Legionário, Nº 710, 17 de março de 1946
"Bem-aventurados os puros porque verão a Deus"
Depois da amargura mais pungente dos primeiros dias, chegamos agora à fase das recordações. Aquilo que ainda era tão próximo que se confundia com o presente, começa a recuar claramente para o passado. Um passado cujas linhas queremos conservar ciosamente na memória do coração, entre as mais delicadas e luminosas recordações que nos têm ficado da áspera luta da vida.
As linhas essenciais da personalidade de José Gustavo são de uma pureza e elevação pouco comuns. Elas se identificam com os melhores e mais altos princípios católicos. Sempre que, em José Gustavo, se quisesse compreender alguma diretriz essencial, alguma convicção fundamental, dever-se-ia apelar para o Catolicismo. É nas fontes da ortodoxia mais pura, que se encontrava o ponto de partida de toda a sua orientação espiritual.
Evidentemente, não se tratava, no caso de José Gustavo, de uma destas modalidades triviais e falsificadas de Catolicismo, que com tudo transige, a tudo se afaz, com tudo pactua, e da Religião só tem as aparências de uma piedade açucarada.
Pelo contrário, as linhas essenciais da personalidade de José Gustavo eram de uma catolicidade autêntica, profunda, séria, de uma catolicidade que por isto mesmo entrava em dissonância omnímoda com este século tão fundamentalmente descristianizado em que vivemos. Contra seus erros e dislates, José Gustavo se afirmou sempre com a intrepidez e a nobreza de um "chevalier sans peur et sans reproche".
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Uma das características mais essenciais da vida cristã é, sem dúvida, a pureza. É mesmo à pureza que Nosso Senhor promete no sermão das bem-aventuranças o prêmio supremo: "Bem-aventurados os que são limpos de coração, porque verão a Deus". José Gustavo recusou-se a entrar no imenso caudal dos moços que imolam nos prostíbulos os melhores tesouros e energias de sua mocidade. De uma pureza de espírito e de costumes que era talvez o melhor encanto de sua pessoa, nunca permitiu que o vício estadeasse junto dele sua pretensa superioridade, e jamais consentiu em que a virtude fosse menoscabada ou vilipendiada em sua presença. Sem ter em relação à sua virtude qualquer falso orgulho, também não se enrubesceu dela em nenhuma circunstância. Pelo contrário, viveu-a com dignidade verdadeiramente cristã.
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No que diz respeito à sua formação intelectual, José Gustavo era inteiramente tomista. Os assuntos filosóficos o atraíram bastante. Ele chegou mesmo a freqüentar por alguns anos, os cursos do Prof. Alexandre Correia. Entretanto, seu pendor intelectual mais vivo era para a História e a Sociologia.
José Gustavo foi, em todo o sentido da palavra, um contra-revolucionário. Sua concepção da História era a de Leão XIII na famosa Encíclica "Parvenu à la Vingt-Cinquiéme Année". O mundo contemporâneo se assinala pela desagregação da civilização ocidental e cristã. O primeiro golpe foi do Humanismo e da Renascença. Veio depois a Revolução Francesa. Por fim, o comunismo. E, ao lado deste, José Gustavo colocava o nazismo e o fascismo, dos quais foi sempre adversário decidido.
A esta longa e tenebrosa obra de destruição, empreendida pelo espírito das trevas, cumpria opor esforço igual e contrário. Era dentro desta perspectiva, que ele considerava o aspecto social do apostolado católico. À luta das classes, opor a união entre elas. Ao espírito de revolução, opor o espírito de hierarquia. À opressão dos pobres pelos ricos, opor o espírito cristão de paternal proteção do rico ao pobre. E, ao espírito de revolta do pobre contra o rico, opor o respeito que o Apóstolo recomendava aos primeiros cristãos para com seus amos, "etiam discoles".
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A Igreja dá aos católicos a liberdade de preferirem esta ou aquela dentre as formas lícitas de governo. José Gustavo se pronunciou sempre pela monarquia orgânica e tradicionalista, segundo o espírito dos "requetés" espanhóis, dos legitimistas portugueses, e da monarquia habsburguesa.
Em função desta posição política, que abraçava com ardor e que justificava com argumentos tirados de longos estudos e leituras, José Gustavo era também um partidário decidido da forma aristocrática da organização social.
Erraria grosseiramente, quem visse nestas posições ideológicas apenas tentativas de engrandecimento pessoal. José Gustavo, em toda a medida do que pôde, lutou por afirmar nossas tradições nacionais, tantas vezes deturpadas e malbaratadas pela influência do espírito modernista e revolucionário. Em arte, em literatura, em música, no modo de apreciar todos os fatos, desde os mais transcendentais acontecimentos políticos até efêmeros episódios de salão, seu esforço era todo neste sentido. José Gustavo se colocou inteiro, ao serviço deste princípio. Foi sem a menor preocupação pessoal, e no puro interesse ideológico de suas convicções, que conformou segundo esta linha a sua personalidade.
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Para isto, o ajudava uma longa e digna tradição familiar. José Gustavo era um aristocrata raffiné. Seu físico delgado e ereto, suas longas mãos bem tratadas, sua maneiras simples e tão fidalgas, sua conversação viva, variada, inteligente, aquele seu riso alegre, luminoso e discreto, seu modo distinto de trajar, tudo tinha nele um quê de aristocrático. É o que se notava também em seus gestos. Em matéria de passatempo, preferia a música. Em matéria de exercício, a equitação.
Mas José Gustavo, em tudo isto, tinha uma simplicidade encantadora, uma simplicidade aristocrática e cristã, que o mantinha nos antípodas desta coisa pretensiosa, - e que seria monstruosa se fosse capaz de qualquer grandeza - que é o grã-finismo.
Sem se vulgarizar jamais, José Gustavo era gentil com todos, e fez amigos sinceros e devotados, em todas as classes sociais. Em S. Paulo, empregava por vezes longas horas em conversar com operários, modestos comerciários, moços de pequena burguesia. Na fazenda, tinha verdadeiros amigos entre seus colonos. Para não apontar outros exemplos, quantas vezes ouvi dele casos, episódios, aventuras de menino e conversas de moço que tinha com um empregado da fazenda, com quem brincou em menino e de quem se conservou amigo até o fim. "Amigo" significava aí verdadeiramente "amigo". Estas relações não tinham o caráter de uma pretensiosa e desdenhosa deferência, mas de uma afetuosa e íntima interpenetração de espíritos.
Era assim este José Gustavo "racé" e conservador, que, visto só sob um aspecto, e do ponto de vista dos preconceitos libertários, tão poucos compreenderiam.
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Esta personalidade tradicionalista, tão coerente e harmoniosa, deveria ter por força, um pendor muito vivo para a vida de lavoura. José Gustavo estimava - é o termo - imensamente suas fazendas, por elas se interessava, colaborava na medida do necessário, para a direção delas. As questões de plantio e criação o atraíram sempre. Desde que se tornasse necessário para ele assumir algum dia a direção plena de suas propriedades agrícolas, estou certo de que ele se teria revelado um agricultor e criador de plena competência.
Ultimamente, também a indústria chamava sua atenção. Ele adquiriu bens em São Sebastião, e tinha o projeto, já em vias de realização, de instalar ali uma indústria que desejava vivamente incrementar.
Não seria justo silenciar, no rol destas suas preferências, uma simpatia constante pela CPEF, à qual ele se sentia vinculado, mais do que por interesses, pelo orgulho de paulista contente em associar e em admirar esta brilhante realização de nossa gente bandeirante.
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E, voltando a uma ordem de coisas mais elevadas, seria preciso mencionar ainda o espírito de família, em José Gustavo. No momento em que a instituição da família parece ruir de todos os lados, José Gustavo foi por excelência um homem de família. Estudava genealogia, não por fatuidade, mas pelo carinhoso respeito que se deve à memória dos maiores. Conhecia seus parentescos nos graus mais remotos, e disto fazia praça, não somente com parentes cuja relação lhe fosse de qualquer maneira conveniente ou vantajosa, mas ainda com parentes obscuros, remotos, pobres. Uma das coisas que mais apreciei em José Gustavo foi que nunca o vi desabonar, ocultar, ou ao menos evitar de mencionar um parentesco menos brilhante, como os há em todas as famílias numerosas. A dignidade pessoal e a probidade de vida eram títulos suficientes para que ele se sentisse ligado a todo e qualquer "primo"... em grau por vezes quase infinitesimal.
Tal foi o nosso José Gustavo, que aprouve a Deus tirar tão cedo à nossa amizade e a nosso convívio. De tudo quanto disse dele, e do que ainda poderia dizer, parece-me que a nota dominante que me fica no espírito é, entretanto, a que assinalei de início.
Se eu tivesse que fazer para José Gustavo um epitáfio, colocaria apenas esta frase evangélica: "Bem-aventurados os puros porque verão a Deus".
É esta a promessa que se cumpre presentemente para sua nobre alma, no Reino do Céu.