Legionário, Nº 697, 16 de dezembro de 1945
PERIECOS
Convém tratar mais uma vez da lei eleitoral. Não receamos de exagerar nossa insistência. Poderia, talvez, ser mais interessante desta vez variar de assunto. Mas o jornalismo católico não é um esporte lítero-recreativo. Seu fim não é agradar leitores, mas servir princípios. Enquanto existir uma lei que coíbe a livre expressão do pensamento católico, não poderemos calar. Não achamos vantagem nem gosto, em cuidar de outras coisas, enquanto os católicos continuarem sob o peso de um estatuto legal que faz deles os periecos do Brasil.
Esparta era um Estado férreo - hoje diríamos "forte". Dividiam-se os habitantes em três categorias. Na primeira plana, a aristocracia militar onipotente, no outro polo, os ilotas, sem direito à vida, nem à honra, nem à liberdade. Entre uma e outra classe, numa situação mista, ambígua, contrafeita, estavam os periecos. Viviam nas periferias dos Municípios, de uma vida vegetativa e suburbana, em que lhes eram concedidos alguns direitos, e negados outros. Não estavam expostos aos riscos dos ilotas, não estavam sujeitos aos pânicos das caçadas noturnas, podiam nutrir-se de seu próprio trabalho e desfrutar uma mediania suportável. Mas estava trancado para essa classe o acesso às situações superiores, aos prestígios dos cargos de mando, e a glória da carreira militar. Sua condição era respirável, mas sem honra. Nem tinha o trágico grandioso da desgraça dos ilotas, nem o marcial e austero esplendor da nobreza. Situação suportável, sim, quanto às exigências do ventre, insuportável porém, quanto os que sentem na alma os melindres do brio. Sorte que, em última análise, poderá encontrar "conformistas", entre aqueles que vêem na satisfação módica das exigências do corpo a bem-aventurança da vida terrena, entre aqueles que a Escritura caracteriza com uma palavra santamente ferina: quorum Deus venter est. Mas insuportável para os que se sentem nascidos para algo de mais alto do que matar a fome, viver bem, viver na terra como se não houvesse céu.
É esta condição de uma sórdida e temperada inferioridade, que nos toca no momento. Não vamos pretender que a lei eleitoral signifique para os católicos brasileiros o que era para seus irmãos romanos os gritos dos "cristãos às feras". Diocleciano teria certamente feito coisa pior do que este sistema eleitoral inaugurado por nossa Câmara de 1935. Ilotas, certamente não o somos. O nosso ventre não sente o risco fino e frio do punhal, nem o brado "renega ou morre". Mas somos inferiores. Todos são livres, nós não. Todos podem escolher, nós não. Somos a imensa maioria e gastamos boa parte de nosso tempo em clamar esta verdade. Mas somos uma maioria de segunda classe. Vivemos na periferia da vida cívica. No festim geral da democracia há uma classe de gente que entrou apenas para comer as migalhas. Somos nós. Teremos alma de perieco para dormir à vontade e digerir regularmente nessa situação?
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Periecos? Sim, mas a caminho da condição de ilotas. Se não clamarmos energicamente por nossos direitos, se permitirmos que o estandarte da luta anti-divorcista seja conduzido nos prélios parlamentares por mãos em que figuram alianças que a Igreja não abençoou, se deixarmos que os comunistas, brigados na aparência, se insinuem em várias legendas e as sufragarmos todas, onde iremos parar?
Há um ditado que, sob forma trivial, exprime uma verdade sempre viva: "O que não anda, desanda". Não podemos ficar eternamente nesta situação de periecos. O comunismo ronda em torno de nós. Ele entrará pela brecha que lhe deixarmos aberta. E, no dia em que ele vencer, teremos passado de mornos e inglórios periecos a ilotas culpados de seu próprio destino. O infortúnio é uma honra, quando desaba sobre nós por divina permissão, mas sem culpa de nossa parte. Ele é um opróbrio, quando nos mostramos incapazes de o prever, e com ele nos conformarmos, não por resignação, mas por inércia. Periecos hoje, amanhã ilotas. É esta, e não outra, a situação para onde vamos deslizando nas mansas águas de nossa inércia.
Acordem, pois, os sonolentos. E inteirem-se, com dados concretos, da realidade de nossa situação.
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Estamos com outra eleição às portas. Foram desmentidas as notícias da transferência da data para a escolha dos legislativos estaduais e dos governadores. Tratar de questão de legendas, cédulas, quocientes, não é apenas requentar o caldo velho das eleições passadas. É preparar o futuro, sob a pressão de uma experiência triste, e ainda bem próxima. Vamos, pois, ao assunto.
Como se elege um deputado?
Estabeleçamos aqui uma série de princípios.
I - A Constituinte estadual terá 8O cadeiras. Suponhamos que o total de eleitores seja de 1.000.000, número redondo para facilitar a exemplificação. De quantos votos precisa um deputado para ser eleito? Evidentemente, a resposta se obtém dividindo o número de cadeiras pelo de eleitores. Se 1.000.000 de votos têm direito a 8O cadeiras, uma cadeira caberá a cada deputado que tiver um oitenta avos do número total de votos, ou seja 20.000. Vinte mil votos farão um deputado.
II - Assim, na chapa de um partido, consideram-se automaticamente eleitos todos os deputados que tenham 20.000 votos ou mais. E um partido terá tantos deputados quantos forem aqueles que atingirem o total de 20 mil. Mas, podem suceder duas coisas. Um deputado pode ter, em lugar de 20, 30 mil votos. A quem aproveitarão esses dez mil votos de sobra? Um deputado pode ainda ter menos de 20 mil votos, digamos 18 mil. Se ele só pode ser eleito com 20 mil votos, o que se faz desses 18 mil? Ficam inutilizados?
III - Os votos que passam de 20 mil, ou que não chegam a 20 mil, se somam. Digamos que em uma mesma chapa um candidato tenha alcançado 40 mil votos, de sorte que lhe sobrem 20 mil. Todos os outros, alcançaram menos de 10 mil votos, cada qual. Os deputados que não alcançaram 20 mil votos são, pois, em número de 79, já que a Chapa contém nomes para todos os 80 lugares do legislativo estadual.
Se fizermos a soma desses votos que tiveram os 79 candidatos que não chegaram a 20 mil, pode ser que verifiquemos que eles tiveram 100 mil votos. Há mais 20 mil que sobraram do único candidato que teve, em lugar de 20 mil, 40 mil votos. Ao todo, ficaram pois sobrando 120 mil votos. O que fazer deles?
IV - Acabamos de ver que cada 20 mil votos dão direito a uma cadeira. Se o partido ainda dispõe de 120 mil votos o que acontece? Ele tem direito a 6 cadeiras, que vem a ser 120 mil, dividido por 20 mil.
A quem se dão essas seis cadeiras? Aos mais votados dos que não obtiveram 20 mil votos.
Por onde se acaba vendo que mesmo com menos de 20 mil votos, se pode entrar para o Parlamento.
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No que dá isto, de concreto?
Suponhamos que em uma chapa do partido ABC digamos, há católicos modelares, católicos não modelares, candidatos nem católicos nem modelares, e um ou outro candidato modelarmente anticatólico.
Suponhamos que dos católicos modelares um obtenha 40 mil votos. Cada um dos outros obtenha número inferior. Um 15 mil, outro 12 mil, outro 17 mil, e outro 13 mil. São, mesmo assim, belas votações. E os católicos do partido ABC poderão estar contentes, porque cumpriram galhardamente seu dever.
Mas acontece que só tem a eleição garantida o que obteve 40 mil. Os espíritas, ou os protestantes são uma minoria em confronto conosco. Mas todos eles descarregaram seus votos em um só candidato, que obteve, digamos, 20 mil votos. Eles têm um candidato garantido, nós outro. "Taco a taco", como se diz, a maioria esmagadora e a minoria ínfima.
Quanto ao mais, os votos restantes serão esfacelados entre os inúmeros candidatos modelarmente católicos, modelarmente indiferentes, e modelarmente anticatólicos, segundo os azares verdadeiramente lotéricos da apuração.
Neste caso, no que ficamos? Os protestantes terão conseguido tanto quanto nós.
Qual a raiz do mal? Votando no católico, teremos votado no protestante, porque, pela lei vigente, quem vota em um, se a esse sobrarem votos, terá favorecido com seu voto a outro.
Qual o remédio? Uma lei eleitoral que nos permita de votar só nos candidatos católicos, de tal maneira que o voto católico não possa ser aproveitado pelo candidato protestante ou comunista.
Em suma, é o regime que tivemos nas eleições de 1933 e 1935.