Legionário, Nº 705, 10 de fevereiro de 1946
Ainda a lei eleitoral
Os delegados católicos à Assembléia das Nações Unidas não tentaram até agora coisa alguma para dar à Santa Sé uma situação condigna no ambiente internacional criado pela instauração da ONU. Pelo menos tiveram eles, entretanto, a delicadeza de realizar uma visita coletiva à Sua Eminência, o Cardeal Griffin, Arcebispo de Westminster. E, nessa ocasião, dele ouviram palavras memoráveis que se ajustam exatamente às considerações que o "LEGIONÁRIO" vinha fazendo acerca da reforma da recente lei eleitoral. Disse S. Eminência que "a democracia tinha em diferentes lábios diferentes significados". E acrescentou: "É falso descrever a democracia como um sistema em que a liberdade é recusada ao indivíduo e onde as eleições se realizam sem que a escolha de candidatos seja permitida aos eleitores". Não sabemos a que propósito Sua Eminência abordou este assunto tão particular, porque o resumo telegráfico de seu discurso, feito pela "United Press", era dos menores. Não sabemos em que Turkestão ou em que Bessarábia saiu uma lei assim, que chegasse a impressionar o ilustre Purpurado. O fato é que no Brasil também existe tal lei, embora o Cardeal londrino não a conheça. E seu conceito se ajusta inteiramente a um dos assuntos mais palpitantes de nossa atualidade política.
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Voltemos, pois, à questão da lei eleitoral. Lembro-me de que, no último artigo escrito sobre o assunto, mostrei que se a indicação dos candidatos para as chapas partidárias fosse feito por meio de votações internas nos partidos, chegaríamos rapidamente à última degradação política. Com efeito, em todos os países do mundo se reconhece que a paixão política de tal maneira tende a falsear os resultados das urnas, que os pleitos eleitorais se cercam de todas as garantias dos mais graves atos da vida oficial. Afasta-se de tudo quanto diz respeito às eleições, qualquer possibilidade de influência partidária. São os magistrados que designam os mesários. Estes devem ser tão apolíticos quanto possível. São eles que orientam a operação de votar, garantem a liberdade dos eleitores e o segredo do voto, e encaminham as urnas, severissimamente lacradas por juizes, ao próprio judiciário para efeito de contagem e apuração. E quantas precauções para que tal apuração se faça com lisura! Temendo a despeito de tudo qualquer fraude, a lei ainda comina penas criminais expressas contra os transgressores das formalidades eleitorais essenciais. Tudo isto porque entra pelos olhos que a paixão política pode de mil modos desfigurar os resultados de uma eleição.
Suponhamos que a escolha dos deputados, que não se fará mais em pleito oficial, venha a ser feita em eleições intra-partidárias. O que teremos lucrado com isto? Teremos, pura e simplesmente, substituído a eleição oficial, garantida em sua lisura pela severidade das leis penais e pela austera vigilância do poder judiciário, tê-la-emos substituída por eleições puramente privadas, sem fiscalização judiciária, sem garantia de penas criminais, realizada sob a direção dos órgãos mais genuína e escancaradamente políticos que pode haver, e que são as direções dos partidos. Em outros termos, passaremos com isto do polo alto da lisura judiciária, para o polo baixo da alquimia política. Se a isto não se chama "degradação", é o caso de dizer que o vocábulo perdeu seu sentido no idioma corrente.
O que impressiona profundamente neste assunto é que vivemos uma fase estritamente re-democrática (se o neologismo é lícito). E foi o mais "re-democratizante" dos governos que promulgou esta lei férrea, recebida com uma resignação de senzala, por este povo que de todos os modos brada por democracia.
O grande pretexto foi a necessidade de consolidar a vida partidária. Ouçamos sobre este assunto uma voz insuspeita. O "Estado de São Paulo" não é por certo um jornal apolítico, e nem teria propósito que se alheasse das questões políticas um dos maiores órgãos de nossa imprensa. Esse jornal foi dos que com maior constância e ardor apoiaram o governo Linhares - ao qual também nós não negamos vários títulos de benemerência - e especialmente o Ministro da Justiça, Prof. Sampaio Doria. Assim, o "Estado" não se furtou a fazer comentários altamente favoráveis a vários dispositivos da nova lei, como a supressão do alistamento ex-ofício, etc. etc. Tratando do ângulo especial que nos interessa, isto é, da proibição de escolher o eleitor os seus próprios candidatos, o que diz todavia o "Estado"? Impugna a inovação. E dá como motivo disto... precisamente o prejuízo que assim se infere à vida dos próprios partidos.
Assim, a lei só se justifica pelo interesse partidário. Mas é nociva aos próprios partidos. Ouçamos o "Estado":
"A forma atual parece-nos mais acertada: não há candidatos avulsos mas, dentre os registrados pelos partidos, fica ao alvitre do eleitor escolher o da sua predileção. Concilia-se, dessa maneira, o voto coletivo na legenda partidária com o voto individual, neste ou naquele candidato. Não há dúvida que a eleição por legendas partidárias, com exclusão dos candidatos avulsos, facilita o trabalho eleitoral e dá aos partidos a importância que devem ter na organização política do país. Mas privar o eleitor de, na chapa do partido, votar neste ou naquele candidato, é privar os candidatos registrados da vantagem de serem não só recomendados por um determinado partido como distinguidos com a escolha pessoal do eleitorado. Essa vantagem dá-lhe uma força moral incontestável pois que ele não será, tão só, o representante do partido, que o registrou, mas, também, dos eleitores que o honraram com o seu sufrágio.
A inovação vem tornar quase tirânico o espírito partidário. Ora, se a formação de partidos deve ser fomentada, a predominância do espírito partidário deve ser combatida. O deputado e o senador precisam ser alguma coisa mais do que simples delegados dos partidos que se registraram. Jungi-los estreitamente ao partido é, sob certos aspectos, despersonalizá-los. Não vemos qual o lucro que essa diminuição da personalidade do eleito trará para o regime democrático e para as instituições republicanas.
Os próprios partidos sairão perdendo com a inovação. Sempre que o eleitor não concordar com a classificação dos candidatos, votará em outro partido, ou votará em branco; ao passo que, no sistema atual, o eleitor, ainda quando não simpatize com o partido, pode favorecê-lo votando nominalmente em qualquer dos candidatos que ele haja apresentado".
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Consideremos agora outro aspecto da questão. A propaganda do partido é coisa custosíssima. Para atender às exigências dessa propaganda, a maior parte dos partidos procura relações com banqueiros. E quase não há outro modo de fazer a coisa. Sem rádios, sem jornais, sem cartazes, não há propaganda. Sem propaganda não há vitória. Sem rádios, sem jornais, sem cartazes, não há, pois vitória. Ora rádios, jornais e cartazes custam dinheiro. Logo, sem dinheiro não há vitória. O dinheiro - dezenas de milhares de contos - está nos bancos. Logo, ou se está com algum banco, ou se está sem possibilidade de vencer. Em regra geral, e salvas exceções, o fato é este.
Foi precisamente esta dependência em que os partidos tendem a ficar em relação aos bancos, essa degradante servidão do talento, da popularidade, do valor pessoal, do tirano de coração impermeável e sombrio que é a burra de banco; foi precisamente a tripotage [intrigalhada] sem limites dos favores impostos e obtidos pelos banqueiros e brasseurs d’affaires nas comissões e subcomissões dos parlamentos. Foi precisamente isto que pôs o parlamentarismo em tal descrédito na Europa.
Se, pois, queremos um parlamentarismo durável, que se liberte da sujeição aos plutocratas, devemos antes de tudo querer eleições honestas, sérias, em que o povo escolha seus representantes. E não eleições em que o povo, nauseado ao último ponto, é obrigado a escolher entre listas de figurões hábeis apenas em vencer as inglórias e pequenas batalhas de gabinete, para se impor à consideração dos pequenos clãs de banqueiros e seus asseclas, os coronéis universitários, os intelectualóides extravagantes, ou os demagogos de subúrbio. Prolixa e heteróclita coleção em que muita coisa se vende, e outra até se aluga.
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Estas coisas podem ir longe. Assim, pode-se chegar ao caso de ser indicado candidato à deputação algum indivíduo sem prestígio eleitoral algum, só porque agrada a qualquer figurão. E, pela lei eleitoral, este indivíduo entrará. Não pela força do sufrágio universal. Mas pela sua habilidade na capoeiragem repugnante da política de gabinete.
"Pode-se chegar"? Não. Já chegamos. Por obra e graça da presente lei eleitoral, no Território do Acre foi eleito um Sr. Hugo Carneiro, na chapa do PSD, que teve dupla votação. Logo depois dele, na mesma chapa, vinha um Sr. Castelo Branco... que não teve um só voto, nem o próprio voto. O Sr. Carneiro votou em si mesmo. E o Sr. Castelo Branco votou no Sr. Carneiro. Assim, o Sr. Castelo Branco será deputado com zero voto. Em compensação a UDN que teve mais de mil votos não foi eleita, porque a UDN não alcançou ali o quociente eleitoral.
Tudo isto seria jocoso, se não fosse triste, desalentadora a indiferença com que nosso pobre povo, extenuado, vê tudo isto e continua inerte.