Legionário, N.º 695, 2 de dezembro de 1945
Verdade amarga
Estas eleições se apresentam, para nós católicos, sob dois aspectos diversos. Num sentido importante se bem que meramente negativo, elas nos fazem esperar um resultado promissor. Mas sentimos, todos, que participamos de uma jornada cívica que corre o risco de produzir frutos minguados para a Igreja.
O alistamento eleitoral dos católicos atestou bem o fervor religioso da gente paulista. Foi bastante o apelo da Autoridade Eclesiástica para que brotasse do solo, de todos os lados, um entusiástico anelo pela vitória cívica de Cristo-Rei. Esse entusiasmo floresceu em provas de dedicação de toda a espécie. Damas da alta sociedade, operários humildes, universitários, trabalhadores, professores, militares, todos enfim porfiaram em se sacrificar pela causa comum, depositando nos postos de alistamento da LEC o resultado de seu imenso labor. Daí o atingir o alistamento católico cifras empolgantes, que mostram bem um fato definitivo e de imensas repercussões: a opinião católica se elevou hoje em dia a um alto grau de consciência cívica, e está sôfrega de agir, de vencer.
Por isto, a campanha eleitoral se desenvolveu com um garbo, uma louçania, uma eficácia que faziam lembrar os maiores dias de vibração cívica do povo paulista: 1932, 1933..., datas de que ninguém se esquece. O clímax deste entusiasmo se verificou quando os acontecimentos ocorridos no cenário político deram ao País a certeza de que teríamos por fim eleições. Os católicos se sentiam a dois passos do ideal desejado: uma ordem jurídica estável, e inteiramente fundada nos princípios da Igreja.
Teve início, então, a fase do desengano. Os vários partidos começaram a publicar as suas chapas à deputação federal.
É preciso insistir bem sobre a importância desse ponto. Não somos politiqueiros. E, pois, não nos interessam, em primeira linha, as funções de mando, onde se podem nomear afilhados, fazer polpudos contratos com fornecedores do Estado, e instalar bem na vida uma ou algumas camarilhas de amigos ou de aliados. Assim, o problema da sucessão à presidência do Estado ou da União, em torno do qual se podem cristalizar problemas do quais muitos são, aliás, perfeitamente respeitáveis e dignos de consideração, oferece para nós católicos uma importância quase diríamos subsidiária. O que queremos são sobretudo boas leis, que obriguem o governo a agir bem, e juizes capazes de tornar efetivo contra os maus governos o império da lei. Temos bons juizes. Faltam-nos os bons legisladores. E, na expectativa de que eles viessem agora, preparavamo-nos por fim para a era de ouro de nossa vida cívica.
Enquanto, pois, os partidos se mexiam e remexiam em torno da sucessão presidencial, a atenção dos católicos estava orientada para outro lado. Queríamos saber das chapas à deputação, que aguardávamos confiantes e cheios de espírito de colaboração.
Uma a uma foram elas sendo publicadas. É preciso reconhecer que, como as pombas do batidíssimo soneto, também uma a uma se foram indo nossas ilusões.
Sem dúvida, apontam-se em algumas chapas nomes excelentes, - raros, aliás - e, menos raros, alguns nomes "pseudo-excelentes". Mas, de um modo geral, a realidade, a triste realidade ficou bem patente a nossos olhos. É que certos elementos dos grandes partidos, dos que têm influência ponderável na vida cívica do Estado, nesta "rentrée" eleitoral se mostraram cegos para os anseios espirituais de São Paulo, como cegos estavam há dez anos atrás. Literalmente, caíram no erro dos emigrados franceses que voltaram à sua terra depois de um longo exílio, "sem nada ter aprendido e nada ter esquecido".
No panorama político-ideológico em função do qual foram feitas quase todas as chapas, não se tomou em consideração que São Paulo, o Brasil inteiro, passou por uma transformação ideológica fundamental nestes últimos anos. Há hoje, como potência de primeira ordem (falemos em linguagem de cifras eleitorais, já que outra em certos arraiais não se entende) uma opinião católica moça, vigorosa, sadia, idealista. É gente de espírito claro, forte e aberto. Desagradam-lhe os conchavos, as concessões. Ademais, é potência cônscia de sua força, e que se sente no direito e no dever de ser exigente. Exigente sim, exigentíssima até, para o bem da Igreja e grandeza do Brasil.
Não se trata apenas de um grupinho - insistamos no argumento numérico - de jovens sonhadores. É uma corrente. Melhor. É uma torrente. São todos os católicos praticantes e militantes do Estado, os católicos que vivem segundo a clássica fórmula francesa "catholiques avant tout", aos quais PSD, UDN, PC, PRP, PD estão longe de constituir ideais supremos. Para os católicos que não vêem mais a vida cívica pelo ângulo do coronelato agrícola, universitário ou industrial, que não são "afilhados" de nenhum fazendeiro, não se deixam encabrestar por nenhum fabricante e nenhum banqueiro, que se obstinam em não pertencer às panelinhas universitárias dos "amigos do Prof. X", ou dos "discípulos do Prof. Y". Para os católicos que são da Igreja, só da Igreja, inteiramente da Igreja, que votam de bom grado nos católicos de primeira água que se encontram nas legendas partidárias... mas que não se conformaram desde o primeiro instante, continuam inconformados, continuarão por todos os séculos dos séculos inconformados, com a obrigação de votar por isto, forçosa e automaticamente, em certos homens das legendas dos grandes partidos... e de outros também.
A existência desta corrente, desta torrente, foi ignorada na composição das chapas da generalidade de nossos partidos. A inclusão de um ou outro católico modelar em uma ou outra chapa, não é suficiente para nos conformar com a apresentação neste festim eleitoral do velho "menu" maçonizado e indigesto das mesmíssimas listas políticas de há 20 ou 20.000 anos atrás. Sem dúvida, entre os nomes antigos há candidatos excelentes, verdadeira madeira de lei. Mas há também madeira carunchada nestes destroços, nomes surrados sem significação ideológica nem intelectual. E estes, ninguém os suporta. Há "elementos novos" talvez, mas que em sua maioria provocam no eleitorado católico reações alérgicas das mais violentas.
A Liga Eleitoral Católica, órgão oficioso, autorizado, e que assim não está sujeita a críticas de ninguém, entendeu ser conveniente não entrar em indagações de caráter pessoal, não olhar para o passado nem para o presente de nenhum candidato, deixando à prudência dos eleitores fazê-lo por conta própria. Nem iremos além da linha da LEC neste momento delicadíssimo, reservando-nos o natural direito de o fazer depois das eleições, caso o entendamos conveniente para um efeito retrospectivo que as circunstâncias poderão impor. Mas as chapas aí estão. Apelamos para as muitas dezenas de milhares de eleitores católicos que pensam como nós: não é verdade que o sangue lhes sobe à cabeça, o coração lhes bate sem compasso, a cédula de sua preferência, encimada por seu candidato católico, genuinamente católico lhes treme nas mãos, quando pensam, quando pensamos... nos nomes que a cédula não contém, mas aos quais iremos votar automaticamente, inevitavelmente, inapelavelmente, por força e obra de uma lei eleitoral que conserva o sistema da de 1935, tão altamente nociva para nós? Quando pensamos que o movimento eleitoral católico foi lindíssimo... e os eleitores católicos que alistamos irão levar ao Parlamento, com alguns raros católicos militantes e merecedores de toda a nossa confiança e outros nomes suportáveis, uma seqüela de nomes de oportunistas, que apoiam nosso decálogo como apoiariam um decálogo muçulmano se lhes conviesse? Quando pensamos nos homens que já vivem o divórcio na sua vida particular, e que amanhã serão feitos legisladores por nossos sufrágios? Quando pensamos nos homens de esquerda que entrarão no parlamento nacional, com votos católicos?
* * *
Não desanimemos. Hoje, há um duplo dever. De um lado, já fazemos algo que está muito longe de ser pouco, com a formidável barragem anticomunista que a votação católica representa. De outro lado, há nas chapas partidárias mais de um nome católico, açúcar com que se procurou temperar o fel dos homens anticatólicos. Esses católicos fizeram bem de se candidatar e merecem ser votados.
Votemos todos contra o comunismo, e prefiramos para encabeçar nossas listas, os católicos que se tenham destacado nas lides católicas.
Cumpramos com afinco nosso dever e teremos feito muito.
* * *
Mas sejamos homens, e saibamos encarar de frente a situação. Como é pouco o que assim obteremos. Não é com resultados desta modicidade que haveremos de construir um Brasil cristão.
No amargor desta contingência, forçados a votar automaticamente em nomes alérgicos para nós, devemos formar uma resolução eficaz.
A experiência está mostrando que o sistema eleitoral de 1935 e de hoje é para nós católicos uma lei radicalmente desfavorável.
Em Maio, teremos as eleições estaduais. Façamos uma campanha enérgica, obstinada, veemente para que até lá se reforme a lei eleitoral. Não com um pequeno "retoque" qualquer, mas de modo fundamental, dando aos eleitores católicos o direito de compor livremente chapas com nomes de vários partidos, não votando senão nos candidatos que queremos sufragar.
Todo católico se deve considerar oprimido, manietado em votar pelo sistema da lei em vigor.
O Brasil só será inteiramente cristão em sua vida política e jurídica se for reformada a presente lei eleitoral.
Reclamar sua abolição é pedir para a opinião católica um novo 13 de Maio.