Legionário, Nº 726, 7 de julho de 1946

Política Internacional

Na bela mensagem que enviou ao Episcopado da Bolívia, por ocasião do recente Congresso Eucarístico, o Santo Padre fez referências verdadeiramente desalentadas à situação internacional. Pode-se mesmo dizer que foram as mais tristes e severas palavras que o Vigário de Cristo pronunciou desde o início do seu Pontificado até hoje. Nem sequer quando, em vésperas da guerra, todas as esperanças de paz já pareciam profundamente minadas, o Papa teve uma expansão tão sombria, tão melancólica quanto a de agora. Por que isto?

Pio XII não se referiu diretamente à iminência de um conflito que devesse estalar amanhã ou depois. Mas indicou uma perigosa evolução das idéias e dos fatos rumo à nova conflagração mundial. O desarmamento espiritual está longe de se converter em realidade. Os ódios entre os povos e os partidos são hoje muito maiores do que em 1939 ou em 1914. Começa desde já a preparação de nova guerra, se bem que o mundo nem sequer tenha começado a se refazer da anterior. O imperialismo de certas grandes potências enxovalhou completamente a vida internacional. Outrora, a diplomacia era polida, luzidia, elegante. Os diplomatas tinham nos lábios fórmulas de cortesia ou sonoros axiomas de direito. E nas mãos, luvas de pelica. Hoje, atiraram ao canto as luvas de pelica e adotaram as de box. Trocaram o sapato de verniz pela pesada chanca, tão necessária a quem dá e recebe pontapés. Esqueceram-se das fórmulas corteses e dos princípios jurídicos, e, em compensação, discorrem o tempo inteiro sobre dinheiro. Isto quando não se injuriam mutuamente. A diplomacia caiu do salão nobre para o balcão de loja, e dai para a mesa de taverna. É onde estamos. O Sr. Molotov, com seus métodos, ameaça levar-nos da taverna para a sarjeta. E mais baixo cairíamos se lugar mais baixo houvesse... Ora, tudo isto que do ponto de vista cultural e social tem tanta importância, significa também muito, e muito, do ponto de vista moral. Por que uma tão aviltante queda de nível? É que o ódio cresceu tanto, o espírito de ganância se tornou tão aviltante queda de nível [trecho truncado no original] dores de outros tempos.

Os desígnios imperialistas, que outrora se velariam, se exibem hoje com selvagem "inocência", com uma cínica nudez comparável só à dos freqüentadores de praia que estadeiam à luz do sol suas intimidades. Os fracos vão valendo cada vez menos na vida internacional. Reúnem-se "quatro grandes" em Paris e dividem o mundo como se fosse um bolo. Os outros tremem de medo, aplaudem ou apupam de fora, de longe, com a convicção de que são meros espectadores. Queiram-no eles ou não o queiram, quando se decretar no supremo cenáculo dos "quatro grandes" qualquer coisa sobre qualquer deles, terão de obedecer.

Se, pois, não tivermos a guerra, teremos uma paz que será a subversão frontal e insofismável da ordem internacional cristã. O direito terá sido virtualmente substituído pela força. O dinheiro dominará tudo. Os fracos tremerão e sumirão. O império de Cristo e de sua suave Lei terá sido substituído pelo império de Moloch.

Percebe-se que é esta evolução psicológica tenebrosa que entristece, acima de tudo, a mente do Sumo Pontífice. Nem por isto se diga, entretanto, que o próprio espectro da guerra não o impressiona. Vemos todos que o mundo caminha para novo conflito. Dia virá - amanhã, daqui a um ano, cinco, só Deus o sabe - em que os "quatro grandes" hão de brigar, arrastando atrás de si os pequenos.

O que restará da civilização depois disto? É inútil disfarçar a verdade. Estamos como o Império Romano nos últimos dias que precederam a invasão dos bárbaros. Para tornar completa a semelhança de nossa situação com eles, nem sequer nos faltam os indolentes, os gozadores, os tíbios que naquele tempo como hoje, diante das ruínas que se vão acumulando de todos os lados, se revolvem sobre os coxins macios que ainda lhes ficam, sorvem do fundo da taça um pouco do que resta para as últimas libações, bocejam, e interiormente pensam para se tranqüilizar: "afinal, tudo ainda há de se arranjar". Pois como não há de se arranjar, se eles ainda tem um pouco de vinho na taça, e alguns coxins de seda e veludo, sobre que recostar o corpo indolente?

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Repetimos, pois, nossa afirmação. O grande mal de que sofremos não é só a guerra. É a paz que não seja a de Cristo no Reino de Cristo. Uma organização de Nações Unidas que seja um cenáculo de povos fracos, assistindo trêmulos à luta dos povos fortes, certos desde logo que o vencedor dominará o mundo com mão de ferro, é algo de imensamente triste para um mundo que conheceu o esplendor, a liberdade e a ventura de vinte séculos de civilização cristã.

A URSS deu bem o pano de amostra do que será um mundo tal, com o monstruoso projeto de federação danubiana, que ela divulgou nestes últimos dias.

O golpe foi bem típico dos métodos nazistas e soviéticos. Enquanto Molotov parecia ceder em Paris, a respeito de Trieste, os jornais publicavam a notícia alarmante de que a Iugoslávia estava promovendo um bloco de nações balcânicas e danubianas que deverão constituir uma Federação sob a orientação do Marechal Tito. O que quer dizer isto? Existe uma União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na Rússia, federação de republiquetas autônomas no papel, escravas do Kremlin na realidade. Agora, mais ao ocidente, se formará uma cópia desta federação, também ela dirigida do Kremlin, pois que ninguém ignora a suma docilidade do marechal Tito a Moscou. É algo de tão completo, servil e declarado, quanto a obediência do ex-capitão Prestes aos régulos vermelhos da Rússia. Esta federação abrangerá todos os países danubianos, a saber: Áustria, Hungria, Rumânia, e os balcânicos, isto é: Iugoslávia, Grécia, Bulgária. Poderá incluir comodamente a Checoslováquia e a Polônia, também elas dominadas por Moscou. E, assim, teremos uma União de Repúblicas Socialistas Soviéticas Ocidental, simétrica com a URSS oriental, uma e outra governadas do fundo do Kremlin.

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Admita-se que este projeto não vingue, quem o pode afirmar? Que distúrbios, que problemas, que catástrofes não trará ele à próxima reunião das 21 nações? E não nos levará isto à guerra? Se não levar, que concessões teremos que fazer para conseguir salvar mais uma vez a paz? E do que ficará valendo uma paz conquistada a tal preço?

Bem se vê que não é sem fundamento o desalento do Santo Padre.