Legionário, Nº 717, 5 de maio de 1946

Contradição flagrante

Se, promulgada a Constituição, continuar em nossas leis a monstruosa preferência da mulher desonesta à mulher honesta para efeito de promoção de funcionalismo público, teremos pelo menos o consolo - precioso para os que prezam a tranqüilidade de consciência - de não arcar com a menor cumplicidade nesse grande pecado coletivo. Por menor que seja a parcela de nossa responsabilidade em deliberações de tal monta, não quereríamos ter sobre nós o pesar de haver cruzado os braços diante de tal situação. Já tratamos do assunto, e voltamos hoje a falar dele. Havemos de examinar a questão em todos seus aspectos, para deixar absolutamente claro que nossa legislação está errada e precisa ser reformada.

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O grande argumento que se tem dado, em favor desta infame preferência, é que o Brasil precisa de braços. Assim, o que lhe interessa, é povoar o solo. E, como a capacidade produtiva do filho ilegítimo não é menor do que a do filho legítimo, tanto faz à economia nacional que os filhos procedam de justas núpcias, ou não. São brasileiros, e está tudo dito. Posto este fato, o Estado não tem interesse em distinguir, entre suas funcionárias, os motivos ou condições em que lhe sobreveio a maternidade. E, portanto, para efeito de promoção, não deve a lei tomar em consideração antecedentes morais que de nenhum modo se relacionam com o interesse do urgente povoamento do solo.

Toda esta argumentação pode ser recebida de dois modos. Para uns, ela chocará. Parecerá a estes retrógrados que não se pode tratar um país precisamente como se trata um haras, e que a multiplicação de um povo não pode ser vista de um ângulo exclusivamente financeiro com que se cogita da natalidade em um rebanho. Para todos os poetas e reacionários, que ainda não se conformaram com a inteira equiparação do homem ao animal, parecerá estranho que os aspectos morais relacionados com a natureza humana sejam de tal maneira sacrificados em favor do interesse econômico. Outros, pelo contrário, acharão a argumentação perfeitamente natural. Quando muito, completarão o argumento econômico com algumas considerações de caráter militar. Precisamos de soldados. Não está demonstrado que a retranca da metralhadora seja menos eficaz nas mãos dos filhos ilegítimos que na dos filhos legítimos. E, assim, não há motivo para preferir nas fileiras os filhos de justas núpcias, aos outros. São todos soldados. E, desde que a funcionária dá soldados ao Brasil, desde que estes soldados, tantos uns como outros, derramem no campo de batalha o seu sangue, pouco importa ao Estado saber quais os antecedentes que cercaram a vinda desses soldados ao mundo. Pelo que realmente a lei deve promover indiferentemente toda e qualquer mãe funcionária.

Confessamos que nosso lugar, como de costume, está entre os "retrógrados", "reacionários", etc., etc. Parece-nos simplesmente inconcebível que, na apreciação dos vários aspectos do problema, o lado moral seja tão completamente ignorado. Mas os argumentos dessa natureza se tornaram, hoje, absolutamente incompreensíveis para certas mentalidades. Se as queremos impressionar, devemos argumentar com cifras de dinheiro, ou estatísticas militares.

Fora daí, não conhecem nem lógica, nem sabedoria, nem acerto. Vamos, pois, ao terreno em que eles mesmos se situam.

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Não percebem os partidários desta lei que pura e simplesmente eles se colocam entre os mais irredutíveis adversários do instituto familiar, com o argumento que desenvolvem. E que, a ser justo seu ponto de vista, não só o Estado deve realmente abstrair da legitimidade do nascimento mas pode ir mais longe, e extinguir a própria família.

Raciocinemos. Qual o fim da família? Seu fim primário e essencial é a perpetuação do gênero humano, a conservação e educação da prole. Ora, diz S. Tomás, as coisas são boas na medida em que realizam seu fim. Se a família é a única modalidade de se assegurar a perpetuação conveniente do gênero humano, ela se justifica. Mas se o gênero humano pode perpetuar-se convenientemente sem a família; se, abolida completamente em uma sociedade a família, a humanidade continua a crescer e multiplicar-se tão bem, ou ainda melhor, é forçoso reconhecer que a família, ou preenche mal o seu fim e deve desaparecer, ou não é necessária para seu fim e pode desaparecer. Em um caso ou outro, a família deixa de ser a base perpétua, necessária, inviolável, da sociedade humana, para ficar reduzida à categoria de coisa supérflua ou mesmo contraproducente.

Se, pois, o Estado brasileiro reconhece que a família é o fundamento da sociedade, e que este fundamento só tem a conveniente solidez mediante a indissolubilidade do vínculo conjugal, é bem evidente que ele há de reputar um mal gravíssimo que a instituição familiar desapareça. Porque as coisas que não têm mais base estão fadadas à morte. E se a base da sociedade brasileira é a família, eliminada esta estará eliminado o próprio Brasil.

Tudo isto parece bem claro, bem sólido, absolutamente indiscutível. E agora perguntamos: de que modo pode desaparecer a família? Só por decreto? Não. Os juristas ensinam que uma lei, ou se revoga por outra lei, ou pelo desuso. A família pode cair em desuso. O abandono gradual da instituição famíliar, a multiplicação de nascimentos extra-familiares, pode acabar por se tornar regra geral. E a família, a base da sociedade brasileira, no dia em que isto se der terá desaparecido, não por um decreto arrancado à viva força pelos comunistas, mas pela erosão sub-reptícia, diária, surda a que a terão submetido os maus costumes. Não basta para manter a família, uma boa legislação. Não é só de boas leis, mas de bons costumes, que vive a família. Se o Estado quer salvar a família da ruína, e com isto salvar-se a si próprio, ele deve combater com sumo cuidado os maus costumes.

Ora, no que consiste o mau costume, em matéria como esta? Precisamente em realizar fora do casamento, fora da família, aquela função que só dentro da família, por meio do casamento, pode ser realizada. Perpetuar a espécie humana fora da família é, ao pé da letra, conspirar contra a sociedade e o Estado.

Em suma, ou a família pode e quiçá até deve ser extinta pelo Estado, ou o Estado deve combater os nascimentos ilegítimos.

O que faz o Estado brasileiro? Afirma de um lado que a família não pode nem deve ser extinta; até afirma que deve ser protegida; e dá preferência, na promoção do serviço público, aos que conspiraram contra ela...

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E vamos agora à natalidade. Se a família é o único instituto que assegura à natalidade todas as condições de progresso necessárias, é claro que o Estado deve combater severamente a natalidade extra-familiar. Por que? Porque a natalidade extra-familiar debilita a família, e, debilitando a família, destrói as condições necessárias para termos uma prole vigorosa, numerosa e sadia.

Ou isto é verdade, ou a família não é necessária à natalidade e pode ser supressa.

De onde se segue que afirmar de um lado a necessidade da família, e do outro esperar da natalidade ilegítima o povoamento do Brasil, é pura e simplesmente precipitar-se no abismo da contradição mais chocante.