Retomamos hoje nossos comentários à nova Constituição,
interrompidos pela necessidade de fazer apreciações de momento sobre outros
assuntos relevantes da atualidade.
Trataremos, no presente artigo, da delicada questão do serviço militar dos
clérigos.
Demos antes de tudo o ponto de vista da Igreja.
Segundo as leis canônicas, os clérigos religiosos ou seculares, irmãos leigos
ou simples seminaristas, pelo próprio fato de estarem ligados ao serviço de
Deus, não podem ser obrigados a combater. Não se trata aí da preocupação de
subtrair os clérigos ou religiosos aos riscos da guerra. Ecclesia abhorret a sanguine,
a Igreja tem horror à efusão de sangue, e não quer que seus clérigos derramem
sangue humano, ainda mesmo em defesa da mais legítima das causas. O
princípio em que se inspira a Igreja é, pois, o da incompatibilidade entre o serviço de Deus, e o ofício de matar.
Afastando seus clérigos ou religiosos do ofício militar, a Igreja de certo modo
os submete a riscos maiores do que o dos simples soldados. Com efeito, o capelão militar ou o enfermeiro que se
introduz em um campo minado e devastado pela metralha, para ouvir a última
confissão dos moribundos e recolher os feridos, expõe-se neste ato tanto quanto o militar que avança contra o
inimigo. Não há, pois, nenhum egoísmo de casta ou classe, no modo por que a
Igreja vê o assunto. Move-a apenas o princípio
geral de que o religioso ou o sacerdote jamais pode derramar sangue humano.
Este princípio comporta apenas uma exceção: a legítima defesa contra a agressão
iminente e inevitável.
A Igreja,
se afasta o sacerdote da carreira das armas, não o afasta do campo de batalha: dá-lhe, apenas, neste
campo, funções especiais. Este procedimento é muito fácil de compreender. Se o
analisarmos do ponto de vista patriótico, perceberemos facilmente que se
poderia formular a respeito dele uma questão importante: nesta missão especial
em que o confina a Igreja, o sacerdote não é um homem perdido para a Pátria? Na
guerra, vale o soldado. O braço que não luta é um braço que não existe. A Igreja não priva a Pátria do braço do
sacerdote, quando o obriga a empunhar o rosário, e não o fuzil, no campo da
luta?
Para não considerar o problema senão em um dos seus
aspectos, poderemos responder prontamente que o militar que combate com Fé, não vê na morte o fim de todas as coisas
mas o início de outra vida, que sente
a confiança de que a assistência do sacerdote lhe assegurará até o último
momento a graça de Deus, combate com um denodo muito maior do que aquele que
não crê senão nesta vida, ou,
crendo numa vida futura, receia
entretanto de ingressar nela, porque não
tem ao seu lado um sacerdote que o reconcilie com Deus.
Assim, pois, a
assistência religiosa às forças armadas é elemento essencial para a eficácia
das tropas. Este princípio é tão generalizado que não há no mundo uma só
nação civilizada que não timore em ter em seus exércitos capelães militares.
O capelão
é,
pois, figura imprescindível da vida
militar, não só para atender aos
direitos de Deus e ao conforto
espiritual do soldado, mas para bem
servir os interesses da Pátria.
* * *
Tudo isto posto, nada mais fácil de conciliar do que os direitos e conveniências da
Igreja e do Estado. Na idade do serviço militar, o seminarista recebe toda
a instrução militar especializada que é necessária para o desempenho de suas
funções na vida de guerra. Ao mesmo tempo, adquire os conhecimentos teológicos
necessários para exercer bem as funções espirituais do capelão. Depois de
ordenado, o seminarista será um homem completo, para a Igreja e para a Pátria,
na paz e na guerra.
Há anos atrás, a realização deste programa poderia
acarretar algumas dificuldades de ordem prática. Havia seminários em quase
todas as Dioceses. O seminarista seria forçado a deixar os seus estudos, para
se transferir para um estabelecimento militar especializado para capelães?
Interromperia então os seus estudos? A que risco ficaria exposta a sua vocação,
ao sair do ambiente propício do seminário? Hoje em dia, com a constituição dos
seminários centrais, o assunto ficou simplificado em larga medida, pelo menos
no que diz respeito ao clero secular. Desapareceram os seminários maiores das
várias dioceses, substituídos por grandes seminários
centrais. Nestes [não] seria impossível instalar, de colaboração com as
autoridades militares, um curso
especializado para futuros capelães. Seguindo este curso, os seminaristas
estariam quites com o serviço militar. E estaria tudo resolvido. Evidentemente, não tenho autoridade para
exprimir senão minha própria opinião. Mas penso que não haveria o menor obstáculo à constituição de cursos desta natureza
nos seminários, cursos estes que
poderiam atingir plena eficácia sem alterar em nada o regime de estudos e de
disciplina indispensáveis para a formação do seminarista.
* * *
Estas coisas são tão simples, que parece
surpreendente que nem todos as vejam assim.
O positivismo da primeira república consignou
entretanto na constituição de 91 um princípio detestável: o serviço militar é
obrigatório para todos os brasileiros, e os que alegarem crença religiosa para
se furtar a ele perdem os direitos de cidadania.
Em outros termos, os seminaristas e religiosos
ficaram sujeitos ao serviço militar comum, em casernas, expostos portanto a
todas as ocasiões para a perda de sua vocação. A vida sacerdotal exige tantos sacrifícios, que facilmente a
fraqueza humana se apavora na previsão deles. Assim, a vocação do seminarista
precisa ser defendida ciosamente. A Igreja receia para o seminarista a própria
vida de família, e por isto quer que ele resida no próprio seminário. É fácil
de compreender que ela também receie, para a sua vocação, a vida militar.
Assim, na iminência de expor sua vocação a risco
grave, muito seminarista, para ser fiel ao chamado de Deus, deixou de prestar
serviço militar. Nossa Constituição o puniu então, injustamente, com a perda
dos direitos políticos.
A injustiça estava em que, podendo e devendo as
leis, até mesmo no interesse do próprio Estado, dispensar aos seminaristas uma
formação especializada para capelães, exigia deles uma ruptura com o ambiente e
as preocupações do seminário, para o formar para a guerra, como outro soldado
qualquer, para o formar portanto para uma função que em consciência ele não
poderia exercer.
O mal poderia ter ido mais longe, se tivéssemos
tido efetivamente uma grande participação na guerra de 18. Com efeito, os
sacerdotes seriam convocados para combater como outro soldado qualquer. E, se
recusassem, ficariam com a pecha de haver renunciado ao nobre título de cidadão
brasileiro, para não ir à guerra. Porque o positivismo imperante vedava a
admissão de capelães no Exército brasileiro.
O mal era grande em si mesmo. E maior se tornava
pelo efeito moral proveniente de existir em nossa lei fundamental um dispositivo
tão rico em princípios injuriosos à religião.
Em nosso próximo artigo, veremos que princípios são
estes.