Legionário, Nš 738, 29 de setembro de 1946
Igreja e Estado
Vimos, no último artigo, que a Constituição de 1946 continua laica, mas de um laicismo mitigado, que bem pode representar um início de evolução para uma atitude mais conforme à doutrina da Igreja. Início de evolução um tanto lento, se quisermos: de 1934 a 1946, tudo mudou no Brasil e fora dele, exceto nossa posição religiosa oficial, que continua absolutamente a mesma. Se, treze anos depois de iniciada a evolução, ela ainda está na sua primeira etapa, é preciso reconhecer que tardaremos a chegar até o fim. Mas Deus é infinitamente paciente. Sejamos como Ele. Simplesmente, não percamos de vista o modo por que devemos contar com a paciência de Deus. Ela nos deve servir de incentivo para que não desanimemos na guerra que movemos a nossos defeitos. Não, porém, a que renunciemos a combater os erros em que caímos. Porque, neste caso, a confiança na infinita paciência de Deus deixaria de ser uma qualidade, para ser um defeito. Assim, pois, confiemos em Deus para que seja mais rápida de futuro a nossa evolução. Não durmamos, porém, à beira da estrada que leva à conversão integral, sob pretexto de que Deus nos espera...
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Nesta posição de sumo equilíbrio, sem recriminações injustas nem indulgências impregnadas mais de espírito "bonacheirão" do que de verdadeira e sadia caridade, prossigamos na análise da Constituição.
Vimos, no último artigo, que ela reconhece a Deus como supremo Protetor, não porém como autoridade em cujo Nome se promulga a lei. De outro lado, ela equipara todas as seitas à verdadeira Igreja, tomando perante esta e aquelas posição inteiramente eqüidistante (art. 31, II e III). Nisto, seguiu a péssima tradição de 1891 e 1934. Mas, em compensação, ela está longe de tratar a Religião com a indiferença olímpica dos constituintes da I República. E, assim, segue o exemplo louvável da carta de 1934. Mais ainda: ela dá (art. 31, V b), aos templos "de qualquer culto" plena isenção de impostos. Aqui caberia uma questão. Esta isenção abrange também as taxas? Pensamos que sim. Talvez fosse preferível que a Constituição, para obviar dúvidas, dissesse de vez "impostos e taxas". Outra dúvida, ainda, poderia ser formulada: as residências paroquiais ou conventuais anexas às igrejas ficam isentadas também? Ainda aqui, opinamos pela afirmativa, lamentando embora que não se tenha chegado a maior clareza nesta matéria, dado que a Constituição desceu a tantos pormenores de toda a espécie.
Beneficiará muito às Ordens e Congregações Religiosas, e a toda espécie de obras católicas, que as isenções deste artigo se tenham estendido também às "instituições de educação e de assistência social, desde que as suas rendas sejam aplicadas integralmente no país para os devidos fins". A intenção é muito simpática. Mas seria o caso de perguntar se um estabelecimento perderia a isenção de impostos pelo fato de destinar certa quota anual fixa para o óbolo de São Pedro. O ex-Bispo de Maura por certo opinará pela afirmativa. Isto entristeceria nossos corações de católicos: indiretamente, era o próprio princípio da unidade da Igreja, que sofreria um arranhão. E as Missões? E o sustento dos católicos perseguidos em outros países? Esperemos, contudo, que o bom senso de nossos juizes e administradores não leve a este extremo a interpretação deste texto constitucional que, sem dúvida, poderia ter sido mais bem redigido. No momento em que se incrementa a devoção ao Corpo Místico e universal de Jesus Cristo, qualquer nacionalismo tacanho não poderia deixar de contristar os verdadeiros fiéis, desde que visasse erguer barreiras à livre circulação da caridade cristã por todo o orbe.
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A Igreja é a tutora do direito natural. Tudo quando consolide dentro da sociedade civil a justiça e a moralidade é serviço prestado à Igreja. Por isto mesmo, não podemos deixar de louvar a presente Constituição pelo esmero com que cuida das garantias do Poder Judiciário. Esta era, a nosso ver, uma das lacunas mais sensíveis da Constituição de 1937. No regime que acaba de cessar, os juizes poderiam ser aposentados pelo Estado, com prejuízo de parte de seus vencimentos. Era o fim de sua carreira. Erro grave, a meu ver porque a independência do juiz é a garantia mais essencial da justiça. Na Constituição de 1946, os juizes são vitalícios, inamovíveis e têm vencimentos irredutíveis. Basta ter um pouco de amor ao direito natural, para aquilatar a inapreciável vantagem do restabelecimento das garantias judiciárias da Constituição de 1934.
Dentro da mesma ordem de idéias, também é precioso o princípio afirmado pela Constituição, da irretroatividade da lei. É outra grande norma de direito natural, outra grande e luminosa tradição de Civilização Cristã que se reata. E não há como não aplaudir calorosamente os nossos constituintes, por terem reatado o fio de toda a tradição legislativa brasileira que, a este propósito, foi cristalina e límpida desde o império.
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As capelanias militares foram mantidas (art. 141, § 9). Abre-se assim a porta para que os clérigos prestem serviço militar sob a forma de assistência religiosa. Duas grandes reivindicações, pois, que ficam de pé. Desde que haja boa vontade dos governantes, nenhum seminarista será forçado, pois a recusar a prestação do serviço militar, podendo ser considerado auxiliar de capelão. Mas, desde que tal boa vontade não exista (algo de mais mutável do que a boa vontade?), continua de pé a perda dos direitos civis para os que se recusarem ao exercício militar (art. 141, § 8), com a expressa declaração de que perderão neste caso também o direito de eleitor (art. 132 § 3)?
Ainda aí, a mesma moderações de conceitos se impõe. Aplaudimos o bem, que não é pouco. Abrimos vistas para um bem maior, de futuro. E este bem poderá vir de qualquer lei ordinária que, completando a que já existe, disponha claramente sobre o assunto.