Legionário, N.º 684, 16 de setembro de 1945

Interconfessionalismo

Comentamos com atraso a "pastoral" do Sr. Salomão Ferraz. Temos a atenuante de que o documento nem é tão importante que imponha pressa em ser comentado nem bastante interessante para tornar aprazível a sua leitura. Ambos os motivos são suficientes para explicar porque abordamos o assunto quando já começa a parecer decididamente obsoleto. Fazemo-lo somente para que não passe sem uma palavra do "Legionário" um documento que, sob certo aspecto, é fato inédito entre nós.

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Foi preciso que o Brasil vivesse perto de quatrocentos e cinqüenta anos para que se verificasse entre nós essa catástrofe que é a apostasia franca e deliberada de um Bispo da Igreja de Deus. É uma desgraça, que se aparte da vinha um ramo que fora predestinado a produzir muitos frutos. E é ainda maior a desgraça quando esse ramo, estéril para a frutificação do bem, se ponha a deitar frutos amargos. Um desses frutos é o Sr. Salomão Ferraz, herege ele próprio que recebeu de outro herege, numa cerimônia sacrílega, uma investidura que é principado de glória na verdadeira Igreja, primado de abominação e ignomínia fora da Igreja de Deus.

O primeiro a experimentar o amargor do fruto de suas obras foi o mesmo Sr. Carlos Duarte da Costa. O Sr. Salomão Ferraz aproximou-se dele para receber a sagração episcopal. Logo depois, porém, abandonou publicamente sem um motivo ou uma explicação, com um desembaraço e naturalidade com que se abandona tudo quanto em si mesmo é insignificante e desprezível: a "pastoral" do Sr. Salomão Ferraz não contém uma só palavra de homenagem ao Bispo que o sagrou. Dir-se-ia que sobre a face da terra nunca existiu um homem respondendo ao nome Carlos Duarte da Costa.

Assim, o ex-Bispo de Maura se vê abandonado a um tempo pelo Bispo que sagrou, e pelo candidato que quis eleger à presidência da República.

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Na "pastoral" do Sr. Salomão Ferraz, temos dois aspectos a distinguir: a atitude e a doutrina. A atitude, cortês, calma, significada através de uma linguagem correta e clara, causa à primeira vista uma impressão agradável, sobretudo se comparada ao palavreado insolente e desconexo da "pastoral" do Sr. Carlos Duarte da Costa. A doutrina parece não existir. Tantas as barretadas dirigidas a todos os credos religiosos possíveis e até à maçonaria, que verdadeiramente se tem a impressão de que nenhum pensamento existe subjacente, por debaixo das fórmulas algum tanto vulgares, e pronunciadamente açucaradas, com que o Sr. Salomão Ferraz brinda de todos os modos, gregos e troianos.

A realidade, entretanto, não é bem esta. Vamos primeiro à doutrina. Compreenderemos, em seguida, muito melhor a atitude.

Em relação à Igreja Católica, a posição do Sr. Salomão Ferraz é muito clara. Ele nega em expressos termos a infalibilidade papal, e o governo universal e direto que o Bispo de Roma exerce sobre todos os Bispos, Sacerdotes e fiéis do mundo inteiro. Saúda o Papa, é certo; mas vendo nele apenas um Primaz como outro qualquer, dotado de uma preeminência sobre os outros Bispos, como a dos Patriarcas de Veneza ou de Lisboa; ou, mais próximo de nós, o Arcebispo Primaz da Bahia. Preeminência de honra, que não significa, para o Papa, senão o "direito de ajudar aos outros (bispos) como a irmãos, sem exigir-lhes vassalagem". A linha demarcatória, entre os católicos, e ela está, pois, muito nitidamente traçada na "pastoral", e, se bem que o Sr. Salomão Ferraz a tenha ornamentado com festões de folhagens e flores, ela não deixa de ser clara e precisa.

Ao longo deste fio, circula para nós uma corrente elétrica de alta tensão: quem transpuser os limites que nos separam do Sr. Salomão Ferraz neste capítulo está fora da Igreja, é herege.

Causa espécie que suas relações com os cismáticos são muito confusas. Ele os brinda apenas com uma saudação genérica. O assunto deveria ter, entretanto, o maior interesse. Ninguém ignora os pendores do Sr. Salomão Ferraz para a esquerda, quiçá para o comunismo. Ninguém ignora as presentes ligações do comunismo com a Igreja cismática, hoje transformada em subsecção de propaganda do governo soviético na Rússia e no mundo inteiro. Ninguém ignora, ainda, pois que os jornais chegaram a publicar a este respeito reportagens fotográficas, que o Sr. Carlos Duarte da Costa teve entendimentos prolongados com os cismáticos russos existentes no Brasil, antes de declarar sua apostasia. E ninguém ignora que foi desta apostasia que brotou a sagração episcopal do Sr. Salomão Ferraz. Seria interessante, pois, que este último se definisse claramente sobre o assunto. Pelo contrário, passa ligeiro por ele, como quem não quer deixar ou avivar rastros.

Ora, isto é tanto mais curioso, quanto nos demais terrenos o Sr. Salomão Ferraz se mostra de uma facúndia extraordinária.

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Assim, quanto à igreja anglicana, a respeito de cujas personalidades de relevo não encontra palavras que bastem. Assim ainda, quanto à seita evangélica. A respeito desta, o Sr. Salomão Ferraz tem palavras calorosas. Ao que parece, ele professa o conceito da Redenção e de sua eficácia ao modo dos evangélicos. Ele os elogia porque "no Brasil e no mundo inteiro tem frisado os grandes princípios da eficácia absoluta da redenção consumada por Cristo na cruz e a salvação de graça mediante a fé etc.:". Exorta-os à perseverança e à firmeza em seus próprios princípios: "mantendo sempre alçado o pendão do vosso testemunho, e sede coerentes. E Deus vos abençoe". Ele prossegue, referindo-se aos espíritas, "os que, rompendo a crosta petrificada do materialismo que assumiu ares pontificais no último século, revelaram ao mundo, de um modo inequívoco, a existência de forças que as conhecidas leis da física e da química desconhecem, e mostraram aos homens as possibilidades infinitas de maravilhas que se escondem para além do alcance dos sentidos". Como se vê, o Sr. Salomão Ferraz acha certíssimo que os espíritas provocam fenômenos autenticamente preternaturais, e que as práticas espíritas nada têm de censurável. Não espanta, pois, que termine por enviar "aos aderentes da Terceira Revelação", o seu "apreço fraternal em Cristo". Para resumir, o Sr. Salomão Ferraz enche as medidas a qualquer espírita exigente. Depois, uma amável lembrança das sessões maçônicas a que compareceu, nas quais "a palavra sempre lhe foi facultada sem peias, sem imposições" e durante as quais "aos golpes de malhete aprende-se o valor da liberdade dentro da ordem, do ritmo, da harmonia". Depois, outra amabilidade para os teosofistas. Nós, católicos, apostólicos, romanos, vemos nas elucubrações e experiências teosóficas, ou divagações de espíritos exaltados e transviados, ou fenômenos diabólicos. De científico, nada lhes reconhecemos. O Sr. Salomão Ferraz pelo contrário, toma a sério a teosofia, e a considera uma verdadeira ciência. Participa, pois, ao menos de certo modo, também das convicções teosóficas: ele presta homenagem aos que "almejam penetrar a ciência que se esconde para além das formas do culto e da vida. E assim hão preparado as mentalidades reverentes dos que se habilitam a ver no culto externo, não mero formalismo inútil, mas o veículo sagrado das realidades mais profundas. Ele não se esquece dos judeus: ele não tem, acerca do antigo povo de Deus, uma só palavra das que tão facilmente ocorreram hoje, isto é de censura ao anti-semitismo brutal de Hitler, ou uma única referência ao deicídio e à maldição. Um judeu exaltado pelas esperanças messiânicas, lendo o Sr. Salomão Ferraz, diria mesmo que ele vaticina para os judeus o sonhado domínio universal: "não se aflijam tanto com o seu próprio salvamento, que virá de Deus", e "marchem para a frente, fiados na divina promessa...". Ora, segundo consta, não é por sua salvação eterna que os judeus se afligem excessivamente, mas pelo reerguimento de sua nação, dispersa pela terra. De onde parece que as palavras do Sr. Salomão Ferraz se devem entender sobretudo desse "salvamento" temporal.

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E ai terminam as saudações religiosas. O que fica de tudo isto? Um interconfessionalismo cru. O Sr. Salomão Ferraz trata a Igreja e todas as seitas, como se cada uma delas fosse uma modalidade legítima de bem, contivesse um aspecto diverso, porém igualmente verdadeiro, daquela verdade religiosa total que a "grande família da fé universal" professa. Ao pé da letra, de princípio a fim, a tendência interconfessional para o estabelecimento de uma unidade espiritual que transcenda a todas as igrejas, transparece de princípio a fim da "pastoral".

Esta a doutrina. E a prática?

Para bem a compreendermos, notemos antes de tudo que o interconfessionalismo é erro gravíssimo, condenado pela Igreja, de sorte que propagá-lo é absolutamente tão grave quanto propagar outro erro qualquer.

Mas, enquanto qualquer erro pode tentar impor-se a ferro e fogo, como o maometanismo, pelo contrário, o interconfessionalismo só pode se expandir com carícias. Com efeito, se se trata de unir, de fundir, de confundir, é preciso começar por não dividir, não desunir, não fragmentar.

Por isto, o sorriso "tolerante" ocupa na estratégia interconfessional o papel que a cimitarra ocupava na expansão do maometanismo. É a grande arma de que ela lança mão contra a Igreja. Quanto mais blandicioso, mais gentil, mais almiscarado o palavreado de algum interconfessional, tanto mais se pode ter a certeza de que ele quer atacar a Igreja. Com o tamanduá também é assim: quanto maior o abraço, tanto maior a raiva.

Leia-se agora essa carga cerrada de gentilezas de dois gumes, em que cada palavra cortês traz no dorso o cortante de uma negação, de uma crítica. E compreender-se-á que a "pastoral" aparentemente tão "moderada" do Sr. Salomão Ferraz foi, na letra, no espírito, na atitude, apenas uma investida... imoderadamente interconfessional.