Legionário, no 701, 13 de janeiro de 1946

VERGASTADA CRUEL

A ferida aberta na alma católica do Brasil, pelas últimas eleições, ainda não tinha começado a cicatrizar, quando a golpeou a fundo o recente decreto alterando o sistema eleitoral.

Todos os católicos ainda nos lembramos do pesar, da perplexidade, e, porque não dizer, da vergonha com que nos víamos obrigados a escolher, nós, a maioria inconteste e avassaladora, entre as cédulas avariadas, suspeitas, lamentáveis, que quase todos os partidos políticos nos impuseram. Líamos uma lista, líamos outra, e não nos resolvíamos por nenhuma. A última que líamos nos parecia sempre a pior. E eram impossíveis quaisquer ilusões. Bastava abrir as colunas alugadas na imprensa diária pelos vários partidos, para ver do que valiam as cédulas que tínhamos em mãos. O partido A bradava que na chapa do partido B havia bolchevizantes e, portanto, heretizantes. O partido B retrucava que a LEC havia aprovado os seus candidatos, como se a LEC houvesse de aprovar a inclusão de candidatos bolchevizantes em qualquer chapa. Mas o partido B não se contentava com isto, e ia mais longe. Dizia, afirmava, clamava, que na chapa do partido A havia gente casada, divorciada, e "re-casada": candidatos que iriam pois arvorar o estandarte anti-divorcista, com suas mãos em que luziam as alianças de bodas proibidas. Ao que o partido A fazia ouvidos moucos, voltando às suas vociferações contra o partido B. Tudo isto era "disgusting" para nós: a mútua difamação, a evidente veracidade de umas e outras acusações, e o papel simplesmente ridículo que os católicos fazíamos em tudo isto.

Pela insistência com que A e B procuravam afastar, um do outro, os nossos votos, víamos, palpávamos, sentíamos, a pujança de nossa imensa força eleitoral. Entretanto, sentíamos também que nossos pulsos de gigante estavam ridiculamente atados por uma teia de aranha. Nesse país católico, um sistema eleitoral instituído por um parlamento que se dizia católico, sobrevivera a todos os naufrágios, e chegara até nós com essa imposição: se queríamos votar nos candidatos bons do partido A, haveríamos de engolir juntamente a mercadoria avariada que se lhes jungira. Idem quanto ao partido B.

Nada é mais ridículo do que Guliver atado com os minúsculos cordéis de Liliput. E era esta, a nossa situação. Periecos, cidadãos de segunda classe, na terra em que de direito somos donos!

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O Legionário se insurgiu com energia contra esta situação. De todos os lados, começavam a nos vir manifestações de apoio. As últimas eleições haviam evidenciado uma coisa com que ninguém concordava entre os católicos. As direções da quase totalidade dos partidos políticos teve a habilidade de incluir em suas cédulas alguns católicos de lei, o que nos fez engolir também alguns anticatólicos de lei. Com isto, se demonstrou que, de duas uma:

1 - Ou a direção dos partidos políticos mais importantes não sabe compreender a opinião católica;

2 - Ou que a entende com pesar, na medida do indispensável, servindo-se de todos os defeitos da lei, para lhe conceder o menos possível.

Ora, foi precisamente à direção dos partidos políticos que a nova lei eleitoral veio entregar os destinos do país, colocando sob sua tutela o colégio eleitoral de toda a nação. O Brasil recebeu um diploma de minoridade, e, em lugar do eleitorado independente, livre, cheio de esperanças, que anelávamos ser, fomos transformados em uma triste carneirada, tangida pela vara nodosa e velha dos "politicões".

Como se fez isto?

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Enquanto, com o crescente aplauso da opinião católica, pleiteávamos ampla liberdade para a escolha dos candidatos de nossa confiança, de sorte que o eleitor pudesse escolher deputados em todas as legendas, o que saiu das retortas legislativas do atual governo? A seguinte solução:

1 - Cada partido faz uma cédula colocando os seus nomes na ordem em que os prefere. Assim, o primeiro nome da lista será o que a direção do partido mais quer fazer entrar. O segundo nome será o segundo no coração da direção do partido. O terceiro nome, o terceiro no coração da direção do partido. O terceiro nome, o terceiro no coração dos Srs. Diretores, e assim por diante;

2 - Os eleitores não têm mais o direito de votar em nenhum candidato. Podem apenas escolher este ou aquele partido;

3 - Segundo o número de votos que cada partido tiver, ver-se-á a quantas cadeiras terá direito;

4 - E, para essas cadeiras, terão preferência os candidatos, na ordem em que os tiver registrado o partido... ou seja na ordem em que os preferirem os Srs. diretores de partidos.

Exemplifiquemos. O candidato X do partido A é bolchevizante. O candidato Y do partido B é tri-divorciado. Mas o Sr. X é riquíssimo, e concorre com muito dinheiro para a caixa do partido, que dele precisa para fazer vencer seus ideais. O candidato B conservou de seus três casamentos sucessivos excelentes relações com as três grandes famílias em que entrou. Há disto na psicopatologia divorcista. É a vantagem de quem se casa três vezes! E o partido do Sr. B não ousa tirá-lo. Faz-se o registro. Coloca-se na primeira linha o Sr. X ou o Sr. Y, em último lugar algum católico bem praticante, bem bom. O que acontecerá? Se os católicos não votarem no partido, só entrarão maus elementos. Se os católicos quiserem fazer entrar o pobre de seu candidato, terão de votar em massa no partido, para ver se entram todos os candidatos inclusive a cauda da chapa, em que está o católico. Será o grande argumento, para nos convencer que teremos de votar nos maus: se não o fizermos, não entrarão também os bons.

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Em outros termos, no mesmo momento em que acaba de ser demonstrado que as direções partidárias não são capazes de corresponder a nossa confiança, o governo coloca nas mãos delas o destino do Brasil, e da causa católica no Brasil.

Seria possível desferir, contra nossas mágoas e nossas esperanças mais cruel vergastada?

Em que situação ficamos? Se continuarmos dispersos pelos vários partidos, seremos neles perpétuos carneiros tangidos pela vara das suspeitíssimas direções. Se fizermos um partido nosso, cumpre que seja vigoroso, rijo, numeroso. E, para isto, todos deveremos entrar nele. Teremos transformado automaticamente em partidos anticatólicos os demais partidos, que bem ou mal, são algum tanto tingidos de católicos agora. Para onde iremos nós?