Legionário, Nº 727, 14 de julho de 1946
A POSIÇÃO DA SANTA SÉ
Em artigos anteriores, temos chamado a atenção de nossos leitores para a situação cheia de paradoxos em que se encontra presentemente a Santa Sé, dentro do cenário internacional. Retomemos em rápidos traços as reflexões que fizemos para, depois, podermos formular com precisão o problema de que hoje queremos tratar.
Antes de tudo, vem o quadro doutrinário dentro do qual o problema deve ser visto. O mundo contemporâneo perdeu completamente a noção do que seja a Cristandade. Todos os povos católicos tem o dever de professar, conservar e propagar a verdadeira Fé. Neste sentido, pode dizer-se do Estado, mutatis mutandis, tudo quanto se diz do indivíduo. E todos os motivos que valem para demonstrar que um simples católico é obrigado a ser oficialmente católico, a defender e propagar a Fé, valem também para o Estado. Os Estados católicos tem, pois, assim uma grande tarefa comum a executar. E, assim como os simples fiéis são obrigados a se entre-auxiliarem na faina do apostolado, assim também os Estados católicos devem apoiar-se uns aos outros, para defender e propagar a verdadeira Religião. De onde decorre que, se todos os Estados católicos fossem dignos da incomparável glória deste nome, eles constituiriam entre si, implícita ou explicitamente, um poderoso grupo de povos, naturalmente unidos na consecução de um supremo fim comum para assegurar no mundo inteiro plena liberdade à Igreja Católica de pregar a palavra de Deus, e liberdade igualmente plena aos fiéis, de praticar a religião, bem como de organizar segundo normas cristãs a civilização e o Estado.
E imagine-se pois que todos os países católicos fossem oficialmente católicos, isto é, que os respectivos Estados professassem oficialmente a religião católica como única verdadeira, que a essa dessem pleno apoio […]. Que as leis destes Estados fossem plenamente conformes à doutrina da Igreja, no que diz respeito à justiça, à caridade, à pureza dos costumes. Que todos estes Estados, aliados entre si pelo fim comum da expansão do Reino de Cristo, empregassem todos os seus recursos para a expansão do Evangelho. Que todos os costumes fossem rigorosamente conformes à doutrina católica, teríamos a imagem esplendida do que seria a Cristandade.
Claro está que, se todos os fiéis devem uns aos outros justiça e caridade, os fiéis a devem entre si a título muito mais grave. É mais grave faltar com a caridade ao irmão na fé, do que a um estranho.
Assim, pois, nas relações internacionais, as nações católicas deveriam ter o maior empenho em se manter de acordo umas com as outras, observando em relação a todas, as normas de justiça e da caridade, mas respeitando-as com um esmero inexcedível, nas relações entre povos católicos.
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Tal deveria ser a Cristandade. E, se assim fosse a Cristandade, nesta família de povos cristãos, o Papa teria naturalmente uma preeminência que salta aos olhos.
Primeiramente, por todos os títulos que fazem dele o Vigário de Cristo, superior a todos os Chefes de Estados do mundo, como o sol é superior à lua e às estrelas.
Em segundo lugar, porque todas as tarefas da Cristandade em favor da Igreja seriam tarefas meramente auxiliares. O encargo, por excelência, toca à Igreja. E ao Estado caberia auxiliá-la com todas as suas forças, mas deixando à Igreja, não só toda direção da obra, mas toda a exclusividade naquilo que só ela pode fazer. Neste campo, o Estado está para a Igreja (mutatis mutandis, ainda) como, em matéria de apostolado, o simples fiel está para a hierarquia. Incumbe-lhe servir, auxiliar, apoiar, na sua esfera própria. E não invadir a esfera da hierarquia para definir, governar, dirigir, mais ou menos como queriam fazer os soberanos regalistas.
Assim, pois, em tudo que tocasse ao serviço que os povos cristãos devem prestar à expansão e propagação da Fé, claro está que seus olhos deveriam estar postos nas diretrizes e intenções do Sucessor de Pedro. E que, em todas as questões mesmo temporais, que surgissem entre povos cristãos, o mais alto árbitro para a preservação da paz seria sempre o Pai comum.
Respeitando, pois, muito ciosa e meticulosamente a soberania do Estado na esfera temporal, o Papado seria entretanto, num mundo verdadeiramente católico, o que o sol é no firmamento.
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Quando pensamos em tudo isto e comparamos esta ideal situação de direito, com a presente tristíssima situação de fato, como não sofrer? Como não reconhecer que, se a Igreja permanece de pé, íntegra e gloriosa, a civilização cristã, a Cristandade está quase tão completamente arrasada quanto o templo de Jerusalém, do qual não restam nem sequer os alicerces? Um pouco desta tradição ainda flutua no ambiente. Olhamos esta poeira de ouro com carinho e saudades. Mas é só o que nos resta.
Os Estados católicos, como Estados, já não são oficialmente católicos. E como diz sabiamente Taparelli, não merecem fazer parte da Cristandade os povos que não são oficialmente católicos. Mesmo naqueles raros países em que a Igreja se mantém unida ao Estado, em geral nuvens e problemas de toda a ordem, quando não tendências a políticas pagãs, e leis injustas, empanam e perturbam a ordem cristã. Na esfera internacional, os povos cristãos, perdida entre si toda e qualquer noção de seus deveres para com a Fé, perdida a noção dos seus especialíssimos deveres de uns para com os outros, se aliam a gentios de toda a espécie, aliaram-se ontem a Hitler ou Stalin, aliar-se-iam amanhã quiçá ao próprio anticristo para conseguir mais ouro, mais terras, mais canhões ou mais petróleo.
A sua posição é tão inveteradamente tal que perdemos até a consciência de que não é esta a reta posição das coisas na ordem cristã.
Em 1918, constituiu-se a Liga das Nações. O Papa Bento XV quis ser admitido a ela, mas foi recusado a pretexto de que não era Chefe de Estado. E a liga ruiu em cacos. Hoje a ONU poderia admitir a Santa Sé, pois que o Santo Padre é Chefe de Estado. Mas não nos consta que o tenha convidado. Mais. Nem nos consta que Pio XII haja manifestado o desejo de ser convidado. Por que? É este o problema que, em nosso próximo artigo, procuraremos abordar.