Legionário, no 702, 20 de janeiro de 1946
DITADURA PARTIDÁRIA
Continuemos na análise da malfadada lei eleitoral que - feita embora para restaurar a democracia - restaurou de fato a mais detestável oligarquia, que é a das "panelinhas" de políticos, banqueiros, literatos e jornalistas. "Restaurou" não é bem o termo, já que restaurar é restituir a uma coisa o seu estado normal. O recente decreto fez muito mais do que isto: levou o despotismo partidário a um grau que ele jamais teve no Brasil e acresceu ao maximum o poder das "panelinhas" argento-litero-políticas. Vejamos quem mais ganhou com isto.
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Todo o deputado é, em rigorosa doutrina democrática, um representante, um procurador do povo. Analisemos, pois, a missão de um deputado, com os princípios comuns de bom senso, com que analisaríamos a tarefa de um procurador, de um advogado, por exemplo, já que a missão do deputado consiste em ser o advogado dos seus ideais, de seu programa, dos anelos de seus eleitores.
No caso do advogado, qualquer pessoa tem dois aspectos a distinguir: o objetivo que ele deve alcançar, e os métodos que adotará para tal. Assim, o objetivo de um advogado pode ser a restituição de um dinheiro roubado. Seus meios de ação hão de variar conforme o talento, o preparo, a ação pessoal que pode ser mais... ou menos prestigiosa, influente, enérgica e solerte, conforme o advogado.
Por isto mesmo, interessa ao cliente não só saber o que seu advogado deve fazer - o programa do advogado, digamos - mas escolher o advogado que o representará. Como a qualquer pessoa desejosa de adquirir um quadro não interessará só a escolha do tema, mas também do pintor.
Já que a lei eleitoral nos colocou em minoridade, dando-nos o direito de escolher o tema, mas não o pintor, ou de dizer o que reivindicamos sem que possamos escolher o advogado de nossas reivindicações, a democracia está fraudada. Será uma farsa, uma farsa tanto mais cruel quanto foi por amor a ela que o sangue brasileiro se verteu ainda há pouco, na conflagração universal. Uma pura farsa.
Digamos as coisa com a crua franqueza, tão própria do Legionário. Quem encomenda um quadro sem saber quem é o pintor, é um ingênuo. Quem contrata uma causa sem saber quem será seu patrono, é como quem compra um poste ou um bonde.
Quem se sente bem na situação criada pela presente lei eleitoral, dentro das peculiaridades da política brasileira, o que será?
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Mas há uma saída. Digamos que os partidos políticos realizem internamente uma votação para a escolha dos seus candidatos, e os inscrevam na chapa, na ordem em que foram votados. Não estará sanado o mal?
Vejamos.
1 - QUALIFICAÇÃO: Será preciso que o partido mantenha um rigoroso serviço de cadastro de seus eleitores. Quem identificará os eleitores? Quem os registrará? Neste país em que até mortos já têm votado, e em que o próprio poder judiciário parece impotente para coibir todas as fraudes, será possível que uma qualificação, privada e não oficial, feita, não por juizes mas por políticos, evite a qualificação dupla e tripla de um mesmo eleitor, ou de eleitores inscritos simultaneamente em vários partidos?
2 - PROPAGANDA: As eleições intrapartidárias terão uma imensa importância. Gastarão nelas os candidatos, para se sobreporem a seus pares, todos os recursos de intriga, esperteza e sensacionalismo, que se empregam nas eleições oficiais. Mas tudo no ambiente ingrato das ante-salas de partidos e clubes políticos sem a limpeza que o "grand air" das eleições oficiais até certo ponto garante.
3 - VOTAÇÃO: Todo o mundo sabe com que cuidado se devem escolher os mesários, os locais de votação, as urnas, o pano da cabine indevassável. Qualquer "truc" neste ponto é uma ameaça à liberdade do eleitor de classe modesta. É crime trucar qualquer destas coisas nas eleições oficiais. Nas eleições de partido, não. E onde isto nos levará?
4 - APURAÇÃO: Quem fará esta apuração? Os próprios mesários? Onde? Quem garantirá a identidade das urnas até o fim da apuração? Os mesários? Quem fará a contagem? Os mesários?
5 - JULGAMENTOS: E qual o tribunal partidário idôneo para julgar os votos impugnados, o que decidirá muitas vezes do resultado da votação?
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Perguntas terríveis, quando pensarmos que a direção dos partidos fará tudo. É este punhadinho de políticos que há de nomear os organizadores da qualificação e os mesários, é ela quem garantirá o hipotético segredo do voto, a lisura das apurações, a imparcialidade dos julgamentos.
Em suma, é ela quem fará as eleições. Não é isto terrível? Quem ousará jurar sobre os Santos Evangelhos a lisura do pleito interno nos partidos?
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Vejamos a coisa por outro ângulo. Imaginemos que se tirasse ao Judiciário a qualificação, a apuração e o julgamento nas eleições. Onde iríamos parar? Imagine-se que essas atribuições passassem a uma junta constituída de um representante de cada partido: não é verdade que o valor desta eleição seria igual a zero?
Pois é esse zero, o valor das eleições inter-partidárias e a-judiciárias, feitas na penumbra da atmosfera extra-oficial.