pe. Otto Popp,  a risonha e ruidosa brigada dos meus amigos do LEGIONÁRIO, sacerdotes de todas as Dioceses, de todas as Ordens ou Congregações. E seria indispensável mencionar ainda as falanges da JEC, sem as quais, o quadro estaria  irremediavelmente incompleto.

A alegria de toda esta multidão foi rápida e expansiva como a deflagração de pólvora. E foi como um frêmito de alegria e de esperança, que transportada de mil modos por todos eles, a grande notícia circulou: o Pe. Sigaud voltará ao Brasil como Bispo de Jacarezinho.

Simpático e benemérito Jacaré, que depois de ter tragado um Vigário Geral, o restituiu para bem perto de nós como fez a prestadia baleia de Jonas, não junto do mar mas junto ao formoso salto de Piracicaba. Simpático e amável jacaré que, agora perseverante em sua gentileza devora nas orlas hispânicas o Pe. Sigaud e o traz novamente para o solo brasileiro.