Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

O grande abandonado

 

 

 

 

 

Legionário, Nº 731, 11 de agosto de 1946

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Lembro-me de que comecei, há poucos números atrás, a comentar em artigo de fundo, este fato clamoroso, para o qual a opinião católica parece não ter a atenção suficientemente alertada: constitui-se a ONU e o Santo Padre a ela não pertence. Este fato se completou, nos últimos dias, por outro ainda mais clamoroso: reúne-se a conferência de Paris, e o Vaticano dela está ausente. Em 1918, quando os preconceitos laicistas tinham atingido seu clímax, e o Papa era considerado por muitas potências como mero particular voluntariamente encerrado em seu palácio do Vaticano, convidou-se entretanto a Santa Sé a mandar um observador diplomático oficial para acompanhar as negociações do Tratado de Paris. Hoje, em conseqüência dos pactos lateranenses, o Papa alia a dignidade de Chefe espiritual da Cristandade, que jamais perdeu, à soberania temporal de fato sobre um Estado de que, no sentido pleno da palavra, ele é Rei. Quase todas as nações do globo mantêm junto a ele representação diplomática oficial. Ainda mesmo no puro campo do Direito Internacional laico, o Santo Padre é tanto um Chefe de Estado quanto Jorge VI, Bidault ou Truman. Tudo indica, pois, que a Santa Sé tem todo o direito de participar da Conferência de Paris. E, entretanto, está ela ausente do grande conclave. Em nenhuma das notícias provenientes da Europa consta que o Vaticano tenha sido admitido a acreditar sequer um observador diplomático junto à Conferência. É possível que o Núncio Apostólico em Paris seja pessoalmente consultado por certos países: mas isto a título estritamente extra-oficial. Oficialmente, o Vaticano ignora a Conferência, e a Conferência ignora o Vaticano.

Este fato é tanto mais grave, quanto a Conferência teve de enfrentar um problema protocolar e técnico cuja solução lhe permitiria abrir um precedente simpático em relação à Santa Sé. Como ninguém ignora, a Liga das Nações não estava constituída quando se discutiu o Tratado de Versailles em 1918. Assim, a esta assembléia compareceram apenas delegações de nações, e não havia representantes de organismos ou entidades supra-nacionais. Em 1946, entretanto, a ONU já estava constituída. Em Paris, só comparecem nações. Que papel atribuir à ONU na conferência? Estaria ela ausente? O problema se resolveu com elegância. O sr. Trige Lye comparece às reuniões como convidado de honra da Conferência.

Se bem que o minúsculo Estado Vaticano não tenha a menor importância militar e econômica, tem contudo o seu Chefe uma situação mundial que, mesmo laicamente raciocinando, poderia ser comparada, sob alguns aspectos, ao que é, em ponto menor, o chefe da ONU. Não seria decoroso, razoável delicado, convidar também o Santo Padre a mandar um Cardeal Legado que, na qualidade de hóspede de honra e observador, acompanhasse os trabalhos?

Entretanto, isto não se fez.

* * *

Há muitas nações católicas acreditadas junto à Conferência. Sentiram elas o que há de deplorável, neste afastamento do Sumo Pontífice? Que atitude tomaram elas para remediar desde logo uma situação tão anormal?

Estas perguntas - ao menos a julgar pelo que até agora se passou - caem no chão sem resposta. Por que? Por muitos motivos. E um deles, imensamente doloroso, é este: não se nota que a opinião católica, em muitos países, esteja atenta ao fato, e mal impressionada com ele. O laicismo penetrou tanto nas mais íntimas fibras, até mesmo de muitos que doutrinariamente o repudiam, que a ninguém ocorre perguntar pelo Papa: parece tão natural que se reorganize sem ele a face da terra!

Queremos medir o que isto significa? O mundo árabe se reestrutura em nossos dias, em base tipicamente religiosa. A situação do mufti, a todos os países árabes interessa. Não só aos povos árabes, note-se, mas aos governos desses povos. Não foi possível tocar um só fio de cabelo desse criminoso de guerra, pois que as chancelarias de todo o mundo muçulmano, numa vasta faixa de povos que vai da Oceania até a África setentrional, se moveriam.

Enquanto isto, o Chefe espiritual do mundo católico está posto à margem... o que os católicos, ao menos globalmente considerados, parecem achar muito natural!

O termômetro por onde se mede o fervor de um católico é sua devoção ao Papa. Só está com Deus quem está com Cristo, só está com Cristo quem está com a Igreja, e só está com a Igreja quem está com o Papa: ubi Petrus ibi Ecclesia. O católico vale, pois, na medida de sua obediência, de seu fervor, de seu amor entusiástico e sem limites para com o Sumo Pontífice. São Francisco de Sales, interrogado certa vez sobre a "medida em que se deve amar a Deus", respondeu: "é amá-lo sem medida". Em certo sentido, diríamos o mesmo do amor ao Papa.

Não vamos pretender que nesta indiferença em relação ao Papa existe só tibieza. Há também muita incompreensão. Temos uma idéia tão diminuída, tão deformada, tão reduzida do que é a função do Papado à testa de todas as nações cristãs, como centro (ao menos de certo modo) da própria ordem temporal, que nem percebemos claramente a injustiça e a afronta que representa para o Vigário de Cristo ser ele excluído dos grandes conciliábulos mundiais. Mas assim é. E a cegueira do orbe católico para este fato, em lugar de diminuir a afronta, a torna ainda mais dolorosa. Quando os Apóstolos dormiam no Horto das Oliveiras, não havia apenas tibieza, mas também incompreensão na sua atitude de torpor. Entretanto como sofreu com isto Nosso Senhor! É que há incompreensões que nascem elas mesmas da tibieza. Como se compreende completa e rapidamente aquilo que já se começou a amar! E como é difícil entender bem todo o alcance, sentir todas as conseqüências daquilo que não se ama!

* * *

O mais notável desta situação não é, entretanto, que as nações cristãs tenham fechado os olhos ao Papa. É que ele não tenha protestado contra sua exclusão. Bento XV protestou contra ela, e entretanto estava menos completamente excluído do que Pio XII. A soberania temporal inconteste que hoje exerce o Papado dá a Pio XII direitos muito mais fáceis de alegar a estadistas leigos, que os de Bento XV. Contudo, Pio XII se cala. Por que?

Evidentemente, ninguém tem o direito de falar em nome do Papa. Só ele próprio poderia dizer quais são os seus motivos, e os dirá por certo, se conveniente, e quando oportuno.

Mas imaginemos por alguns instantes que o Vaticano se fizesse acreditar junto à Conferência de Paris. Que papel lhe tocaria nessa assembléia? Seria considerado grande potência? O Chefe espiritual de 360 milhões de súditos seria equiparado, porventura, ao presidente de Honduras, Suíça, Guatemala, ou à grã-duquesa de Luxemburgo? Se fizesse parte das grandes potências, conviria ao Sumo Pontífice sentar-se entre Byrnes e Atlle, na mesma mesa que Molotov?

Para tocar com as mãos esta última dificuldade, imaginemos um Legado do Papa, a discutir a questão regimental em que se sujou - que outro termo usar? - Molotov em seu discurso de 5a. feira passada. O Papa é por sua natureza árbitro supremo. Decide, e não discute. Admitamos que discuta, por mera condescendência, numa mesa redonda que, por ser o Papa superior a tudo, deixaria de ser "redonda", no próprio instante em que o Papa se sentasse a ela; com homens decentes, a situação seria ainda tolerável. Mas com um Molotov? O chanceler soviético, no discurso de 5a. feira, descompôs a Inglaterra e os Estados Unidos, cujos representantes foram à tribuna para se defender. Isto é papel bom para grandes potências terrenas, humanas. Mas para o Chefe espiritual da Igreja de Deus? Imagina alguém um Cardeal legado a descer à sarjeta para receber as pedradas do Sr. Molotov, e as retribuir? Com o representante de uma potência cismática como a Rússia czarista, herética como a Inglaterra ou os Estados Unidos, pagã como o Egito ou a China, um alto Prelado pode manter muito decentemente, um debate condigno. Mas com um Molotov? Desde que os processos soviéticos impregnaram a vida internacional de uma atmosfera de taverna, toda a participação do Santo Padre nos conclaves internacionais só muito dificilmente se faria... ou se fará.

* * *

Evidentemente, a situação não seria esta, se o nível moral da diplomacia das outras potências fosse mais alto. Mas, mesmo considerados os problemas em que os soviéticos não intervierem, a atmosfera diplomática de hoje é quase irrespirável para homens decentes. Os princípios não valem quase nada. A ameaça das armas e a pressão do dinheiro se sente por toda a parte. Quando algum estadista levanta uma questão de princípio, em geral ele mesmo não dá a menor importância ao princípio que defende, e do qual faz mero "gato morto" para atirar à face de outros, com alguma segunda intenção relacionada com seus próprios interesses. Ele sabe perfeitamente disto, e sabe que os outros que o ouvem também sabem disto. Ele sabe que todos sabem, tudo quanto ele disser em matéria de princípios não decidirá coisa alguma, e que enquanto ele pronuncia seu discurso mais ou menos belo, mais ou menos substancioso, nos bastidores os técnicos militares e financeiros estão fazendo progredir uma solução... ou uma crise para a qual toda a doutrina dele não trará o menor concurso.

É por isso que um Molotov sente que pode dar largas a seu baixo instinto de taberneiro, sem escandalizar o mundo: é que não há tanta distância entre ele e muitos daqueles Srs. que conservam restos de verniz e de civilização, e aos quais ele tanto escandaliza com seus gestos e feitos.

O direito nada mais vale, na generalidade dos debates internacionais. E, se assim é, se está ausente o Direito, que espanto pode haver em que esteja ausente o Papa, cuja missão é precisamente promulgar e proteger as leis da moral internacional, ou seja do Direito Internacional no que este tem de mais básico?

Ninguém sente falta do Papa, porque ninguém sente a falta da moral. No tempo de São Francisco, a "Dama Pobreza" andava muito abandonada, e o Poverello com ela misticamente se desposou. A "Dama Moral" está hoje mais abandonada do que a "Dama Pobreza". Posta à margem, ela se encolhe melancolicamente ao seu único refugio natural, isto é, à sombra daquele que é o Vigário de Cristo, Pastor das ovelhas e dos Pastores...


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