Interrompemos em nossa edição anterior, as
considerações que vínhamos fazendo sobre as capelanias militares. Assim, não
será supérfluo que, no início deste artigo, resumamos o que já ficou dito sobre o assunto.
A Igreja
proíbe aos Clérigos e Religiosos - consagrados por sua vocação ao serviço de Deus -
que aceitem o mister das armas. Só
lhes é lícito derramar sangue em caso de legítima defesa. Esta regra não comporta nenhuma espécie de exceção, nem mesmo no caso
de uma guerra santa, de uma cruzada por exemplo, feita para defender a Cristandade, ou para assegurar a livre expansão
missionária nos países heréticos ou infiéis.
A Constituição de 1891 obrigava todos os
brasileiros ao serviço militar, não excetuando deste encargo nem mesmo os
Clérigos ou Religiosos. A deserção comum constituía crime. Quando, porém, era
provocada por motivos religiosos - seria o caso dos Clérigos ou membros de
Congregações, que se eximissem do serviço militar alegando seu estado religioso
- acarretava simplesmente a perda dos direitos de cidadania brasileira. Dado o estrito laicismo da Constituição de
91, não tivemos na I República capelanias militares. Assim, a missão do
Clérigo ou Religioso alistado nas fileiras do Exército era a de qualquer outro
soldado. Missão incompatível, pois, pelo menos em tempo de guerra, com os
deveres de consciência dos jovens candidatos ao estado sacerdotal ou religioso.
Em tempo de paz, se esta missão não obrigava o jovem seminarista a efundir
sangue humano, sujeitava-o entretanto a deveres absorventes, inteiramente
alheios ao ministério espiritual para que se preparava, e no cumprimento dos
quais sua vocação ficava exposta a risco manifesto. Tudo isto posto, torna-se
bem patente que a Constituição de 91
feria de frente os interesses da Santa Igreja. E, deste conflito entre as
leis canônicas e civis, ia surgindo inevitavelmente, uma situação injusta e
perigosa. Como a grande maioria dos
seminaristas ou religiosos declinava de prestar serviços no Exército, corríamos
o risco de ter, em futuro não muito remoto, numerosos dignitários eclesiásticos, altamente qualificados no
governo diocesano ou na direção de Ordens e Congregações... privados de cidadania brasileira.
Vivemos
em uma época de nacionalismo ardente. As leis restringem cada vez mais
o acesso dos estrangeiros a certas situações. O documento de quitação de
serviço militar se exige para um número sempre crescente de atos da vida civil.
Tudo isto, que é excelente na esfera puramente temporal, iria criar para a
Igreja e para o Estado uma situação difícil, em virtude de ficar a direção
espiritual do país confiada em boa parte a pessoas privadas de cidadania pela
lei.
E, do outro lado, esta educação era altamente
deseducativa. Com efeito, apontava à desconsideração pública Sacerdotes e Religiosos eminentes,
patriotas entre os que mais o sejam,
que se tinham subtraído à austera vida da caserna, não para gozar as
comodidades da vida civil, mas para
assentar praça em outro exército, em cuja militância, ninguém o pode negar, o
sacrifício e a austeridade de vida são tão pesados quanto possa suportar a
condição humana.
* * *
Considerando tudo isto, os constituintes de 1934, que romperam em parte com o laicismo cru de
seus antecessores de 91, estabeleceram
as capelanias militares, tornando possível a prestação do serviço militar,
por parte de Clérigos e Religiosos, sob
a forma de instrução especializada para a assistência espiritual dos militares
na paz e na guerra.
Salta aos olhos que estas disposições representavam
considerável vantagem, se comparadas às de 91. Assim, pois, todo o Brasil católico, sem exceção, bateu
palmas a tais medidas. Estava preparada pela legislação o terreno para que,
na primeira guerra em que o Brasil se empenhasse, -
essa guerra veio muito mais depressa do que se imaginava em 34 - nossos soldados pudessem ter o conforto
supremo da assistência espiritual, e nossos Sacerdotes tivessem a ventura e a glória de servir igualmente a
Deus e à Pátria, no campo da honra.
Não se
pense, porém, que esta situação é a ideal. A Igreja é imensamente ciosa de
sua própria dignidade, pois que, renunciando às honras e prerrogativas que lhe
vêm do fato de ser a única verdadeira Igreja de Deus, Ela parecia duvidar de
seu caráter divino; ou pelo menos, pareceria legitimar as dúvidas que terceiros
pudessem ter a este respeito. Assim, pois, tudo
quanto signifique um nivelamento entre Ela e as seitas heréticas, cismáticas ou
pagãs, em qualquer terreno, ou sob qualquer ponto de vista, constitui para Ela
motivo de constrangimento e vexame. A Igreja pode tolerar situações destas, no
interesse espiritual de seus filhos, sob a pressão de alguma coação física ou
moral. Mas Ela se sente, ombro a ombro com as outras seitas, na situação
moral penosa da mãe de família que, por qualquer circunstância imprevista,
fosse constrangida a se sentar ao lado de messalinas. A situação é
absolutamente esta, e não recuo diante da energia da comparação.
Assim, pois, se a situação criada pelos constituintes de 1934 já melhorava bem as
condições em que se encontrava a Igreja, tinha contudo um lado humilhante e
nocivo, conseqüência fatal do laicismo do Estado. Os capelães católicos
eram absolutamente equiparados aos de outras seitas e postos em uma
promiscuidade deprimente, com esses verdadeiros cavalheiros de aventura, que
são os hirsutos padres cismáticos, no untuoso convívio de pastores e rabinos,
esfregando-se diariamente em indivíduos que procuram fazer o triste papel de
subprodutos do Catolicismo, como os Srs. Carlos Duarte da Costa e Salomão Ferraz. Se um verdadeiro
católico sofre, e não pode deixar de sofrer, vendo os verdadeiros
Sacerdotes do Senhor assim confundidos e
nivelados com figuras em que o sacerdócio existe ou em estado de caricatura, ou
de falsificação, quanto mais há de sofrer com isto o próprio Sacerdote! E,
a fortiori, como há de sofrer com
isto o Sagrado Coração de Jesus!
Eu não chego a afirmar que, pelo menos nas
presentes condições, um Estado católico devesse negar aos soldados acatólicos
assistência espiritual de seu culto. Mas, enquanto a assistência espiritual
católica existisse de modo público, oficialmente instalada na organização do
Exército com todas as honras de direito, a assistência espiritual acatólica
deveria existir apenas como coisa
tolerada, inteiramente à margem da organização oficial do Exército, em estado,
se não semi-clandestino, inteiramente privado.
Ora, se os constituintes de 34 fizeram muito em um
sentido, em outro fizeram pouco. Porque, se é verdade que a situação por eles
criada foi muito melhor que a anterior, é certo também que muito ainda restava
a fazer.
Mas, como primeiro passo, não há dúvida que estava
bem.
* * *
Em 1937, perdemos terreno. A Carta constitucional silenciava sobre as
capelanias. De fato, porém, foram
elas admitidas durante a guerra.
Em 1946,
não perdemos terreno nem ganhamos. As capelanias foram novamente instauradas
pela constituição. Mas não ganhamos
terreno também, pois que o laicismo
continua a prejudicar o assunto.
Não vai
nisto censura. Não estamos dizendo que tivesse sido prudente pedir mais do que
o que se conseguiu.
Circunstâncias numerosas existem em nossa atmosfera
cívica e moral, que impediram a destruição completa de nosso laicismo. O mal não está em que tenhamos agido
levando em conta tais circunstâncias. O mal está em que tais circunstâncias
existam...
E porque existem, nosso zelo não deve estar
contente, senão quando as tivermos eliminado de todo em todo.