Legionário, Nº 737, 22 de setembro de 1946

O Preâmbulo

No ato de promulgar a lei fundamental do país, os constituintes de 1946 invocam oficialmente a "proteção de Deus". Com isto, tomam posição, discretamente, em um problema ideológico delicado e importante. Segundo a doutrina católica, todo o poder público emana de Deus. Por isto, a nossa Constituição imperial começava com as palavras: "em nome da Santíssima Trindade". Como todo o poder vem de Deus, era muito justo que a lei básica do novo império fosse promulgada, não em nome dos homens, mas em nome do mesmo Deus. A proclamação da República acarretou a ascensão dos positivistas e liberais ao poder. Parecia a estes que o Estado deveria ser leigo, isto é, que não deveria ter qualquer posição oficial perante o problema religioso. A República não afirmava nem negava a existência de Deus: ignorava oficialmente o assunto. Por isto mesmo, a Constituição de 91 não reconheceu o poder público como derivado de Deus, e adotou a tese revolucionária, condenada pela Igreja, de que o poder emana do povo. A Constituinte de 1934 alterou esta situação: sem reconhecer que o poder emanava de Deus, invocou-Lhe a proteção, em seu preâmbulo. Esta situação é algum tanto contraditória. Se se reconhece oficialmente a existência de Deus, como afirmar que não é d'Ele que emana o poder? Como esperar a proteção divina para uma lei básica que nega a soberania de Deus? Vista por este ângulo, a posição assumida em 1934 estava longe de poder satisfazer a opinião verdadeiramente católica. Mas, na medida em que representava uma reação feliz quanto à situação anterior, autorizava esperanças e merecia aplausos. Conta-se que certa vez um ateu famoso passou diante de uma Igreja, e se descobriu. O amigo que o acompanhava não pôde deixar de manifestar sua estranheza por tal atitude, e perguntou: "Já vos reconciliastes com Deus?" - "Não, respondeu o filósofo, nós já nos cumprimentamos, mas ainda não nos falamos." Em 1934, o Brasil ainda não reconhecia os direitos de Deus, mas já lhe pedia proteção. É alguma coisa, não enquanto situação estática, mas enquanto transição para uma situação boa. Doze anos depois, continuamos no mesmo ponto. E cumpre ainda notar que, entre 1934 e 1946 tivemos uma descaída: a carta de 1937 não invocava o nome de Deus.

Não desdenhemos o que se obteve, nem desanimemos de obter mais. Reconheçamos, contudo, que a consciência filosófica e jurídica de nossas elites católicas ainda tem muito que progredir. E com esta reflexão se descortina um magnífico panorama para a nossa Universidade Católica, que pode sentir, no ano em que nasce, a pertinácia dos preconceitos agnosticistas e liberais entre nós. Pertinácia esta tanto mais curiosa quanto, como adiante veremos, ela se manifestou no seio de uma Constituinte nada infensa ao Catolicismo.

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Isto é tanto mais digno de nota quanto o princípio consignado no artigo 1º da Constituição ainda traz a formulação radical e absoluta, tão cara aos liberais: "Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido". Tomado assim, e absolutamente, tal princípio afirma diretamente a doutrina de Rousseau sobre a soberania popular. É fato que se poderia entender que o poder emana de Deus como de sua suprema e primeira fonte, e reside no povo apenas quanto à escolha dos governantes e da forma de governo. Seria uma posição diversa da de Rousseau. Mas onde se afirma na Constituição este supremo domínio de Deus? Em lugar nenhum. Está implícito, dir-se-á, no próprio preâmbulo. Mas por que deixar implícito o princípio referente à fonte primeira e suprema do poder, e inscrever explicitamente, vistosamente, logo no início da Constituição, o princípio do poder popular derivado e secundário?

Vejamos a coisa, mas não lhe exageremos o significado. Enquanto etapa inicial, a posição dos Constituintes de 34 e 46 deve ser, neste particular, vista com reserva, não porém sem simpatia.

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O artigo 31, itens 2 e 3, reafirma claramente a separação da Igreja e do Estado. É mais uma vez o laicismo que se afirma. Mas, em 1946 como em 1934, este laicismo se limita por numerosas medidas mostrando que, se o Estado é oficialmente leigo, pelo menos ele não deseja que o Brasil seja agnóstico. Não são poucas, como veremos, as disposições constitucionais que abrem caminho para uma cooperação concreta entre o Estado e as várias religiões.

Note-se entretanto que ainda aí o Estado salva sua neutralidade: ele coloca em mesmo plano todas as religiões que não sejam contrárias à ordem pública e aos bons costumes, e nem sequer abre uma exceção em favor da Religião Católica, ainda que fosse somente por ser a maioria dos brasileiros, isto é por ser a Religião daquele mesmo povo cuja soberania tão ostensivamente proclamou no artigo 1º.

Ainda aí, entretanto, é preciso não ver a situação com óculos negros. Posta a atual situação, seria conveniente a união da Igreja e do Estado? Seria possível que a Igreja se unisse sem atritos nem contrariedades a um Estado como o nosso, em que tantas influências hostis se entrechocam? Talvez não, em benefício da própria Igreja.

Mas, se as condições morais e sociais desse povo tão homogeneamente católico são tais, que ele não pode nem sequer ter um Estado oficialmente católico, vemos por aí mesmo que uma grande tarefa existe para realizar entre nós: a "catolização dos católicos".

Em suma, é triste que nós não tenhamos a Igreja oficial, e mais triste ainda é que não a tenhamos porque não estejamos em condições de a ter.

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Deve ser apreciada a redação tomada pelos Constituintes no que diz respeito a subvenções. Tiveram eles o cuidado de não proibir as isenções de impostos, sobre as quais a Constituição legisla, aliás, mais adiante. Assim, pois, dentro da neutralidade religiosa adotada, a Constituinte ainda dispôs um meio para auxiliar discretamente as atividades da Igreja que, por ser a mais difundida, será a mais beneficiada.

Comentaremos em outra edição os demais tópicos da Constituição.