Legionário, Nº 699, 30 de dezembro de 1945

As alterações no Sacro Colégio

A outorga de dois chapéus cardinalícios ao Brasil, a elevação do Núncio Apostólico no Rio à sagrada púrpura, e, muito especialmente, a honra conferida ao Exmo. Revmo. Sr. D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, Arcebispo Metropolitano, que acaba de ser incorporado ao supremo senado da Igreja, absorveram inteiramente a atenção dos católicos deste Estado.

Era justo e natural que assim fosse, dada a grande significação religiosa e patriótica do acontecimento, e os naturais vínculos de respeito e estima que ligam os fiéis a seu Prelado.

Depois de toda uma semana consagrada às manifestações de júbilo, não é demais, entretanto, que façamos algumas reflexões à margem da "internacionalização" do Sacro Colégio.

Cumpre acentuar, antes de tudo, o reconhecimento do Santo Padre pelos benefícios prestados à Igreja pela nação italiana, durante todo o tempo em que a administração pontifícia se recrutou especialmente entre os filhos da histórica península.

O Sumo Pontífice explicou detidamente as razões que o levaram a modificar o critério nacional até aqui vigente para a escolha dos dignitários do governo pontifício, tendo um cuidado muito exato em salientar que a Itália se mostrou digna, até o fim, do honroso privilégio que lhe fora confiado no interesse da própria Igreja. Não foi, de modo algum, porque os dignitários nascidos na Itália deixassem de corresponder à sua missão que o sistema se mudou, mas porque as novas condições do mundo exigiam a providência que Sua Santidade acabou de tomar.

Se as palavras do Chefe da Cristandade precisassem de uma confirmação, esta se encontraria na dignidade e respeitosa serenidade com que a imprensa italiana recebeu a notícia. Lamentou ela que as circunstâncias tivessem tornado impraticável o recrutamento preferencial de súbditos italianos para a administração da Santa Sé. Mas, ao mesmo tempo, reconheceu nobremente a oportunidade da medida, e não lhe regateou aplausos.

É assim que se dá por finda, fidalgamente, uma nobre missão.

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Estamos em uma época de rudes choques nacionais. De todos os lados os nacionalismos se acirraram neste frio e belicoso século XX. E, se o declínio do nazi-fascismo promete algum esmorecimento do nacionalismo político, é preciso reconhecer que o nacionalismo econômico, as lutas alfandegárias, as competições comerciais entre países, as barreiras que de todos os lados coarctam a livre circulação das riquezas do mundo, as rivalidades que atiram povos contra povos continuam. Com isto, a paz continua absolutamente tão precária, como antes de 1938. É possível que ela não se perturbe mais pelos motivos em voga outrora: um príncipe assassinado, uma bandeira rasgada, ou algum território reivindicado. Ela continua igualmente exposta a ser violada de um momento para outro por motivos novos: uma mina de petróleo ocupada militarmente, um regulamento inoportuno sobre importação de pregos ou solas de sapatos, o apetite de roubar ao adversário alguma fórmula industrial particularmente rendosa.

Evidentemente, a Igreja trabalha com todas as forças para evitar nova catástrofe. Mas a experiência amarga de 14 e 38 mostra bem que os Papas deste século devem contar com a perpétua possibilidade de se verem frustrados em seus desígnios, e de presenciar, consternados, a nova guerra.

Assim, a Igreja, esforçando-se por manter a paz, prepara-se contudo para qualquer eventualidade.

A última guerra desencadeou forças psicológicas verdadeiramente bestiais. Parece que o senso de justiça, de equilíbrio, de decência foi banido da face da terra. No fanatismo da luta as posições imparciais correram grave risco de ser incompreendidas de ambos os lados. Experimentou-o o próprio Pontífice. Assim, convinha que a Igreja se cercasse de todas as precauções, para fazer face, de futuro, a novos mal-entendidos.

Chamando resolutamente todos os povos da terra a participar do supremo senado da Igreja, dando a todos eles o meio de se fazer ouvir no mais alto conselho da Terra, tão alto que está vizinho ao céu, o Papa fechou a porta a futuras explorações e mal-entendidos, resguardando contra os intrigantes a santa unidade das nações cristãs.

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Hiper-nacionalista de um lado, nosso século é, do outro, fortemente internacionalizado. As comunicações entre todos os povos se tornaram facílimas. Uma notícia chega mais rapidamente de Lausanne, Pequim ou Ottawa a São Paulo, do que, no tempo do Império, de Santo Amaro.

Com isto, o mundo de hoje se internacionaliza ao mesmo passo que se hiper-nacionaliza. O que brotar da confusão de nossos dias, seja civilização, seja barbárie, seja cultura, seja embrutecimento, seja ordem cristã, seja caos satânico, há de ser internacional. Das entranhas pesadas do século XX há de brotar um fruto único para o mundo todo, o anticristo talvez ou o Reino de Deus neste mundo. Nada se sabe deste fruto, senão isto: ele será um só para todos, birmaneses e suecos, brasileiros e afegãs.

É claro que a Igreja deve acompanhar e governar este movimento unificador. Em seu senado não veremos apenas os louros filhos do Norte mas, ao lado do Arcebispo de Westminster se sentará um cardeal chinês e, ao lado do Arcebispo de Paris, cuja púrpura brilha com a glória de 20 séculos de civilização cristã, sentar-se-á o Cardeal de Lourenço Marques, que trará nas dobras de suas pomposas vestes cardinalícias o perfume selvagem do sertão afro. O Cardeal deste nosso São Paulo se sentará ao lado do Cardeal de Antioquia, sede veneranda que se fundou quando a Igreja ainda estava na sua infância, e ninguém no mundo sabia que algum dia se haveria de descobrir o Brasil.

Refulgente dessa santa e católica universalidade, a Igreja de Jesus Cristo mostrará mais claramente que transcende do tempo e do espaço, e pairará de modo ainda mais perceptível, acima das míseras contendas dos homens.

Entre os nacionalismos que se acirram, e o internacionalismo que se alastra, há um fenômeno médio: a formação de fortes blocos de nacionalidade, que ao mesmo tempo destroçam os nacionalismos puramente locais, e combatem a internacionalização geral. Já se falou em uma Federação Européia, outra Americana, e assim por diante. Também esse fenômeno tem sua relação com a organização do Sacro Colégio.

É muito digno de nota que, em lugar de aumentar consideravelmente o número de chapéus que tocam às nações fortes, com prejuízo dos povos fracos, o Santo Padre fez o contrário. Tudo bem pesado, a representação norte-americana no Sacro Colégio, por exemplo, é muito menor que a húngara, ou a portuguesa, já que o pequenino - e aliás tão glorioso e estimado - Portugal tem 2 cardeais, a Hungria não menor, e agora vencida, também tem 2, e, mais ainda, a desditosa Polônia riscada agora do mapa pela miserável ganância bolchevista também tem 2 chapéus. Observadas as proporções de população católica, ou, mais ainda, de potência financeira ou militar, não é evidente que há um desequilíbrio?

O próprio Papa nos premuniu, em sua alocução, contra o que ele chama com todo acerto "fáceis cálculos estatísticos". Não se trata de uma distribuição estatística. Ninguém mede o lugar dos filhos na casa paterna, simplesmente pelo seu tamanho ou sua força. O princípio do domínio dos fortes não encontrou guarida na constituição do Sacro Colégio.

Belo exemplo de independência e de serenidade, que não pode deixar de edificar e iluminar o mundo em nossos dias.