O “Legionário" Nº: 742,   27-10 -1946

AINDA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Retomamos hoje nossos comentários à nova Constituição, interrompidos pela necessidade de fazer apreciações de momento sobre outros assuntos relevantes da atualidade.

Trataremos, no presente artigo, da delicada questão do serviço militar dos clérigos.

Demos antes de tudo o ponto de vista da Igreja. Segundo as leis canônicas, os clérigos religiosos ou seculares, irmãos leigos ou simples seminaristas, pelo próprio fato de estarem ligados ao serviço de Deus, não podem ser obrigados a combater. Não se trata aí da preocupação de subtrair os clérigos ou religiosos aos riscos da guerra. Ecclesia abhorret a sanguine, a Igreja tem horror à efusão de sangue, e não quer que seus clérigos derramem sangue humano, ainda mesmo em defesa da mais legítima das causas. O princípio em que se inspira a Igreja é, pois, o da incompatibilidade entre o serviço de Deus, e o ofício de matar. Afastando seus clérigos ou religiosos do ofício militar, a Igreja de certo modo os submete a riscos maiores do que o dos simples soldados. Com efeito, o capelão militar ou o enfermeiro que se introduz em um campo minado e devastado pela metralha, para ouvir a última confissão dos moribundos e recolher os feridos, expõe-se neste ato tanto quanto o militar que avança contra o inimigo. Não há, pois, nenhum egoísmo de casta ou classe, no modo por que a Igreja vê o assunto. Move-a apenas o princípio geral de que o religioso ou o sacerdote jamais pode derramar sangue humano. Este princípio comporta apenas uma exceção: a legítima defesa contra a agressão iminente e inevitável.

A Igreja, se afasta o sacerdote da carreira das armas, não o afasta do campo de batalha: dá-lhe, apenas, neste campo, funções especiais. Este procedimento é muito fácil de compreender. Se o analisarmos do ponto de vista patriótico, perceberemos facilmente que se poderia formular a respeito dele uma questão importante: nesta missão especial em que o confina a Igreja, o sacerdote não é um homem perdido para a Pátria? Na guerra, vale o soldado. O braço que não luta é um braço que não existe. A Igreja não priva a Pátria do braço do sacerdote, quando o obriga a empunhar o rosário, e não o fuzil, no campo da luta?

Para não considerar o problema senão em um dos seus aspectos, poderemos responder prontamente que o militar que combate com Fé, não vê na morte o fim de todas as coisas mas o início de outra vida, que sente a confiança de que a assistência do sacerdote lhe assegurará até o último momento a graça de Deus, combate com um denodo muito maior do que aquele que não crê senão nesta vida, ou, crendo numa vida futura, receia entretanto de ingressar nela, porque não tem ao seu lado um sacerdote que o reconcilie com Deus.

Assim, pois, a assistência religiosa às forças armadas é elemento essencial para a eficácia das tropas. Este princípio é tão generalizado que não há no mundo uma só nação civilizada que não timore em ter em seus exércitos capelães militares.

O capelão é, pois, figura imprescindível da vida militar, não só para atender aos direitos de Deus e ao conforto espiritual do soldado, mas para bem servir os interesses da Pátria.

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Tudo isto posto, nada mais fácil de conciliar do que os direitos e conveniências da Igreja e do Estado. Na idade do serviço militar, o seminarista recebe toda a instrução militar especializada que é necessária para o desempenho de suas funções na vida de guerra. Ao mesmo tempo, adquire os conhecimentos teológicos necessários para exercer bem as funções espirituais do capelão. Depois de ordenado, o seminarista será um homem completo, para a Igreja e para a Pátria, na paz e na guerra.

Há anos atrás, a realização deste programa poderia acarretar algumas dificuldades de ordem prática. Havia seminários em quase todas as Dioceses. O seminarista seria forçado a deixar os seus estudos, para se transferir para um estabelecimento militar especializado para capelães? Interromperia então os seus estudos? A que risco ficaria exposta a sua vocação, ao sair do ambiente propício do seminário? Hoje em dia, com a constituição dos seminários centrais, o assunto ficou simplificado em larga medida, pelo menos no que diz respeito ao clero secular. Desapareceram os seminários maiores das várias dioceses, substituídos por grandes seminários centrais. Nestes [não] seria impossível instalar, de colaboração com as autoridades militares, um curso especializado para futuros capelães. Seguindo este curso, os seminaristas estariam quites com o serviço militar. E estaria tudo resolvido. Evidentemente, não tenho autoridade para exprimir senão minha própria opinião. Mas penso que não haveria o menor obstáculo à constituição de cursos desta natureza nos seminários, cursos estes que poderiam atingir plena eficácia sem alterar em nada o regime de estudos e de disciplina indispensáveis para a formação do seminarista.

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Estas coisas são tão simples, que parece surpreendente que nem todos as vejam assim.

O positivismo da primeira república consignou entretanto na constituição de 91 um princípio detestável: o serviço militar é obrigatório para todos os brasileiros, e os que alegarem crença religiosa para se furtar a ele perdem os direitos de cidadania.

Em outros termos, os seminaristas e religiosos ficaram sujeitos ao serviço militar comum, em casernas, expostos portanto a todas as ocasiões para a perda de sua vocação. A vida sacerdotal  exige tantos sacrifícios, que facilmente a fraqueza humana se apavora na previsão deles. Assim, a vocação do seminarista precisa ser defendida ciosamente. A Igreja receia para o seminarista a própria vida de família, e por isto quer que ele resida no próprio seminário. É fácil de compreender que ela também receie, para a sua vocação, a vida militar.

Assim, na iminência de expor sua vocação a risco grave, muito seminarista, para ser fiel ao chamado de Deus, deixou de prestar serviço militar. Nossa Constituição o puniu então, injustamente, com a perda dos direitos políticos.

A injustiça estava em que, podendo e devendo as leis, até mesmo no interesse do próprio Estado, dispensar aos seminaristas uma formação especializada para capelães, exigia deles uma ruptura com o ambiente e as preocupações do seminário, para o formar para a guerra, como outro soldado qualquer, para o formar portanto para uma função que em consciência ele não poderia exercer.

O mal poderia ter ido mais longe, se tivéssemos tido efetivamente uma grande participação na guerra de 18. Com efeito, os sacerdotes seriam convocados para combater como outro soldado qualquer. E, se recusassem, ficariam com a pecha de haver renunciado ao nobre título de cidadão brasileiro, para não ir à guerra. Porque o positivismo imperante vedava a admissão de capelães no Exército brasileiro.

O mal era grande em si mesmo. E maior se tornava pelo efeito moral proveniente de existir em nossa lei fundamental um dispositivo tão rico em princípios injuriosos à religião.

Em nosso próximo artigo, veremos que princípios são estes.