Legionário, Nº 744, 10 de novembro de 1946

AINDA AS CAPELANIAS MILITARES

Interrompemos em nossa edição anterior, as considerações que vínhamos fazendo sobre as capelanias militares. Assim, não será supérfluo que, no início deste artigo, resumamos o que já ficou dito sobre o assunto.

A Igreja proíbe aos Clérigos e Religiosos - consagrados por sua vocação ao serviço de Deus - que aceitem o mister das armas. Só lhes é lícito derramar sangue em caso de legítima defesa. Esta regra não comporta nenhuma espécie de exceção, nem mesmo no caso de uma guerra santa, de uma cruzada por exemplo, feita para defender a Cristandade, ou para assegurar a livre expansão missionária nos países heréticos ou infiéis.

A Constituição de 1891 obrigava todos os brasileiros ao serviço militar, não excetuando deste encargo nem mesmo os Clérigos ou Religiosos. A deserção comum constituía crime. Quando, porém, era provocada por motivos religiosos - seria o caso dos Clérigos ou membros de Congregações, que se eximissem do serviço militar alegando seu estado religioso - acarretava simplesmente a perda dos direitos de cidadania brasileira. Dado o estrito laicismo da Constituição de 91, não tivemos na I República capelanias militares. Assim, a missão do Clérigo ou Religioso alistado nas fileiras do Exército era a de qualquer outro soldado. Missão incompatível, pois, pelo menos em tempo de guerra, com os deveres de consciência dos jovens candidatos ao estado sacerdotal ou religioso. Em tempo de paz, se esta missão não obrigava o jovem seminarista a efundir sangue humano, sujeitava-o entretanto a deveres absorventes, inteiramente alheios ao ministério espiritual para que se preparava, e no cumprimento dos quais sua vocação ficava exposta a risco manifesto. Tudo isto posto, torna-se bem patente que a Constituição de 91 feria de frente os interesses da Santa Igreja. E, deste conflito entre as leis canônicas e civis, ia surgindo inevitavelmente, uma situação injusta e perigosa. Como a grande maioria dos seminaristas ou religiosos declinava de prestar serviços no Exército, corríamos o risco de ter, em futuro não muito remoto, numerosos dignitários eclesiásticos, altamente qualificados no governo diocesano ou na direção de Ordens e Congregações... privados de cidadania brasileira.

Vivemos em uma época de nacionalismo ardente. As leis restringem cada vez mais o acesso dos estrangeiros a certas situações. O documento de quitação de serviço militar se exige para um número sempre crescente de atos da vida civil. Tudo isto, que é excelente na esfera puramente temporal, iria criar para a Igreja e para o Estado uma situação difícil, em virtude de ficar a direção espiritual do país confiada em boa parte a pessoas privadas de cidadania pela lei.

E, do outro lado, esta educação era altamente deseducativa. Com efeito, apontava à desconsideração pública Sacerdotes e Religiosos eminentes, patriotas entre os que mais o sejam, que se tinham subtraído à austera vida da caserna, não para gozar as comodidades da vida civil, mas para assentar praça em outro exército, em cuja militância, ninguém o pode negar, o sacrifício e a austeridade de vida são tão pesados quanto possa suportar a condição humana.

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Considerando tudo isto, os constituintes de 1934, que romperam em parte com o laicismo cru de seus antecessores de 91, estabeleceram as capelanias militares, tornando possível a prestação do serviço militar, por parte de Clérigos e Religiosos, sob a forma de instrução especializada para a assistência espiritual dos militares na paz e na guerra.

Salta aos olhos que estas disposições representavam considerável vantagem, se comparadas às de 91. Assim, pois, todo o Brasil católico, sem exceção, bateu palmas a tais medidas. Estava preparada pela legislação o terreno para que, na primeira guerra em que o Brasil se empenhasse, - essa guerra veio muito mais depressa do que se imaginava em 34 - nossos soldados pudessem ter o conforto supremo da assistência espiritual, e nossos Sacerdotes tivessem a ventura e a glória de servir igualmente a Deus e à Pátria, no campo da honra.

Não se pense, porém, que esta situação é a ideal. A Igreja é imensamente ciosa de sua própria dignidade, pois que, renunciando às honras e prerrogativas que lhe vêm do fato de ser a única verdadeira Igreja de Deus, Ela parecia duvidar de seu caráter divino; ou pelo menos, pareceria legitimar as dúvidas que terceiros pudessem ter a este respeito. Assim, pois, tudo quanto signifique um nivelamento entre Ela e as seitas heréticas, cismáticas ou pagãs, em qualquer terreno, ou sob qualquer ponto de vista, constitui para Ela motivo de constrangimento e vexame. A Igreja pode tolerar situações destas, no interesse espiritual de seus filhos, sob a pressão de alguma coação física ou moral. Mas Ela se sente, ombro a ombro com as outras seitas, na situação moral penosa da mãe de família que, por qualquer circunstância imprevista, fosse constrangida a se sentar ao lado de messalinas. A situação é absolutamente esta, e não recuo diante da energia da comparação.

Assim, pois, se a situação criada pelos constituintes de 1934 já melhorava bem as condições em que se encontrava a Igreja, tinha contudo um lado humilhante e nocivo, conseqüência fatal do laicismo do Estado. Os capelães católicos eram absolutamente equiparados aos de outras seitas e postos em uma promiscuidade deprimente, com esses verdadeiros cavalheiros de aventura, que são os hirsutos padres cismáticos, no untuoso convívio de pastores e rabinos, esfregando-se diariamente em indivíduos que procuram fazer o triste papel de subprodutos do Catolicismo, como os Srs. Carlos Duarte da Costa e Salomão Ferraz. Se um verdadeiro católico sofre, e não pode deixar de sofrer, vendo os verdadeiros Sacerdotes  do Senhor assim confundidos e nivelados com figuras em que o sacerdócio existe ou em estado de caricatura, ou de falsificação, quanto mais há de sofrer com isto o próprio Sacerdote! E, a fortiori, como há de sofrer com isto o Sagrado Coração de Jesus!

Eu não chego a afirmar que, pelo menos nas presentes condições, um Estado católico devesse negar aos soldados acatólicos assistência espiritual de seu culto. Mas, enquanto a assistência espiritual católica existisse de modo público, oficialmente instalada na organização do Exército com todas as honras de direito, a assistência espiritual acatólica deveria existir apenas como  coisa tolerada, inteiramente à margem da organização oficial do Exército, em estado, se não semi-clandestino, inteiramente privado.

Ora, se os constituintes de 34 fizeram muito em um sentido, em outro fizeram pouco. Porque, se é verdade que a situação por eles criada foi muito melhor que a anterior, é certo também que muito ainda restava a fazer.

Mas, como primeiro passo, não há dúvida que estava bem.

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Em 1937, perdemos terreno. A Carta constitucional silenciava sobre as capelanias. De fato, porém, foram elas admitidas durante a guerra.

Em 1946, não perdemos terreno nem ganhamos. As capelanias foram novamente instauradas pela  constituição. Mas não ganhamos terreno também, pois que o laicismo continua a prejudicar o assunto.

Não vai nisto censura. Não estamos dizendo que tivesse sido prudente pedir mais do que o que se conseguiu.

Circunstâncias numerosas existem em nossa atmosfera cívica e moral, que impediram a destruição completa de nosso laicismo. O mal não está em que tenhamos agido levando em conta tais circunstâncias. O mal está em que tais circunstâncias existam...

E porque existem, nosso zelo não deve estar contente, senão quando as tivermos eliminado de todo em todo.